22/12/2020
Os grilos
cricrilavam, os gatos pisavam macio, o farfalhar das folhas alertou os dois
madrugadores.
Luiza em seu silêncio interior. Osvaldo
ao olhar em sua direção viu que sorrira levemente e ela continuou com as perguntas:
― Quantos familiares têm passado por
perdas e nem podem estar presentes. Tudo acontecendo tão violentamente. Você está
aqui comigo, mas e eles? Cruel realidade. A cada momento famílias sacrificadas.
Onde está a dignidade necessária a esse momento tão doloroso?
― E saber que acontece todo ano, todo ano mortes e mais mortes de pretos, pobres e periféricos, tal qual as tantas durante a pandemia.
É terrificante. Somos país escravagista. O estado não os protege. Como
continua fazendo durante a covid.
Luiza fez uma pausa. E disse:
― Acha possível um homem e uma mulher
serem amigos, amigos de verdade?
E depois já mudando assunto sem
esperar resposta, perguntou inesperadamente:
― Ah, Valdo, que devo fazer? Ando
com tanta dificuldade de conviver com amigos após eleição de 2018 pela escolha
feita. Eles devem estar incomodados com minha reação.
― Nenhum amigo meu fez tal
escolha, pelo menos os mais chegados, de convivência. É difícil aceitar e até entender
como pessoas inteligentes votaram nesse candidato com histórico terrível de
trinta anos, e de conhecimento de todos. Seja por qual motivo for. É
incompreensível. ― Osvaldo respondeu.
No silêncio compreensível, Luiza
após um tempo:
― Também penso assim, o que se
torna ainda mais difícil.
― Siga adiante. Encontre amigos com
os quais tenha afinidade. É tempo de mudança. Tempo de transformação. ― Osvaldo
disse.
― Como as eleições de 2018
destruíram relacionamentos, hein? Ouço falar de mães, pais, filhos, maridos,
esposas, que se separaram ao descobrir que, no fundo, seus parentes são retrato
atual.
― Você está com dúvidas, queixas,
é normal. Por que não escreve, põe tudo no papel? Nem precisa ser literata,
deixe emoção e sentimento agirem e explore os temas. Conte incômodos, ideias,
sem censura inicialmente, clareie zonas cinzentas, quem sabe encontre respostas
que somente você é capaz de responder.
― Li o livro do Javier Cercas, O
Rei das Sombras, contando a história da Espanha na época de Franco, e de como o
fascismo tomou a todos feito cegueira coletiva. Grande parte da população apoiou
o fascismo. Tempo em que milhões de espanhóis foram dizimados por discordar do
pensamento único. Até os que votaram a favor do franquismo já não tinham
segurança e se questionassem, também eram eliminados. Depois de muitos anos a
sociedade tinha vergonha admitir tal escolha. Segredo levado ao túmulo. O
escritor uniu ficção e realidade a partir da história de um tio que aos dezessete
anos quis servir a Espanha de Franco, sem noção de estar escolhendo o lado
errado. Você leu?
― Li sim, ― respondeu Osvaldo. E
completou ― Aqui no Brasil foi diferente. Na verdade, dos cento e quarenta e
sete milhões de eleitores aptos ao voto, apenas cinquenta e oito milhões de
pessoas, isto é, trinta e nove por cento votaram no atual presidente. Então, mais
de oitenta e nove milhões de pessoas aptas, isto é, mais de sessenta e um por
cento não aderiram ao candidato. A culpa deve ser atribuída também aos que votaram
em branco, nulo e não compareceram, pois contribuíram para a mazela, totalizando
quase mesma quantidade dos que o elegeram. Aliás, já temos muitos arrependidos.
Por mais se diga que foi para não eleger candidato do partido progressista, a
gente sabe que isso não é verdade. A verdade é que se viram no espelho.
E continuou:
― É tema para discussão, porque
no fundo a gente sabe das mãos invisíveis do mercado, da elite, juntamente com
a mídia, que construíram a narrativa de seus interesses e esses tantos brasileiros
que não enxergam todos os lados de forma dialética, aceitaram a história
contada e fizeram a escolha. Não sei como agiria se algum amigo tivesse feito
tal escolha, dado o histórico do candidato. Talvez estaria como você.
Quando a raiva bate, é fogo combater. Avalie com tranquilidade, pense
neles como colegas. Colegas que se respeitam.
Luiza considerou com a cabeça. Em
seguida perguntou a Osvaldo:
― Natal quase chegando. Lembra a
confraternização do ano passado, a gente ingênua quanto ao corona, e os sentimentos,
a emoção, a esperança, as expectativas, a ... quem diria que 2020 caminharia para
esse astral?
― 'É preciso tecer o amanhã, deixe que o rio que corre seu corpo chegue ao
mar. Só faça o que o coração mandar’, como diz meu amigo, Fessor.
* Frase do escritor ronaldclaver