sábado, 22 de agosto de 2020

coco e bambu pertencem ao povo (CENA 24)

 

12/08/2020

As promessas ficam para depois.

Quem sabe quando o bezerro virar boi.

Mentir faz parte do jogo.

A farra faz parte do bolo.

 

            ― Josué, toda energia que me sobrou, gastei. Foi bom esse arrasta-pé, mas ainda tenho de estender roupa. ― O marido aproveitou o calor da mulher junto ao seu corpo e os dois se abraçaram.

           ― Vou preparar uma gororoba rapidinho pra gente enquanto você pendura roupa.

            Josué deu um grito em Toninho, comida tá pronta. Os três comeram a apetitosa mistura.

            ― Essa pimentinha e esses pedaços de coco deram sabor especial, pai. ― Falou Toninho.

            Alguns dias depois, ouviram a gritaria vindo de fora. Bia correu até a porta e uma vizinha feito louca chegou dizendo:

            ― Acode, gente, tá a maior confusão no barraco da Penha, todo mundo tá agonizando em falta de ar. Uma das meninas, mãe das duas criancinhas tá choro só vendo elas tremendo de febre e desfalecendo e pra piorar Tinoco está no chão, babando e estrebuchando, a família inteira assustada sem saber o que fazer, sem condições de ajudar o homem. ― Josué, Bia e Toninho pegaram as máscaras e correram pra lá.

            Penha veio das Geraes, da cidade de Januária, na região do médio São Francisco. A população de lá é grande, é a terceira do norte de Minas em tamanho. Assim que a mãe morreu, os familiares já largados um do outro, família grande, os parentes nem podiam se sustentar, ainda mais uma moça na flor da idade que nem ela com a fome batendo com força. Puseram no ônibus e mandaram morar com o irmão casado que vivia pros lados de Belo Horizonte, numa das comunidades da periferia chamada Morro Alto.

‘Na hora dos adeuses, do até logo, do até mais, do até quem sabe um dia, Penha quase chorou de paixão, mas mulher não chora à toa, ou chora?’

            Desde os treze trançou de casa em casa como ajudante doméstica escravizada, mal mal ganhava para sobreviver, explorada por patroas que traziam mocinhas do interior na troca de cama e comida. O troco recebido entregava pro irmão, bom homem trabalhador, mas rústico, dava nenhuma atenção para mulher nada, punha o sofrível dentro de casa, no tanto que dava conta tendo em vista o pouco estudo que tinha. Homem da construção, pelejava na força bruta, sem noção que construía a cidade com suas mãos. O barraco era aprumado olhando os existentes ao redor, de papelão, bambu, madeira, o seu era de tijolo, todos em telhado de zinco. Penha não se acostumava com aquela vida de cidade. Januária que era bom, ela contava para as patroas que aceitavam ouvir, porque tinha aquelas que não admitiam conversa com empregada, principalmente de pele preta. Em Januária, no povoado todos eram uma só família, nem me sentia largada lá, não, andava pelas ruas como se me pertencesse cada grão de terra, mesmo na secura própria da região de caatinga. O que salvava era o rio. Rio São Francisco. O velho Chico como carinhosamente é chamado pelo povo. As crianças faziam festa nas águas barrentas do rio, que tinha muito peixe e livrava as famílias da fome. Pescadores, ribeirinhos conhecedores daquelas águas sabiam respeitar sua profundidade. Além dos artesãos que da lama lapidam artesania pura em barro até hoje. O Vale do Peruaçu então, nem se fala, que belezura, cavernas de formação calcária com desenhos rupestres, tem ainda os frutos do pequi, do murici, do jatobá, araticum, tantos atrativos por onde eu passeava sentindo ser pedaço. A flor do sertão, o mandacaru exuberante de negro vistoso, alta, a caminhar nas ruelas da comunidade a procura de si, com o olhar a correr solto. Encontrou Tião, mas ele era homem sem eira nem beira. Ela se apaixonou aos dezessete e assim, quando o fruto se deu, Tião desapareceu. A menina sequer conheceu o pai, sabia dele, ouvia falar nos becos, mas ajuda financeira para criar, nunca obteve. Penha foi à luta de criar filha sozinha.  O irmão cedeu um pedaço de terreno lá embaixo, precisava descer mais de vinte degraus em terra. Penha na bravura de mulher, juntou os trocados e agora tinha a própria casa, um barraco para a família, ela e filha. Penha, ingênua e doce, analfabeta, nada sabia das letras, dizia ‘aprende-se é nas conversas. Ouvido na escuta, sem meeira para correr os olhos nas escritas. Professor é a gente mesmo’, mas dinheiro conto muito bem. Desistiu de homem por uns tempos. Mas o corpo cobra. O desejo retorna. E em pouco tempo lá estava o homem da sua vida, esbanjando para seu lado e lhe dá uma filha, outra que mais uma vez não respeita o pai como pai, apenas sabe que tem. Penha pegou as duas filhas e se mudou para o sul, e assim conheceu Tinoco, ‘homem de senvergonhice abundante e coração dilatado’. Ele dizia ‘nunca soube quem forjou minhas costelas sou filho do mundo e vicejo num canteiro de bem-me-quer. Homem que é homem tem hora para tudo. Para disparar o parabelum contra a humana gente, para disparar uma palavra certeira contra a ignomínia das gentes, para cumprir os desmando no coração outro, para rezar para os santos curar nossa fome de aguardente e a nossa sede de comida.’ Ao vislumbrar a beleza daquela mulher o homem se entregou. O hábito de Tinoco era o problema, bebida. Penha queria ser amada, acreditava ter direito de ser e o amor tudo salva, pensava ela e ainda, sentia que esse homem a queria de verdade, amor pra vida toda. Por que não, o Tinoco? A mulher segue o coração, quando sóbrio deixava transparecer um lado diferente e que somente ela conhecia. Mas no resto, por causa da dependência esse lado foi desaparecendo, e findando, até que a bravura tomou rédeas. Tanto a mulher como as filhas, que ainda moravam com a mãe e como ela tiveram filhos de pais diferentes e desaparecidos, sofriam. Ele exigia dinheiro e para conseguir usava força e agressividade. Tinoco também tivera vida largada, com pai alcoolista e mãe trabalhadora, os filhos cresceram soltos e de criança o pai oferecia bebida.

            Agora a família caída no chão do barraco. Tinoco, Penha, as duas filhas, uma com duas crianças e a outra esperando o segundo filho, sentindo o quanto a luta pela sobrevivência é quase sobrenatural para quem é pobre e não tem direito nem oportunidade.

            Bia viu a imagem aterradora, pegou o celular e ligou para o SAMU, o serviço de ambulância demorou chegar devido ao aumento de casos de corona entre a população e também entre os plantonistas, as equipes de atendimento de saúde estão com alto grau de contaminação entre infectados e mortos.

            Quando a equipe entrou no barraco viu as pessoas ofegantes, com dificuldade de respirar, inclusive as crianças. Levaram todos de uma vez pois a situação era trágica. Bia escutou eles conversando enquanto arrumavam a ambulância:

            ― As pessoas pensam que o vírus é resfriado comum, mas as febres altas, dores de garganta e aperto no peito chegam a tal ponto que parece que a vida vai embora, quando não, usa-se a técnica da ressuscitação. A intubação passa a necessária e feita sob anestesia geral, costuma durar muito tempo. A dor é tão grande que a pessoa é sedada para tolerar. E no período de tratamento, a pessoa vai perdendo musculatura e a intubação pode deixar sequela na boca ou cordas vocais. Quando não faltam medicamentos para tudo isso. É terrível.

            ― Além disso, quem é mais frágil costuma nem aguentar por causa do tratamento invasivo. Sei que essa tal doença nos assusta a cada dia. As pessoas andam abusando muito antes da gente ter uma vacina honesta. ― Disse o outro.

            Bia e Josué passaram o sábado de oito de agosto em observação aos casebres, pedindo que todos usassem máscara até dentro do barraco para se preservar. Uma luta difícil devido falta de água e sem saneamento. As duas filhas de Penha foram liberadas após uma semana e as crianças ficaram sob observação por dois dias e acusaram febre que não seguiu. Penha se recuperou, mas Tinoco, pela fragilidade em que se encontrava, partiu e era um dos mais de cem mil mortos por coronavírus.

            ― Em todo país houve manifestações pela rede social mostrando a insatisfação da sociedade pelo tratamento dado a nós, cidadãos. O mais terrível foi o marketing dado ao presidente que saboreou a comida de um restaurante exatamente no mesmo momento em que a cifra alcançava a terrível marca. O povo brasileiro desolado com o número de vítimas e a gente abismada com a insensibilidade da classe rica e poderosa do país, inclusive instituições que não se movem e continuam compactuando com a prática de morte existente. O que se vê é atraso e destruição. Desumanidade e corrupção.

            Bia contava para Josué o que escutou da conversa dos socorristas, e horrorizada com os problemas, continuou:

― A gente nem presta atenção nas atitudes e continua saindo pra rua aos montes. E aqui no povoado, ninguém está conseguindo respirar, ― arquejou com dificuldade. ― Veja, achei este livrinho em casa de Penha e um trecho não me sai da cabeça:

‘Ah, sou e não sou. Deus nos fez e não quer nos perder.

Ninguém morre nem fica encantado. A matéria de Deus é inviolável. Viramos pó, poeira, terra, vegetal, raiz, barro, planta, árvore, passarinho. Viramos água, rio, mar, nuvem, peixe.

Continuamos por aí no fogo, no ar, na terra, na água’.


* Em itálico: trechos de Os pés de São Francisco do escritor Ronald Claver