sábado, 18 de agosto de 2018

CADA UM COM SUA VISÃO

Parque Shenandoah (foto) e pintura de Ju Chagas
CADA UM COM SUA VISÃO
13/08/2018

   Olhos nos olhos, ele disse que era urgente conversar com os filhos, contar sua vida de jovem. Como assim, indagou ela, curiosa do que tinha para contar que fosse novidade. Filhos distantes de casa e os dois vivendo a velhice. Ele não pestanejou, com olhos brilhantes, iniciou a história já no período da adolescência, quando a necessidade de construir o futuro apareceu com clareza dentro de si. De quando era pintor de carroceira de caminhão. Por quê você quer contar a eles sobre esse tempo somente agora, ela perguntou, tentando entender por que somente agora. Ao que ele respondeu que gostaria de deixar às claras a visão de mundo do trabalho desde jovenzinho. Ela pensou que fazia isso, contava flashes da sua história para que eles soubessem de onde veio e que rumo escolheu. É provável que os filhos sabiam mais de sua ânsia do que ela mesma. O que quereria do futuro? Para onde olhar? 

   O jovem garçom trouxe as duas médias de café com leite e dois biscoitos de queijo provolone e perguntou se desejavam açúcar ou adoçante, ao que ele respondeu estar bem daquele jeito. Ela não disse nada, acostumada com a maneira do marido sorver a bebida. Talvez ela colocasse adoçante, mas provou e não lhe foi incômodo.

   Deu continuidade ao assunto indagando de quais etapas ele gostaria de contar e ele completou, do início, de quando sentiu necessidade do próprio dinheiro. Queria explicar como era a vida, quanto custava alcançar um desejo. Hoje em dia as coisas vão tão diferentes. Ela exemplificou, os pais não podiam dar qualquer tostão, proibitivo, mal conseguiam suprir arroz com feijão necessário a tantas bocas. Atualmente não vivem a carência. E, logo dizendo, por quê ele não escreve a respeito. Ela expressou com vontade, talvez se contasse, escreveria, escreveria a história do pai de seus filhos. A partir de qual idade desejou o próprio dinheiro? Aos dez, doze? Aos quatorze? Ele disse que aos dez vendia pirulito de açúcar queimado, aos doze, o irmão, Zé Ribeiro e ele vendiam limonada no campinho para a turma da pelada. Enviou-lhe olhar arregalado, não precisando detalhar a história, ela conhecia. Zé Ribeiro era o garoto que vivia com nariz escorrendo e, a meleca, descia quase até ao pote de limonada, e numa fungada, a coisa melequenta retornava para dentro do nariz ou ele passava o braço para limpar. 

   Emprego de verdade, com carteira assinada, foi na Mambrini Carrocerias, aos quatorze. Rejeitou ordem do pai de fazer curso do Senai, de torneiro mecânico, disse ter iniciado, mas não achar graça  construir aquelas peças e, insatisfeito, contou ao professor que ali não sentia ser seu lugar. O professor perguntou o que gostava de fazer, disse gostar dos desenhos das peças no papel, não de construí-las. O professor aconselhou que fizesse desenho mecânico. O curso de desenho era caro e em casa, ou se estudava ou trabalhava. À toa, ninguém podia ficar. O pai olhava para ele e ele pensava que o pai pensava que ele era malandro, único filho que não obedecera ordens e completou, o pai dizia, esse está perdido, não tem futuro, não quer saber de nada. Na Mambrini conheceu Cidália, da seção de pagamento, vistosa, alta, de cabelo negro. Pediu a ela que lhe avisasse quando tivesse certa quantia no fundo de garantia. A esposa interrompeu e perguntou, se ela ainda vivia, ele não sabia, Cidália tinha uns trinta anos na época.
Ele pesquisou preço de cursos e o montante que cobrisse os seis meses e transporte. Cidália avisou. Ele pediu conta. Pagou o curso com abatimento. Construiu uma prancheta, que mal e mal, permanecia de pé, armada no quartinho fora de casa, e todos os dias praticava, e alcançou habilidade rapidamente. Percebera que, a partir daquele período, o pai o olhava de jeito diferente. Não olhar de mando do pai sargento, o olhar zangado por não ter respeitado ordem, mas o olhar ameno, de quem passara acreditar que ele sabia sim o que estava fazendo. Com certificado na mão à procura emprego, nada conseguiu, até que Gabriel, o cunhado, deu o toque de que o Detran estava contratando desenhista. Conseguindo o emprego em dois meses todos queriam que ele desenhasse, pois o outro desenhista borrava o desenho, deixava falhas e traços errados, parecendo não gostar do trabalho.

   Gabriel no caminho para o trabalho dissera ter observado grande fila todos os dias naquele local. Desceu do carro para obter informação e o dia era o último para inscrição de vaga para desenhista. Dispensara Gabriel que deu desculpa por ele ter faltado ao trabalho. Aprovado, deixou o Detran.

   Terminado o café, saíram pela loja. Continuou dizendo que ele, que nunca dera muito bem com o pai, foi quem o levava ao médico, tinha o primeiro fusca e, os irmãos trabalhavam distante e não tinham condição de auxiliar. Ela perguntou se o pai alguma vez pedira perdão, se ele se lembrava. Não, ele não disse, falava pouco, apenas o olhar que dava medo. Disse ter acompanhado o pai durante estada no hospital até que este lhe disse o quanto se orgulhava dele se importar com a família. Foi a última vez que ouviu a voz do pai.

   Ele pagou a conta. Em silêncio. Ele ao volante, ela lendo Proust contra Sainte-Beuve. Interrompeu a leitura quando veio-lhe a fala do marido à noite anterior, de como era triste passar o Dia dos Pais sozinho, ao que ela completou, deve ser assim que os pais sentem quando os filhos já não estão em casa.