Parque Shenandoah (foto) e pintura de Ju Chagas |
CADA UM COM SUA VISÃO
13/08/2018
Olhos
nos olhos, ele disse que era urgente conversar com os filhos,
contar sua vida de jovem. Como assim, indagou ela,
curiosa do que tinha para contar que fosse novidade. Filhos
distantes de casa e os dois vivendo a velhice. Ele não pestanejou,
com olhos brilhantes, iniciou a história já no período da
adolescência, quando a necessidade de construir o futuro apareceu
com clareza dentro de si. De quando era pintor de carroceira de
caminhão. Por quê você quer contar a eles sobre esse
tempo somente agora, ela perguntou, tentando entender por que somente
agora. Ao que ele respondeu que gostaria de deixar às claras a visão de mundo do trabalho desde jovenzinho. Ela
pensou que fazia isso, contava flashes da
sua história para que eles soubessem de onde veio e que rumo
escolheu. É provável que os filhos sabiam mais de sua ânsia do que ela mesma. O que quereria do futuro? Para onde olhar?
O
jovem garçom trouxe as duas médias de café
com leite e dois biscoitos de queijo provolone e perguntou se
desejavam açúcar ou adoçante, ao que ele respondeu estar bem
daquele jeito. Ela não disse nada, acostumada com a maneira do
marido sorver a bebida. Talvez ela colocasse adoçante, mas provou e
não lhe foi incômodo.
Deu continuidade ao assunto indagando de quais etapas ele gostaria de
contar e ele completou, do início, de quando sentiu
necessidade do próprio dinheiro. Queria explicar como era a vida, quanto custava alcançar um
desejo. Hoje em dia as coisas vão tão diferentes. Ela exemplificou, os pais não podiam dar qualquer tostão, proibitivo,
mal conseguiam suprir arroz com feijão necessário a tantas bocas.
Atualmente não vivem a carência. E, logo dizendo, por quê ele não escreve a
respeito. Ela expressou com vontade, talvez se contasse, escreveria, escreveria a história do pai de seus filhos. A partir de
qual idade desejou o próprio dinheiro? Aos dez, doze? Aos quatorze? Ele disse que aos dez vendia pirulito de açúcar
queimado, aos doze, o irmão, Zé Ribeiro e ele vendiam limonada no
campinho para a turma da pelada. Enviou-lhe olhar arregalado, não
precisando detalhar a história, ela conhecia. Zé Ribeiro era o garoto que vivia com nariz escorrendo e, a meleca, descia quase até ao pote de limonada, e numa fungada, a coisa
melequenta retornava para dentro do nariz ou ele passava o braço
para limpar.
Emprego de verdade, com carteira assinada, foi na
Mambrini Carrocerias, aos quatorze. Rejeitou ordem do pai de fazer
curso do Senai, de torneiro mecânico, disse ter iniciado, mas não
achar graça construir aquelas peças e, insatisfeito, contou ao professor que ali não sentia ser seu lugar. O professor
perguntou o que gostava de fazer, disse gostar dos
desenhos das peças no papel, não de construí-las. O professor
aconselhou que fizesse desenho mecânico. O curso
de desenho era caro e em casa, ou se estudava ou trabalhava. À
toa, ninguém podia ficar. O pai olhava para ele e ele pensava que o
pai pensava que ele era malandro, único filho que não obedecera ordens e completou, o pai dizia, esse está perdido, não
tem futuro, não quer saber de nada. Na Mambrini conheceu Cidália, da seção de pagamento, vistosa, alta, de cabelo negro. Pediu a ela que
lhe avisasse quando tivesse certa quantia no fundo de garantia. A esposa
interrompeu e perguntou, se ela ainda vivia, ele não sabia, Cidália tinha uns trinta anos na época.
Ele
pesquisou preço de cursos e o montante que
cobrisse os seis meses e transporte. Cidália avisou.
Ele pediu conta. Pagou o curso com abatimento. Construiu uma prancheta, que mal e
mal, permanecia de pé, armada no quartinho fora de casa, e todos os
dias praticava, e alcançou habilidade
rapidamente. Percebera que, a partir daquele período, o pai o olhava de
jeito diferente. Não olhar de mando do pai sargento, o olhar
zangado por não ter respeitado ordem, mas o olhar ameno, de quem
passara acreditar que ele sabia sim o que estava fazendo. Com
certificado na mão à procura emprego, nada conseguiu, até que Gabriel, o cunhado, deu o toque de que o Detran estava contratando desenhista. Conseguindo o emprego em dois meses todos queriam
que ele desenhasse, pois o outro desenhista borrava o desenho,
deixava falhas e traços errados, parecendo não gostar do trabalho.
Gabriel no caminho para o trabalho dissera ter
observado grande fila todos os dias naquele local. Desceu
do carro para obter informação e o dia era o último para
inscrição de vaga para desenhista. Dispensara Gabriel que deu
desculpa por ele ter faltado ao trabalho. Aprovado, deixou o Detran.
Terminado o café, saíram pela loja. Continuou dizendo que ele, que nunca dera muito bem com o pai, foi quem o levava ao médico, tinha o primeiro fusca e, os irmãos trabalhavam distante e não tinham condição
de auxiliar. Ela perguntou se o pai alguma vez pedira perdão, se ele se lembrava. Não, ele não disse, falava pouco, apenas o olhar que dava medo. Disse ter
acompanhado o pai durante estada no hospital até que este lhe
disse o quanto se orgulhava dele se importar com a
família. Foi a última vez que ouviu a voz do pai.
Ele pagou a conta. Em silêncio. Ele ao volante,
ela lendo Proust contra Sainte-Beuve. Interrompeu a leitura quando veio-lhe a fala do marido à noite
anterior, de como era triste passar o Dia dos Pais sozinho, ao que ela completou, deve ser assim que os pais sentem quando os filhos já não estão em casa.