quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

silêncio da noite (CENA 41)

 

22/12/2020

            Os grilos cricrilavam, os gatos pisavam macio, o farfalhar das folhas alertou os dois madrugadores.

Luiza em seu silêncio interior. Osvaldo ao olhar em sua direção viu que sorrira levemente e ela continuou com as perguntas:

― Quantos familiares têm passado por perdas e nem podem estar presentes. Tudo acontecendo tão violentamente. Você está aqui comigo, mas e eles? Cruel realidade. A cada momento famílias sacrificadas. Onde está a dignidade necessária a esse momento tão doloroso?

― E saber que acontece todo ano, todo ano mortes e mais mortes de pretos, pobres e periféricos, tal qual as tantas durante a pandemia. É terrificante. Somos país escravagista. O estado não os protege. Como continua fazendo durante a covid.

Luiza fez uma pausa. E disse:

― Acha possível um homem e uma mulher serem amigos, amigos de verdade?

E depois já mudando assunto sem esperar resposta, perguntou inesperadamente:

― Ah, Valdo, que devo fazer? Ando com tanta dificuldade de conviver com amigos após eleição de 2018 pela escolha feita. Eles devem estar incomodados com minha reação.

― Nenhum amigo meu fez tal escolha, pelo menos os mais chegados, de convivência. É difícil aceitar e até entender como pessoas inteligentes votaram nesse candidato com histórico terrível de trinta anos, e de conhecimento de todos. Seja por qual motivo for. É incompreensível. ― Osvaldo respondeu.

No silêncio compreensível, Luiza após um tempo:

― Também penso assim, o que se torna ainda mais difícil.

― Siga adiante. Encontre amigos com os quais tenha afinidade. É tempo de mudança. Tempo de transformação. ― Osvaldo disse.

― Como as eleições de 2018 destruíram relacionamentos, hein? Ouço falar de mães, pais, filhos, maridos, esposas, que se separaram ao descobrir que, no fundo, seus parentes são retrato atual.

― Você está com dúvidas, queixas, é normal. Por que não escreve, põe tudo no papel? Nem precisa ser literata, deixe emoção e sentimento agirem e explore os temas. Conte incômodos, ideias, sem censura inicialmente, clareie zonas cinzentas, quem sabe encontre respostas que somente você é capaz de responder.

― Li o livro do Javier Cercas, O Rei das Sombras, contando a história da Espanha na época de Franco, e de como o fascismo tomou a todos feito cegueira coletiva. Grande parte da população apoiou o fascismo. Tempo em que milhões de espanhóis foram dizimados por discordar do pensamento único. Até os que votaram a favor do franquismo já não tinham segurança e se questionassem, também eram eliminados. Depois de muitos anos a sociedade tinha vergonha admitir tal escolha. Segredo levado ao túmulo. O escritor uniu ficção e realidade a partir da história de um tio que aos dezessete anos quis servir a Espanha de Franco, sem noção de estar escolhendo o lado errado. Você leu?

― Li sim, ― respondeu Osvaldo. E completou ― Aqui no Brasil foi diferente. Na verdade, dos cento e quarenta e sete milhões de eleitores aptos ao voto, apenas cinquenta e oito milhões de pessoas, isto é, trinta e nove por cento votaram no atual presidente. Então, mais de oitenta e nove milhões de pessoas aptas, isto é, mais de sessenta e um por cento não aderiram ao candidato. A culpa deve ser atribuída também aos que votaram em branco, nulo e não compareceram, pois contribuíram para a mazela, totalizando quase mesma quantidade dos que o elegeram. Aliás, já temos muitos arrependidos. Por mais se diga que foi para não eleger candidato do partido progressista, a gente sabe que isso não é verdade. A verdade é que se viram no espelho.

E continuou:

― É tema para discussão, porque no fundo a gente sabe das mãos invisíveis do mercado, da elite, juntamente com a mídia, que construíram a narrativa de seus interesses e esses tantos brasileiros que não enxergam todos os lados de forma dialética, aceitaram a história contada e fizeram a escolha. Não sei como agiria se algum amigo tivesse feito tal escolha, dado o histórico do candidato. Talvez estaria como você. Quando a raiva bate, é fogo combater. Avalie com tranquilidade, pense neles como colegas. Colegas que se respeitam.

Luiza considerou com a cabeça. Em seguida perguntou a Osvaldo:

― Natal quase chegando. Lembra a confraternização do ano passado, a gente ingênua quanto ao corona, e os sentimentos, a emoção, a esperança, as expectativas, a ... quem diria que 2020 caminharia para esse astral?

― 'É preciso tecer o amanhã, deixe que o rio que corre seu corpo chegue ao mar. Só faça o que o coração mandar’, como diz meu amigo, Fessor.


* Frase do escritor ronaldclaver

sábado, 26 de dezembro de 2020

segundo tempo (CENA 40)

 

Foto  jaimerchagas

21/12/2020

            A essência vermelha em interação com atmosfera permitira Luiza enveredar caminhos sem censura e amealhando resquícios aqui e ali, engavetados na memória do tempo, vinham livres, em perguntas que demandavam ou não respostas. O espírito dionisíaco lhe dizia para soltar-se, voar, poderia ser ela mesma sem máscara, sem subterfúgios. Voltou olhar para Osvaldo.

― Precisa experimentar o Mani-Oara, vinho da mandioca feito por mulheres indígenas. Protagonismo feminino. Produto da sustentabilidade. Além de valorizar cultura, o bem viver, preserva saberes e usos. No próximo encontro vou trazer pra você.

― Interessante nome! Ora, com certeza é indígena, qual significado?

― Mani-oara é uma formiga. Como as formigas são mais fortes juntas, mulheres também. Os produtos são cem por cento amazônicos. As mulheres são resilientes, como a minha terra.

― Vou adorar o presente. Quando quiser dormir, diz, está bem?

― Enviei mensagem para uma colega me render amanhã. Então, estou sem pressa. Podemos ficar um pouco mais? A noite está tão fresca que impressiona.

― E sua filha, Luiza?

― Minha doce e sensível criança... ― Enquanto contava, levantou-se.

Luiza saía para o trabalho pela manhã. O marido trabalhara noite toda e apenas a esposa se despedido, foi atrás de cigarro. Ao ver o maço vazio e perceber a menina dormindo tranquila, saiu. O boteco perto de casa fechado, caminhou algumas quadras até encontrar.

― Minha filha tinha asma crônica e os cuidados começaram cedo. Quando ela tinha três, casei. Meu marido não era o que se pode chamar homem caseiro. Gozava noite em bares após trabalho. Durante o dia, cuidava da pequena já com sete. Não explicou porque a deixara sozinha, sei lá, cigarro, algo assim, e a deixou por minutos, quando retornou ela dormia o sono dos anjos para sempre. Os dois amores de minha vida, e eu não estava lá quando precisavam.

― Luiza, coloque a máscara. ― Osvaldo já mascarado ordenou, e Luiza obedeceu sem resistência.

As lágrimas lhe escorriam e molhavam o tecido quando o homem desobedeceu as regras, e apertou a mulher nos braços, procurou manter o rosto afastado do rosto de Luiza e ao ouvido dela sussurrou palavras consoladoras. Em seguida, Luiza lentamente escorou a face no peito de Osvaldo, ouvindo as batidas fortes e os tremores que vinham de ambos corpos. Ele a enlaçava, protegia aquela criança.

― Oh, meu bom amigo, quem diria que à altura da vida eu encontraria bom ouvido. Meu casamento vinha desgastado e percebi aquele homem ausente e egoísta, que enxergava apenas si próprio. Coloquei fim no relacionamento, mesmo assim ele me perseguia. Um tormento. Fugi. Ele me descobria, ameaçava ainda assim. Naquela época não tinha a Lei Maria da Penha, se hoje é difícil para nós mulheres mesmo tendo esta lei, imagina anos noventa.  Somente me deu sossego após encontrar outra. Enfim, mudei-me para cá, mas o passado me faz companhia. A pandemia soltou meus demônios. Desculpe-me!

― Nenhuma dor se compara a perda de entes queridos. Te entendo, minha amiga, te escuto, vem, senta um pouco. ― Osvaldo apoiou os braços dela até assentar e deram-se a mão. Com a outra entregou-lhe o cálice.

Passada a meia noite aquela varanda era Pasárgada.

domingo, 20 de dezembro de 2020

minuto amigo e inimigo (CENA 39)

 

15/12/2020

A canção entoava. Na voz de Agepê:

... gira mundo vai girando

Roda gira gira roda

...

Tem gente que não entende

Que a vida é feita

De açúcar e sal

De chuva e sol

Quem sabe arrancar o veneno

Do peito ...

― Saudade do Agepê, saiu de cena, mas não morre nunca. A vida é feita de açúcar e sal. Tão óbvio e às vezes, tão obtuso em nosso pensamento. Não queremos crer que exista tanta ruindade, será mesmo necessário, me diz, Valdo? Gostaria de ouvir de você, “Luiza, um dia ficaremos livres da amargura, verá!” Me diz, por que insisto em ilusão tamanha? Engraçado, a gente aqui aprofundando o papo, né, Valdo. Pois é, sou assim, ainda tenho ilusões. Será por que sou mulher? Ou sensibilidade à flor da pele?

Osvaldo ouviu em silêncio. Levantou para pegar mais água e trouxe nova garrafa de vinho.

― Assim vai me embebedar. Você falou dos perigos na esquina. Perigos nos espreitam... além dos que rondam nossa pátria, nossa casa ... temos o passado. E o passado está sempre rondando a gente e quando menos se espera, ei-lo.

― “Eu amo cada minuto, cada minuto amigo ou inimigo, de voo e perdão: cada minuto da vida. Mas o passado tem um jeito de levar a gente ao lugar certo em hora errada, e traz junto tempestade”. ― Falou Osvaldo.

― Você se lembra de alguma paixão juvenil, Valdo?

― Poucas e raras. Sempre fui mais reservado e alguns complexos minaram meu entusiasmo inicial. Mas me lembro de uma amiga especial que tornou aquela época um momento de paz e atrevimento, de busca e curiosidade, ampliou minha ambição por questões sobre o universo pessoal, existencial. Uma mulher à frente do seu tempo.

― Quando saí de minha terra, encontrei um rapaz na cidade. Fábio e eu fomos nos envolvendo, a cada dia novos encontros...

Luiza chegou à cidade de Manaus aos treze, sem o traquejo e astúcia necessários para viver outra realidade. Na aldeia todos são irmãos, parentes, o coletivo valorizado, solidariedade é natural, existiam exceções de indígenas tomados pelo vício do alcoolismo e degradavam a própria vida, como vasos fracos, quebrantáveis, existentes em qualquer lugar. A menina moça, cabelos negros e longos, olhos indagadores, ágil e com força muscular, iria estudar, trabalhar, conhecer hábitos, e a cada dia tomava consciência de que ali não era bem uma grande aldeia. Observava pessoas isoladas, fechadas naquele concreto formatado com costumes diferenciados. Adaptação dolorosa e demorada devido ao idioma e cultura. Quando conheceu Fábio na fábrica em que trabalhavam, de latifundiários donos de quase toda a cidade, Luiza era uma outra mulher após cinco anos. Decidida, atrevida, curiosa nos detalhes, adquiriu habilidades importantes para sobreviver no pavimentado espaço da polis.

Os dois quando podiam desapareciam. Luiza montava na garupa da motocicleta enquanto Fábio buscava estrada de vegetação ainda nativa. E na loucura adolescente costumavam enfrentar trechos da viagem levantando o corpo e abrindo braços ao vento em completa veneração à natureza a que pertenciam. Amantes daquela rusticidade, os dois jovens se deixavam embaixo de imensas árvores enquanto comiam frutos que encontravam e comida que traziam. Depois acampavam.

― Adorávamos acampar na mata fechada que a cada vez descobríamos. Por ali nos aconchegávamos, o amor e a paixão nos alimentando, não existia o tempo, nem compromissos a nos preocupar. Apenas o tempo em que o sol ia ditando e a lua se opondo imensa e iluminada. Em mim germinava a semente. Ainda que escolhesse não contar, ele pressentia o milagre, pois dizia, Lulu, minh’alma anda altiva e alvissareira. Que trará pra nós? Fábio com jeito único, sensível, amava a liberdade que a possante moto possibilitava. Eu me misturava ao seu centro e compartilhava desejos. Desejos que iam tomando forma em meu corpo.

Durante o ano de convivência com Fábio, ele revelou segredos que evitara até àquele descanso na grande árvore amiga, que energizava ambos. Luiza preparava para dar a notícia, mas preferiu aguardar um pouco mais.

― Fábio adorava velocidade muito atrevidamente. Obrigado a resolver assuntos da empresa foi em viagem de carro, acostumado à liberdade de parar ou continuar quando bem entendesse. Disse-me, desta vez será diferente, quero retornar rápido pra gente continuar a busca. O lugar que começávamos embrenhar juntos nos deixava animadíssimos. E eu ansiava por notícias.

Fábio pegou o carro da empresa e seguiu para o compromisso. Tinha prazo para estar lá e na cronometragem do tempo percebeu que poderia dar esticada rápida num sítio arqueológico que descobrira. Quando pegou estrada novamente enfiou pé no acelerador por muitas horas. Era fim de tarde e as curvas se tornavam incômodas.

― Quando ouvi notícias do acidente fatal de Fábio, meu mundo caiu. Ele dormira ao volante e o carro caíra numa ribanceira, até para ser resgatado levou tempo. Valdo, eu ali grávida do homem que amava, sem poder comentar com medo de me tirarem o bebê. Fábio era um dos filhos do ricaço da cidade e somente me contara dia antes da viagem. Ninguém sabia de nosso namoro, ele me disse que devagar falaria aos pais, gente preconceituosa e arrogante, que se desaprovassem, ele assumiria.

Luiza se mudou para Santarém quando começava se acostumar com a cotidianidade local. Era livre e assim queria permanecer. Não foi difícil achar trabalho e não poderia se dar ao luxo da escolha.

― Nasceu minha filha e nunca contei a ninguém o que me acontecera. Você é a pessoa que tenho coragem, Valdo. Tantos anos se passaram. Tantas histórias.

 

Já eram umas dez da noite, a paisagem mesclada de luminosidade e umidade.

― Luiza, bebemos demais, convém dormir aqui. Deixei arrumado o outro quarto pra você. ― Osvaldo disse e Luiza parecia longe balançando a cabeça em afirmativo, entornando vinho à garganta, como se ansiasse por muleta que amparasse a travessia.

domingo, 13 de dezembro de 2020

personagens humanos e reais (CENA 38)

 

 30/11/2020

            Osvaldo nem acreditava no que via, Luiza perguntava se poderia ir para o banho, como ele havia proposto da última vez, talvez pelo interesse de bom papo. O homem sorriu e prosseguiu dizendo, sem dúvida, vai logo, já que ida a supermercado é fogo riscado pra contaminação.

 

― Hoje vou sair da rotina, ― Osvaldo disse erguendo a garrafa assim que Luiza se aproximava. ― Vinho tinto! Pizza rápida! de liquidificador! Tenho tino? Sou merecedor como chef de araque?

Hera, certamente, já. Deu água na kahiki, deu água na boca. Vou sair por aí com você.

― Gosto do “quando”, quando você traz palavras indígenas, quando nessas lavras me banho como em rio idílico.

― Saí do Amazonas há tempos e na cidade a gente passa idade envolvida com o destino, não tem mais tempo e corre em desatino. É triste que algumas mães Ianomâmis ensinem apenas o português, pois sofridas, violentadas pelos viventes da cidade, sofrem preconceito pelo linguajar e calejadas não querem tal para seus filhos. Já outras, mais conscientes da ancestralidade, incentivam e ensinam os dois, o guarani e o português.

Osvaldo, cortês, indicou lugar, um distante do outro.

― Valdo, nadei em rios profundos. Aprendizado natural, da vivência livre na mata. Bichos. Florestas intocadas. Tanta beleza se esvaindo.

― Tribos indígenas resistem há mais de trezentos anos e são as que respeitam e protegem a mãe Terra, as águas, e agradecem ao deus sol, elementos que germinam vida, alimento. Como você, com sua alma xamã, e das meninas, vêm me salvando, indo às compras, os números da pandemia voltam assustar. Os velhos estão literalmente embaixo dos cobertores. Quanto à vacina, as notícias continuam, as manias do governo enrolar, as fake news andam de amargar, nem salvação teremos no prazo. A chance de melhorar anda longe, pois nas eleições municipais nosso povo confirmou, é conservador, escolheu partidos do centrão, aquele que negocia qualquer tipo de voto na contramão de nossos interesses e aprova de olho em grana, a que vicia e que nem grama, só alastra. O fisiologismo continuará.

― Nada mudará, o desconcerto continua. Sistema viciado. O rei está nu mas fingem não ver, e se aproveitam disso para obter dividendos. É isso, existem políticos com fome de dinheiro, e ao que parece os altos valores não saciam, querem sempre mais. As aparências não enganam mais não. E falando em pizza, vou tirar fatia, porque o fisiologismo agora bateu em mim, estou faminta. Hum! Pesto com queijo! Você leva jeito!

Ficaram às risadas por causa da analogia. Em seguida apreciaram a massa.

― Valdo, quero te contar o que aconteceu comigo. O vinho está me liberando. ― E rindo ― diz Bechior que viver é melhor que sonhar, mas tive dúvida há três dias, foi como se fosse um pesadelo, mas foi real, assim, do nada, sem motivo, senti dificuldade na respiração, batia acelerado meu coração, o corpo suando, uma tontura, enjoo. Sentei na cama com receio de andar. Surgiu um medo inexplicável, parecia que eu ia morrer. Medi pressão arterial e, normal. Meditei, sabe, respirar fundo, segurar ar, depois expirar lentamente pela boca, e segurar antes de nova respirada. A concentração difícil, achei que iria enfartar. Ou talvez fosse o corona. Apenas sei, Valdo, que nada sei do que me aconteceu. Nas investidas para eu me controlar, consegui limpar meus pensamentos e atentei a cada inspiração, a cada expiração, até que o pulmão se expandiu. Que alívio!

― Há perigo na esquina, à espreita. Nestes tempos de pandemia a gente anda estressada e ansiosa e reage em forma de pânico. Puxa vida, você agiu com sabedoria ao controlar respiração e os medos que vêm junto. Foi a algum doutor psi? É bom escutar ponto de vista de especialista.

― O tal medo de morrer é fogo.

― Medo que passou logo, como você se certificou ao usar seu potencial para resolução do problema. Foi situação singular, aguda. Todos sabemos, o medo faz parte de nós, o carregamos todos dias. Mas quando crises nos inquietam, temos acesso meio que sem pensar, inconsciente, ao que achamos que nos ameaça, ou ameaçou, ou ameaçará e isso vai nos tomando corpo inteiro. É o corpo falando. Estresse é a escrita.  Qualquer cantar é menor que a vida da gente, mas não custa relaxar e voar um tico, que tal escutar MPB? Vamos pra varanda?

Caminharam leves. Sentaram-se. À frente, a leveza esverdeada. Osvaldo acendeu cigarro. Luiza acenou e disse:

― Essa paisagem torna a respiração vigorosa. A gente ganha asa.

Osvaldo observava aquela criatura alada enquanto o céu abria nesgas entre nuvens lançando claridade na noite.

 

Ao fundo, a canção na voz de Alcione:

“...você me vira a cabeça

 me tira do sério

destrói os planos que um dia eu fiz pra mim

me faz pensar por que a vida é assim...

por que você não vai embora de vez?

por que não me liberta dessa paixão?...

por que não deixa livre o meu coração?

Mas tem que me prender ...”

 

― Valdo, as pessoas me dizem pra falar de amor. Às vezes é difícil em dias de dor. Afinal, 2020 não tem sido fácil. E em seguida, aqui e agora, o vento lança aroma em nós e balançando os galhos, as folhas murmurantes, dizendo, um instante, olha, tem cantoria, outras histórias, e vacilante, insegura, acolho, mudo rumo e aprecio esse momento único.

― Um braço e uma voz. Um amparando o outro num abraço à distância. A vida é assim, exige coragem da gente.

Brindaram. E riram das novas estratégias que eram obrigados adotar com a onda pandêmica.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

palavras (CENA 37)

 

17/11/2020

            Palavras são navalhas...

 

Bia soltou frase meio sem elaboração pouco antes de se despedir.

― Que significa, Bia? ― questionou Ruza.

A frase solta ali na ponta da língua, na ponta da lança, na ponta da lança lançada dentro dela e doía, e dolorida, não encontrasse palavra para prosseguir. Eco a ecoar garganta afora, a exprimir a verdadeira intenção, mas não. Calou-se.

― Questões com Josué andam me incomodando. Deixa pra lá. Não vale a pena tocar no assunto depois desse trabalho que tivemos pelo povoado. Vai descansar. Amanhã tem suas obrigações. E eu as minhas.

― Deixa de ser besta, mulher, vai, põe pra fora essa nódoa.

 

Um casal aos gritos a alguma distância e de repente o homem estapeia a mulher que não reage, escondendo rosto, escora numa mureta, e solta verbo contra ele. O rapaz larga a moça choramingando e caminha de encontro ao saco de lixo e chuta, depois é a vez do cão distraído farejando num canto, que saiu ganindo, abre e fecha cancela tomado de fúria e se ouve o barulhão.

― É o Oswaldo, Bia, seu vizinho? Vamos ver se a moça está bem?

Bia e Ruza a passos largos ofereceram ajuda. A moça ainda em lágrimas, que ao limpar o rosto com costas da mão manchou de maquiagem. As palavras entaladas na garganta, palavras mudas. Ameaçou abrir a boca e desistiu. Abanou cabeça e ao invés de entrar em casa do namorado, caminhou direção ao mar. Estranho era observar que os dois estavam sem máscara.

― Até hoje ter homem assim é inacreditável, e ainda pior é mulher aceitar. Ah, não, esse tipo de homem não merece nada da gente.

― Vamos lá em casa, Ruza, toma uma cervejinha comigo. Topa?

― Bia, você viu aquilo? ah não, tem mulher idiota demais, eu não aguento isso. As pessoas antes falavam pra gente não se meter em briga de casal, mas tais situações exigem da gente se intrometer, sim, porque senão, a violência se expande. Fizemos o possível. ― As duas retornaram uma casa, até portão de Bia. ― A cervejinha fica pra outra hora, o pique se foi, Zé e as meninas já devem estar em casa.

Rosária se despediu. Bia ficou parada no portão, observando o gingado, a cintura marcada pelo bermudão azul, as pernas torneadas, imaginando se Ruza seria a que Josué comentou, ou seria uma das outras duas amigas? Não deveria ter trazido à baila tal assunto, que ideia minha, parece que não consigo segurar a raiva. Mas as meninas não têm culpa, é coisa da cabeça dele. Vou dar jeito de descobrir.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Rosa Momo George Floyd

 

    Faz tempo não posto sobre filmes, mas assisti um que me motivou: Rosa e Momo, italiano de 2020, com atriz Sofia Loren como Rosa, sobrevivente de Auschwitz, antiga prostituta e agora envelhecida, cuida dos filhos de outras mulheres para que possam trabalhar na noite.

    O que faz o filme ter conotação interessante é o garoto Momo, de doze ou treze de idade, senegalês que vai morar com Rosa e aos poucos, com os dois conflitando na relação cotidiana, a sombra do passado ameaça. Muito lindo como o menino vai engrandecendo como personagem, naquele pedaço da Itália modificado pela migração, e que exige reflexão social. 

    O menino e a rua, a vivência da vida vem desse território, o que encanta é o garoto ter personalidade capaz de lutar por uma vida de afeto. Isso nos move no filme, a cada momento o afeto sendo portador de boas novas na vida de uma criança em busca de esperança.

    Quanto a Rosa, as sombras a encobrem também e Sofia Loren traz para nós a firmeza de mãe, autoridade, o desejo de compartilhar solidariedade. 

    Vou parar por aqui, afinal o filme é de 2020 e merece que cada um tenha a própria interpretação. O filme me emocionou do início ao fim. Ver Sofia Loren atuante, a questão do envelhecimento traz outro efeito, uma outra nuance.

    Adorei ouvir a canção na voz rouca da nossa querida Elza Soares, mas não vi créditos. O diretor é  filho da atriz e a história retirada de livro.

    Aconteceu de em outro dia assistir filme com ela, de 1955, a comédia Pão, amor e ... a vida se encontra não importa a idade. São bons contrapontos para análise do envelhecer.

    E outro além, num momento em que Brasil e em outros lugares, a questão da cor é ainda objeto de preconceito (existente desde chegada dos invasores) e mostra o país escravocrata que ainda somos. Rosa traz no bojo o que vivenciou nos tempos nazistas. Um período que não pôde esquecer. Um tempo de cegueira coletiva.

    A cultura é assim, nos mantêm com luzes do raciocínio em alerta e exige tomada de atitude. Não temos George Floyd, temos milhares de Georges Floyds.   

domingo, 22 de novembro de 2020

mar azul, sempre-vivas e no meio ... (CENA 36)

 

16/11/2020

            Até chegar, Bia foi contando:

― Acredita que sábado arrisquei e fui a praia pela primeira vez desde início da pandemia, de máscara e tudo. Aquele mar azul ali me esperando, pouquíssimas ondas, parecia piscina, água friinha, deliciosa, só de caminhar a beira, senti esquentar. Mas a cada passo que eu dava, me assustava, a cada grupo que eu olhava, cada casal, todos sem máscara, conversando pertíssimo como se nada houvesse. Caminhei na minha, cautelosa, sem me aproximar e, eu era alienígena. No final tirei máscara apenas para banho de mar e mesmo assim me preocupei. Ruza, como as pessoas são irresponsáveis consigo e com o próximo, tantas velhas, velhos, todas idades, assim, custei crer. Uma comédia, ou melhor dizendo, tragédia humana.

― Ainda não tive coragem de caminhar por lá, você foi corajosa, disseram que estão chegando turistas. As pessoas estão brincando de casinha, negando a realidade caótica, acreditando que não serão atingidas. Elas trazem riscos maiores para nossa comunidade, temos que alertar o povaréu.

Quando em frente a cerca simples, arregalaram olho uma para outra:

            ― Que jardinzinho! até faz o casebre ter outra vista. Quanta sempre-viva.

 

Nessa moradia quem cuidava do jardim era a filha única de vinte e oito anos. Fora encontrada pela mãe boiando em rio sobre superfície de madeira aos três meses e adotada. Poderiam ser família tranquila não fosse o padrasto tentar abusar dela desde os onze. Nem tudo são flores, cresceu visivelmente ansiosa, desconfiada, atenta todo minuto sem poder descansar. Tornou-se arredia, não lida bem com próprio corpo, sem laço afetivo com os pais. Quando contou sobre a tentativa de abuso, a mãe não acreditou. Por viver angustiada, trancou-se e isso interferiu no jeito de ser e não desenvolveu talentos. Trabalhava, ganhava pouco e convivia do jeito possível. Hoje o pai está velho, mas ela continua sentindo-se perseguida.

― Tão jovem, tanta dor, santo Deus. O jardim dá esperança na gente. Olha, vem vindo uma mulher. ― A mulher com traços pesados, sem riso nos lábios, repassou o que necessitava e mal e mal se despediu.

― As pessoas carregam tanta amargura.

 

Em outro endereço era assim...

A família era maior, com filhas e único filho. A mãe viúva arranjou marido quando os filhos ainda pequenos. Quando uma das filhas aos doze anos, que vinha sendo seduzida ardilmente através de pequenos agrados, doces, balas, carinhos que na ingenuidade de criança beira o purismo, afinal esperava carinho de pai, tinha esse direito, mas engravidou na primeira e única vez do marido da mãe. Para a mãe, a menina foi culpada e não se separou do homem. A menina foi morar num cômodo do próprio lote e somente quando o homem morreu a pobre moça sentiu alívio. Mas a relação com a mãe sempre rancorosa, ambos lados queixosos. Hoje, ela tem muita ansiedade, faz compras para além do necessário, acumula vasilhames sem uso nos armários e dívidas, muitas dívidas.

― Tem mãe que parece inimiga, credo.

 

E ali, num outro casebre, a mulher cuida da mãe com todo carinho. A velha mãe tem Alzheimer, vive acamada. Essa mulher quando jovem foi noiva, o rapaz a traiu, largou-a para casar com outra. Não quis saber de homem depois disso. Única irmã solteira, cuidou do pai até a morte e esse pai maltratava os filhos demais quando criança. Acaso chegasse tarde do trabalho, levava coro do pai que vigiava mais as mulheres. Ela vive para os seus. Cuidou do pai. Cuidou do irmão com problemas mentais até falecer. Cuida da mãe. Pergunta agora a si, quem cuidará de mim? Tornou-se ríspida, agressiva ao contato, culpa outros pelo destino e está perdendo a visão, vê formatos sem cores e segundo médicos não tem solução. Não aceita depender de ninguém. O que faz? Quando sente que as pessoas fazem pouco dela, sai e gasta o que pode e o que não pode, endividando-se. É a válvula de escape que traz grandes dificuldades. O irmão que sobrou vivo continua distante.

 

Na outra casa, a mulher dá conta de tudo. Um dos filhos fumava crack e agora o sobrinho enveredando por mesmo caminho. A família do rapaz não quis saber dele e ela cuida. É afirmativa, durona, faz salgados para venda. Quando jovem teve filha ainda solteira, que foi criada pela avó, pois precisava trabalhar. Tentou suicídio algum tempo atrás. Não teve afinidade com homens desde que foi rejeitada pelo pai da primeira filha alegando não ser dele a criança. Encontrou um homem bacana e teve o filho. O marido é mais acomodado, passivo.

 

Acolá, a mulher é casada e tem dois filhos. Come sem parar. Compulsivamente. Chora muito. Contou que eram mais de doze irmãos e os pais agressivos com eles quando criança. Como vive para resolver problemas de todos familiares, pois sente que é sua responsabilidade, pouco faz por si. Cismada com a morte de um cãozinho de estimação há alguns anos, ainda lamenta e chora por ele.

 

Noutro, a mulher cuidou do marido com problemas de mania e depressão, a tal bipolaridade. E agora a filha apresentando tais distúrbios, é instável, tem dificuldade na escola, no trabalho, com dinheiro, nas fases de euforia sai por aí com milhões de coisas na cabeça, dizendo ter solução para todos problemas e depois, planos vão água abaixo, prostra-se numa cama, carente como bebê. Muitas vezes rejeita medicação e foge de terapia. A mãe e o irmão cuidam com carinho dela e não a culpam, respeitam o jeito único, sabem da doença, e como qualquer doença, precisa ser entendida, respeitada e aguardam o tempo em que aprenda a cuidar de si, mas passam sufoco com dívidas.

 

Na casa seguinte. Seguinte. Seguinte...

 

― Então Ruza, você cuidará dessa área. Tem pouco da história de cada barraco. Histórias sofridas, em sua maioria oriundas da pobreza, da nossa desigualdade. Será que ricos têm tais problemas? Com certeza devem ter. Dores não existem somente aqui. Aqui é pedacinho do mundo. O que se sabe é que ricos têm as benesses, os arranjos, os apadrinhamentos, os conchavos e mesmo os complicados e absurdos problemas para nós, para eles, eles acham jeitinho de encaminhar, terceirizam as obrigações, escondem pais doentes em asilos, deixam filhos escondidos em hospitais psiquiátricos, pagam dívidas deles, calam a boca da imprensa para não tocar em tais assuntos. Aqui, algumas pessoas são discretas, outras contam mais a respeito de si, o que nos ajuda na assistência pelo povoado, esse é nosso papel. Fazemos o que o estado deveria ser responsável. Quando é necessário investir em regiões como a nossa, de pobreza explícita, nunca tem dinheiro. Somos massas que levantam o país e somos massacradas por ele, pelo mau poder, pelos governantes que não têm projeto de país. E nossa falta de educação não nos faz enxergar realidade. Muitas vezes lutamos para que ricos lá permaneçam do mesmo jeitinho de sempre, desde que Portugal tomou posse da terrinha.

― É difícil as pessoas entenderem. A gente participa e assim tem consciência. Consciência social. A maioria da classe média torce nariz por nossos problemas e até nos ataca como se fôssemos os responsáveis pelas mazelas. Na verdade grande parte dessa classe média foi pobre e hoje está em outro patamar. O que faz? Esquece de onde veio. Luta por projetos da elite achando que pertence àquela. Serve de massa de manobra. Quando tudo está bem, a elite deixa a classe média pensar que é rica. Quando as coisas vão mal, como agora vivemos, larga ela à deriva.

― Até mesmo muitos de nós, os paupérrimos, olhamos pra frente e pensamos, eh, eles estão certos, nós somos os culpados, essa nossa ralé, é assim que agimos, não temos solidariedade nem mesmo com os nossos. Quando o jeito é se virar, irmão desconhece irmão, na roça e no canto a gente escuta.

― Pior que é. Vê o monte de gente, tudo pobre e agindo como gado, fazendo o que mandam. No nosso povoado tem tanta gente alienada, primitiva, que desconhece importância do conhecimento para desbaratar pobreza. País com fome é importante para países desenvolvidos, porque assim podem pegar as riquezas sem constrangimento, ninguém chia, ninguém reclama. Eta vida de gado, viu!

Quando perto de casa, de tanto conversar assuntos sempre atuais, as duas mulheres ao se despedir, ainda comentaram:

― Bia, o povo detrás do matagal deve pensar que a gente é tudo pobre coitado. Quando na verdade a gente vê alegria em coisas simples, nas reuniões, nas festas, nos risos, na proximidade com tantos que consideramos família, enquanto eles lá presos em suas mansões com cerca elétrica, de risos falsos, com dinheiro que julgam solução e o que eles têm é solidão. E medo que um dia a turma aqui de baixo, o povaréu, abra cabeça e exija o que tem direito ― dignidade. Por que a gente não quer só dinheiro, não. Mas se falta dignidade, podemos ser fera.

― Ruza, você parece candidata! Precisamos de mulheres e igualdade de gênero no poder, é preciso reivindicar.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

as bolhas (CENA 35)

 

            01/11/2020

Bia se preparou para visita às casas na rotina solidária. Esperou por Rosária que no horário bateu palmas no portão. Mascaradas, se cumprimentaram de longe e foram, sacola no ombro com papel, caneta, água, álcool e banana como lanche.

― Bom sair de casa sem ser para trabalho, não é, Ruza?

― Nem fala, apesar da gente não poder ficar sem trabalhar, sair e conversar um pouco é bem bom.

― A gente quase nem está se falando mais nestes tempos. Ah, sabe quem Josué e eu demos de cara na pizzaria esses dias? O filho de Dona Jovem, o tal que é jogador de futebol.

― Ah sei, aquele lá gosta de dizer, meu nome é Oswaldo, mas Oswaldo com ‘W’. ― Ruza fez gesto irônico e deu risadinha. ― Como é metido, só porque joga naquele timeco acha que é grande coisa.

― Ele estava à mesa com outro casal. Josué viu primeiro e comentou comigo, mas evitei dar trela. O sujeito é da bolha do presidente. O companheiro de mesa queria entender porque ele tinha dado voto e ainda continuava apoiando. E ele disse que nada importava, o presidente poderia destruir o país que ele iria junto até o fim, até o abismo. Fiquei assustada ao ouvir e imaginando a leva de gente que pensa como ele.

― Quando é para ajudar a mãe, some. Já peguei ele dizendo pra ela se virar, pois não vive a custa dela e tem a própria vida pra resolver. Que ela pusesse Bolão pra bancar despesas, não contasse com ele. Coitada daquela mãe, quando ele aparece é pra tirar paz, grita e é agressivo com ela, vive mais preocupado com corpo sarado e roupa de marca. Lembra quando o marido saiu de casa por causa de mulher? Os meninos pequenos e ela criou sozinha. O marido voltou pra casa com eles adultos.

― Engraçado, ele é pardo, pobre, corpo franzino. Por outro lado, é machista, preconceituoso e tem pouco conhecimento, apesar de curso superior.

― As bolhas mostram nossa sociedade mais complicada do que se pensava. Tanto tempo achando estar melhorando a vida e lá vai o brasilzinho regredindo novamente.

― Bolão é tão diferente, né, tem jeito ingênuo. Sofrido, mas pessoa boa. Lembra quando a namorada trocou ele por outro? iam noivar. Ficou tão desorientado e a mãe viu o filho ali, dependurado do lado de fora da casa. A pobre mulher gritou ajuda enquanto segurava a perna do rapaz. Foi o que salvou. Eles são nossos vizinhos de cerca, mas não vi nada. No outro dia contaram dos gritos desesperados da mulher. Bolão depois disso ficou arredio e acabrunhado aos cantos.

― Tanta mãe com problema no nosso povoado, hein, Bia?

― Nem fala, naquele trecho onde vamos é lugar de muito sofrimento, cada história de deixar boca aberta. Mulheres fortes que dão volta por cima e seguram a família com mão protetora e elas nem têm apoio. Seguram a barra sozinhas.

― Quase não conheço aquele pedaço, tem tanto problema assim?

― Bem, voltando ao que a gente falava, da pizzaria, quando fui ao banheiro dei de cara com namorada do Oswaldo, uma bela mulher. Nossos olhares se encontraram e o olhar me pareceu tristonho, sofrido. Parecia cansada, observei.

― A gente sabe tão pouco das pessoas, e sendo ele machista, tenho dificuldade com homem machista, não dou conta desse comportamento. Com essa pandemia então, os problemas estão pipocando pra todo lado, difícil sobreviver nesses tempos de tanta falta, principalmente se se é mulher, negra e pobre. Preconceito por todo lado, a gente sente na pele. Precisa ir longe não.

As duas mulheres fizeram silêncio e continuaram caminhada até a encruzilhada que dava acesso às casas, quando de repente Bia disse, Ruza, pera aí, vou tirar foto dessas flores, que lindas! Estão sim, respondeu. Depois de subir degraus em pedra e terra batida, chegaram a uma das portas. Quem atendeu trazia semblante exausto. Bia perguntou como andava a situação, anotou o que a família necessitava, e a associação enviaria o que fosse possível, ainda visitariam outros barracos.

No caminho Bia contou:

Ela se casou tão nova, o marido era violento e com várias amantes. Separou e ficou quase vinte anos sem querer saber de homem, até que encontrou um viúvo e estão casados há três anos. Ele é bom homem, se preocupa perguntando se ela está bem. Com tanta labuta, essa mulher teve problemas de saúde, pressão alta, diabetes há mais de cinco anos. Ela teve de sair de casa ao largar o marido violento, foi tempo confuso, trabalhou demais. Fica muito nervosa com os filhos e o esposo atual por não respeitarem seu silêncio. Ela me disse, gosto de ficar quieta às vezes, mas sinto falta de conversar com alguém. Homens não compreendem. Tem hora que minha raiva é tanta que como muito açúcar, tomo litro de refrigerante, mesmo sabendo que é prejudicial. Ao conversar ficou mais aliviada, então sempre dou uma passada para saber como vai, os cuidados que anda tendo, não somente neste momento da pandemia.

Assim, no deserto entre uma moradia e outra, tão indecifrável, as duas mulheres caminhavam na areia quente que repicava pelo chinelo atingindo a perna. Que secura nesses tempos, uma falou.

Até chegar à outra moradia.

domingo, 8 de novembro de 2020

incógnita (CENA 34)

 

01/11/2020

            Osvaldo ouviu sinal de notificação. Pegou celular e disse, não aguento mais esse sinal pra tudo que chega, seja mensagens, emails, notícias, é muito chato ficar nesse automatismo, preciso pedir ajuda aos universitários, como faço para me livrar disso no meu dia a dia, ando cansado do que me deixa alerta. Essa tecnologia é bastante intromissiva, que saco.

Abriu aplicativo e viu mensagem, como você está? Dê notícias! Ao mesmo instante teclou:

― Rapaz, que milagre esse, você aparecer? Quanto tempo a gente não se vê nos almoços, hein?

― Pois é, Valdo, somente on line pra bater papo na atual circunstância. Estou trabalhando de casa e com essa onda de infecção do coronavírus intensificada mais ainda aqui no Sul neste momento, o jeito é continuar em casa, apesar dos negacionistas, não é? ― digitou risadinhas.

― Meu caro rapaz! E os stand up? Anda trabalhando neles? Parece que adivinhou, preciso de auxílio. ― Osvaldo explicou o cansaço da tecnologia através de áudio, pedindo orientação de como paralisar notificação. O jovem retornou explicação de como evitar sons incômodos, dizendo, é bem chato mesmo, não tenho notificação de nada mais. Tudo desligado, para esse momento é muito salutar, o estresse é grande e a invasão na vida da gente intensa.

― Sinto assim. Pensei que a causa era minh’idade, mas vejo jovens saturados também. Como andam as coisas por aí? ― Osvaldo escreveu.

― Ando de repouso, com covid-19 e perdi praticamente todo olfato e paladar. Vista como detalhe por nós no dia a dia, a parte sensorial do nosso corpo não recebe o devido valor, mas tem deixado a semana sem graça pra mim. Onde está o cheiro do ar da manhã, o perfume da Dama da Noite... nada pode ser sentido por mim. Eu que nunca imaginaria viver sem o cheiro das coisas, perder tais sentidos está sendo uma experiência nova e péssima.

― Que horrível, rapaz, ainda bem que os sintomas não foram graves, sei que jovens são na maioria assintomáticos, mas muitos vão a quadros graves, não somente nós idosos.

― Claro que não, até mesmo crianças estão no rol. Mas, Valdo, pior que não sentir nenhuma fragrância no ar, é comer e não saber o que está comendo. Eu comia manga, comia macarrão, comia frango grelhado, tudo simplesmente muito apetitoso aos meus olhos, dentro da minha boca só mastigava massa, uma massa diferente da outra no quesito textura, mas a falta do sabor deixava tudo idêntico.

― Olha que isso não acontece só em sintoma do corona, no câncer, em casos de AIDS e outras doenças as pessoas têm essas perdas.

― Somente agora no sexto dia do início dos sintomas, meus sentidos estão voltando e vejo a diferença imensurável que é uma vida com cheiro e sabor. A vida é boa demais para ser vivida sem graça. Cada detalhe mesmo que pareça pequeno como respirar o cheiro das coisas, ou beber o suco favorito, faz total diferença na vida. Atualmente entendo quando dizem que as melhores coisas estão nos detalhes. Dê valor aos detalhes, você se surpreenderia com a falta que fazem.

― Parece Drumond conversando e falando da vida besta, não é mesmo?

― Tem toda razão, Valdo, ― escreveu o rapaz e colocou risinhos.

Osvaldo disse chacotas por um rápido áudio: Rapazzzzzzz, seu texto está muito bom, é poesia pro meus olhos e som bom nos meus ouvidos, quem sabe continua escrever e contar mais.

O jovem riu e disse, somente você para ver poesia em tudo, Valdo. Osvaldo tornou enfatizar, seu escrito está leve gostoso e com visão saudável da vida, o que é excelente. Despediram-se e o rapaz enviou mensagem para o grupo da família, será que alguém pode trazer almoço pra mim, por favor, completamente dependente do outro. Deitou-se. E até dentro de casa, todos mascarados aguardando resultado do teste que demorava dias.

Osvaldo por seu lado, andando pelo corredor ia pensando como a vida está esquisita nestes 2020. Como se procederá no próximo ano esta enfermidade que está surpreendendo a todos? Como estarão as sofridas pessoas que vivem sem apoio? E como ficarão em 2021?

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

pedras no caminho (CENA 33)

 

14/10/2020

           Embaçamento. Baques. Estrondos. Flashes interpondo imagens distorcidas da realidade levando ao caos.


Assim podia definir o dia a dia e a pandemia no pequeno povoado, nas periferias e em todo Brasil. Nada é como antes. Todas opções preventivas desprezadas por autoridades que negam a realidade, o que nos mostra a trama urdida. A consequência se vê através de corpos ausentes, marcados em cada cadeira, em cada cama, no frio chão de cimento ou terra, nos saguões de hospitais mal equipados e despreparados, nos necrotérios, em covas rasas devido acúmulo de mortes beirando duzentos mil. Até coveiros dizem, não é normal.

 

― Não é normal. Como você lida com isso?

― Pode dar tudo errado, mas vou com ele até o fim.

― Explica isso direito.

― Votei nele e vou com ele até o abismo.

 

Dois casais comiam pizza e os homens discutiam enquanto as mulheres ficavam em silêncio. Na mesa ao lado, Bia e Josué experimentavam sair de casa em plena pandemia que entra na segunda onda nesse outubro, antes mesmo de encerrar a primeira. A gente tem ciência que o governo não tem planos na pandemia, nem na economia para o bem estar da população. Ouve-se palavras ao léu emitidas por altas autoridades, até mesmo em eventos internacionais. Enquanto fazem cenas, ataquem inimigos imaginários, desvirtuem situações, aproveitam nossa dispersão e vão entregando as riquezas naturais e soberania do país. Esses assuntos não saem da pauta, credo. Que espécie essa.

Bia discutia com Josué, revoltada com tamanha insciência na governança e ninguém para mudar o rumo. Quem tem poder calado permanece, afinal não foi afetado como os pobres. Até mesmo aqueles advogados responsáveis por jogar o país no caos, agora vem a público dizer fora governo e que o povo deveria ir à rua. É hilário isso, eles com atitudes irresponsáveis e falta de ética na função, agora cobram de nós rebeldia. E a mídia global, então, continua na sombra, caladinha, não informando o que deve para a população. Felizmente hoje temos jornalistas independentes, porque a depender dessa mídia tradicional é só informação vazia, não se pode esperar nada não, ela tem interesses escusos.

― Bia, por favor, política nessa hora não. Estou tão cansado dessa embromação. Vamos mostrar isso no voto, assim é que se modifica, se mostra insatisfação, apesar de que, vira e mexe não aprendemos. Mudando de assunto, viu o filho da Dona Jovem, aquele jogador de futebol, aí do lado?

Bia parou de conversar e voltou à pizza. Depois levantou dizendo que ia ao banheiro. Ao sair deu de cara com a namorada do jogador, uma morena de cabelos pretos e longos, maquiagem carregada, bem perfumada, com roupa preta colante curtíssima e decotada.

― Sabe, Josué, quando ia ao banheiro fiquei pensando no tempo em que a gente saía para discutir nossos problemas, o que fazer para melhorar nossa intimidade, quais os pontos legais e o que chateava a gente.

― Pois é, agora só se fala desse arremedo de política que temos no nosso pobre e ainda lindo país. Você não para de falar das perdas, dos trambiques que aparecem em meio à essa governança o tempo todo, e do povo na miséria.

― Também depois que descobri seu interesse na minha melhor amiga, o que você queria, que eu voltasse discutir amor? Você desejava dormir com ela, o que queria?

― Bia, já te falei, não aconteceu nada, falei sem pensar. E você com seu amigo da associação te paquerando?

― Mas fui leal a você. O que não ocorreu de seu lado. Por acaso escutou de minha boca que desejava amigo seu? Não. ― Bia buscou fundo na memória e não lembrou de fantasias com outros. A raiva até aumentava.

― Esse ressentimento está acabando com você, com nosso casamento. Você parece não querer esquecer o que aconteceu. Já pedi desculpas e não adiantou.

― Você pariu agora trate de embalar. Considerei estar em seus pensamentos, foi uma frustração pra mim. Aquela Bia morreu, nem sei se conseguirei ser como antes.

― A gente saiu para espairecer e você tem de tocar nesse assunto, não é?

― Por que foge quando a gente discute a relação? Diálogo é fundamental e fica cada um pro seu lado e os problemas continuam na mudez. A situação não está fácil pra ninguém, mas problemas particulares continuam existindo e têm de ser resolvidos.

― Chamo isso de vingança. Você quer se vingar de mim por este e outros motivos e achou um bode expiatório.

― Pois então somos, ambos, vingadores, e continuamos nessa bolha, como o país hoje em dia, cada um na sua bolha.

― Ah, não, não começa com política de novo.

 

             O que era para ser noite diferenciada acabou trazendo à tona segredos guardados intensificando angústia. Josué pediu para embalar pizza para Toninho e pagou conta. Em silêncio entraram no fusca que custou aceitar partida parecendo captar ambiente.

sábado, 24 de outubro de 2020

céu imprevisível (CENA 32)

 

17/10/2020

            E a terra nem sempre em controle. A fatalidade. O carro a frente ao de Osvaldo engatou marcha ao mesmo instante em que o choque intenso do ônibus prensou o veículo da família empurrando-o, rangendo feroz lataria contra lataria, lançando-o ao canteiro lateral e rodopiou por três vezes ao ser jogado na pista que acabara de ser liberada. Do banco traseiro do carro à frente ao de Osvaldo, ao ouvir o grande estrondo os passageiros estarrecidos  viam os rodopios acontecerem enquanto o carro se distanciava. Em questão de instante, o caos. Carros e ônibus diminuíam marcha para observar, pessoas saíam de restaurantes próximos, o ajuntamento de pessoas infernal. Coincidentemente jantava em um restaurante um radialista popular da região que correu para ver o estrago e mais tarde requisitado como testemunha, sem ter presenciado o desenrolar. Apenas viu veículo destruído, ônibus um pouco menos, mas com passageiros vitimados. A chegada de socorro, sirenes barulhentas. Pouco mais tarde, nada mais havia além do canteiro lateral quebrado, poste meio tombado, onde se via  destroços da armação em ferro e marcas no asfalto feitas pela perícia.

 

Osvaldo sentiu-se disforme. Mente e corpo. Dominado por aparente abismo em que realidade e sombra se dissociavam em meio ao esfumar até que a imagem surgia através de luz fria. Movimentou os olhos pela sala imensa vendo duas macas distantes e cada uma com um médico sentado, retirando pedacinhos de objetos da cabeça delicadamente com objeto cirúrgico e colocando em pequena bacia, enquanto conversavam, mas nada compreendia. Movimentou o corpo e viu a maca perto de si, reconheceu o irmão. Mexeu mãos, abrindo e fechando-as, esticou braço e tocou Eustáquio que parecia dormir, mas olhos bem abertos. Notou a mão cerrada e forçou cada dedo até segurar um objeto. Suspendeu e viu a chave de casa e aos poucos memória clareando em flashes que iam e vinham. Olhos marejaram. Sentiu esvair-se em imagens distorcidas. As vistas escureceram.

 

Na periférica Vila Americana moravam trabalhadores de casas simples, alguns lotes vagos, ruas sem asfalto e sem serviço de ônibus. As pessoas precisavam andar alguns quarteirões até via principal para acesso ao transporte público. Um lugar em que portas e janelas escancaradas dizia ser tranquilo. Crianças e jovens brincavam na rua, jogavam queimada, futebol, dançavam quadrilha em festas juninas ou festejavam na adolescência o vinho barato em garrafão entre a turma no período de festas de fim de ano.

Espaço para brincar não faltava. Duas casas após a da família, Osvaldo observava como ali parecia a casa da avó na roça. Um vilarejo com trilhos e barulho de trem de minutos em minutos trafegando por muitos bairros. Corria pra ver quando o trem interrompia viagem e chegava à estação da vila, apenas um retângulo em morro cimentado. Chegou a ver uma moça em desespero se jogando à frente do vagão. Ouvia casos de suicídio e de algumas pessoas alcoolizadas perderem braço ou perna por não ouvirem o sinal do trem que avizinhava. Após alguns quarteirões, muito matagal, uma área enorme com árvores de todo tamanho e espécie na fazenda do Seu Paulino, com o pasto gramado em forma de campinho onde nas folgas a trinca de meninas e meninos se encontrava para jogar futebol, rouba bandeira, queimada, pular corda, dependurar em árvore, gangorrar, gritar, conversar e algumas vezes brigar.

Quando ia para a escola seguia em cima dos trilhos ou saltando dormentes de madeira por quase vinte minutos e depois cortava caminho por várias barrocas de terra, lugar usado pela construção civil no desprezo de material. Terra rosada, bonita e interessante para crianças que brincavam livres e descalças. Nesse perímetro observava casinhas simples em meio à confusão de morros de terra, matos, árvores. O progresso ameaçava a calma. Tratores começaram eliminar tudo aquilo, expulsando moradores ao modificar o espaço urbano em foco no mercado imobiliário e na construção de grande avenida, com pista exclusiva para ônibus. Ali o preço dos impostos se elevou a tal ponto que empurrou famílias para área longínqua numa visível substituição da população pobre para o que seria transformado em bairro de classe média.

Na vila também ocorria mudança. Mudou o nome. Vila Marília. E mais tarde, com mercado imobiliário e desenvolvimento econômico também foi ocorrendo apropriação do espaço por outros mais aquinhoados, transformando-se em bairro. Poucos vizinhos permaneceram. Aos trinta e três, Osvaldo não conhecia novos moradores, casas com outro padrão, rua asfaltada e serviço de transporte público. Faltavam poucos dias para entrega da avenida e do grande shopping construído no loteamento do Seu Paulino.

 

Agora Osvaldo atravessava com a família a via transversa, ainda sem sinalização, para ida à igreja. E ao término da cerimônia, quando já no veículo, disse:

― Coloquem cinto de segurança.  ― O pai rebelde comentou que eram apenas poucos minutos até em casa, não seria necessário. O que todos concordaram.

 

Osvaldo começava acordar e a voz ao seu lado, o homem vestido de branco:

― Você e sua família sofreram acidente de trânsito e vamos te levar para fazer radiografia e ver se está tudo bem. ― Osvaldo quis saber dos familiares. O médico ponderou que faziam todos esforços, mas no momento o importante era ver como ele se encontrava. A enfermeira atravessou longo corredor com a maca, enquanto Osvaldo enxergava teto e extrema luz, ainda sonolento e sem energia pensou, como o céu é imprevisível.

 

― Ai, que que isso? ― O cigarro queimava os dedos. Osvaldo deu salto da cadeira, limpando a roupa com resquícios de cinza incandescente. ― Parece que tudo aconteceu neste momento. Todo meu corpo angustiado nessa rememorização, tal como aquele dia. Esse resgate machuca demais. Como é difícil lembrar.

Osvaldo entrou em casa, pegou água para chá se perguntando por que veio à tona?

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

imagens derretidas (CENA 31)

12/10/2020

            Imagens espalhadas e desconexas persistiam na memória, corpos ausentes e marcados no vazio. Era pesadelo sim.

Vinte e duas horas. Vinte e três de setembro. Atendo o telefone e a voz do outro lado:

― Aconteceu acidente grave com seus pais e irmão. ― Não quiseram dar outras informações, apenas estavam no pronto socorro da capital e necessitavam de parente próximo.

Osvaldo pegou chave do carro, se dirigiu ao local e nos corredores frios do hospital buscou incansavelmente por notícias, mas vinham picadas, poucas palavras, poucas respostas. A equipe trabalhava sob pressão nos casos mais graves que chegavam a todo instante e demandavam decisão emergencial. Osvaldo foi levado à uma maca metálica, dura e gelada onde Eustáquio, em estado de choque, estava em observação. Nunca tinha entrado ali, quanto sangue, gemidos próximos, cortinas brancas e finas onde se entrevia vultos e o corre corre de aventais brancos. Tocou a mão do irmão cerrada em punho e com dificuldade abriu. Uma chave. A chave da nossa casa, daquele tipo antigo e comprida, que ele segurava firme e protetor.

Lembrou o momento em que se despediu da mãe na calçada com um abraço, beijo no pescoço, ela sorrindo, contorcendo em cócegas e Osvaldo disse, te amo mamãe. Mas por que me despedi de minha mãe se estava junto a eles na igreja?

 

Era domingo de início de primavera. Enquanto assistiam a missa, longe dali no local de embarque de ônibus na periferia, o motorista antes de início de nova viagem ao centro da cidade, olhou o relógio e verificou, tenho dez minutos. Avisou que iria comprar água no boteco.

― Duas doses caprichadas de cachaça. ― pediu o motorista ao balconista. Jogou goela abaixo um copo americano cheio da bebida enquanto era observado por duas passageiras pela janela do veículo. Ele era conhecido no local e comentava, ― Sou roda federal! ― Gabando-se da habilidade ao volante. Voltou em cima da hora, ligou a chave do veículo e rumou pela nova via exclusiva de ônibus.

 

A igreja era próxima à casa da família de Osvaldo, nem bem dez minutos de tráfego. O padre encerrou a missa e ao sair, viram o céu estrelado na noite. Entraram no carro. Na via transversa o carro ficara preso ao veículo da frente e quase metade exposta na via exclusiva de ônibus. A família apreensiva de dentro do carro observava o ônibus se aproximando cada vez mais e Osvaldo não conseguia mover sequer um milímetro, mas disse, tem espaço suficiente para ele passar. O que tranquilizou os pais.

 

O motorista a certa distância percebeu a rabeira do automóvel na pista exclusiva e comentou com o auxiliar, ouvido por passageiros:

― Vou tirar um fininho naquele carro, quer ver? ― zombou em voz alta.

 

O estrondo e o mundo veio abaixo.