quinta-feira, 29 de outubro de 2020

pedras no caminho (CENA 33)

 

14/10/2020

           Embaçamento. Baques. Estrondos. Flashes interpondo imagens distorcidas da realidade levando ao caos.


Assim podia definir o dia a dia e a pandemia no pequeno povoado, nas periferias e em todo Brasil. Nada é como antes. Todas opções preventivas desprezadas por autoridades que negam a realidade, o que nos mostra a trama urdida. A consequência se vê através de corpos ausentes, marcados em cada cadeira, em cada cama, no frio chão de cimento ou terra, nos saguões de hospitais mal equipados e despreparados, nos necrotérios, em covas rasas devido acúmulo de mortes beirando duzentos mil. Até coveiros dizem, não é normal.

 

― Não é normal. Como você lida com isso?

― Pode dar tudo errado, mas vou com ele até o fim.

― Explica isso direito.

― Votei nele e vou com ele até o abismo.

 

Dois casais comiam pizza e os homens discutiam enquanto as mulheres ficavam em silêncio. Na mesa ao lado, Bia e Josué experimentavam sair de casa em plena pandemia que entra na segunda onda nesse outubro, antes mesmo de encerrar a primeira. A gente tem ciência que o governo não tem planos na pandemia, nem na economia para o bem estar da população. Ouve-se palavras ao léu emitidas por altas autoridades, até mesmo em eventos internacionais. Enquanto fazem cenas, ataquem inimigos imaginários, desvirtuem situações, aproveitam nossa dispersão e vão entregando as riquezas naturais e soberania do país. Esses assuntos não saem da pauta, credo. Que espécie essa.

Bia discutia com Josué, revoltada com tamanha insciência na governança e ninguém para mudar o rumo. Quem tem poder calado permanece, afinal não foi afetado como os pobres. Até mesmo aqueles advogados responsáveis por jogar o país no caos, agora vem a público dizer fora governo e que o povo deveria ir à rua. É hilário isso, eles com atitudes irresponsáveis e falta de ética na função, agora cobram de nós rebeldia. E a mídia global, então, continua na sombra, caladinha, não informando o que deve para a população. Felizmente hoje temos jornalistas independentes, porque a depender dessa mídia tradicional é só informação vazia, não se pode esperar nada não, ela tem interesses escusos.

― Bia, por favor, política nessa hora não. Estou tão cansado dessa embromação. Vamos mostrar isso no voto, assim é que se modifica, se mostra insatisfação, apesar de que, vira e mexe não aprendemos. Mudando de assunto, viu o filho da Dona Jovem, aquele jogador de futebol, aí do lado?

Bia parou de conversar e voltou à pizza. Depois levantou dizendo que ia ao banheiro. Ao sair deu de cara com a namorada do jogador, uma morena de cabelos pretos e longos, maquiagem carregada, bem perfumada, com roupa preta colante curtíssima e decotada.

― Sabe, Josué, quando ia ao banheiro fiquei pensando no tempo em que a gente saía para discutir nossos problemas, o que fazer para melhorar nossa intimidade, quais os pontos legais e o que chateava a gente.

― Pois é, agora só se fala desse arremedo de política que temos no nosso pobre e ainda lindo país. Você não para de falar das perdas, dos trambiques que aparecem em meio à essa governança o tempo todo, e do povo na miséria.

― Também depois que descobri seu interesse na minha melhor amiga, o que você queria, que eu voltasse discutir amor? Você desejava dormir com ela, o que queria?

― Bia, já te falei, não aconteceu nada, falei sem pensar. E você com seu amigo da associação te paquerando?

― Mas fui leal a você. O que não ocorreu de seu lado. Por acaso escutou de minha boca que desejava amigo seu? Não. ― Bia buscou fundo na memória e não lembrou de fantasias com outros. A raiva até aumentava.

― Esse ressentimento está acabando com você, com nosso casamento. Você parece não querer esquecer o que aconteceu. Já pedi desculpas e não adiantou.

― Você pariu agora trate de embalar. Considerei estar em seus pensamentos, foi uma frustração pra mim. Aquela Bia morreu, nem sei se conseguirei ser como antes.

― A gente saiu para espairecer e você tem de tocar nesse assunto, não é?

― Por que foge quando a gente discute a relação? Diálogo é fundamental e fica cada um pro seu lado e os problemas continuam na mudez. A situação não está fácil pra ninguém, mas problemas particulares continuam existindo e têm de ser resolvidos.

― Chamo isso de vingança. Você quer se vingar de mim por este e outros motivos e achou um bode expiatório.

― Pois então somos, ambos, vingadores, e continuamos nessa bolha, como o país hoje em dia, cada um na sua bolha.

― Ah, não, não começa com política de novo.

 

             O que era para ser noite diferenciada acabou trazendo à tona segredos guardados intensificando angústia. Josué pediu para embalar pizza para Toninho e pagou conta. Em silêncio entraram no fusca que custou aceitar partida parecendo captar ambiente.

sábado, 24 de outubro de 2020

céu imprevisível (CENA 32)

 

17/10/2020

            E a terra nem sempre em controle. A fatalidade. O carro a frente ao de Osvaldo engatou marcha ao mesmo instante em que o choque intenso do ônibus prensou o veículo da família empurrando-o, rangendo feroz lataria contra lataria, lançando-o ao canteiro lateral e rodopiou por três vezes ao ser jogado na pista que acabara de ser liberada. Do banco traseiro do carro à frente ao de Osvaldo, ao ouvir o grande estrondo os passageiros estarrecidos  viam os rodopios acontecerem enquanto o carro se distanciava. Em questão de instante, o caos. Carros e ônibus diminuíam marcha para observar, pessoas saíam de restaurantes próximos, o ajuntamento de pessoas infernal. Coincidentemente jantava em um restaurante um radialista popular da região que correu para ver o estrago e mais tarde requisitado como testemunha, sem ter presenciado o desenrolar. Apenas viu veículo destruído, ônibus um pouco menos, mas com passageiros vitimados. A chegada de socorro, sirenes barulhentas. Pouco mais tarde, nada mais havia além do canteiro lateral quebrado, poste meio tombado, onde se via  destroços da armação em ferro e marcas no asfalto feitas pela perícia.

 

Osvaldo sentiu-se disforme. Mente e corpo. Dominado por aparente abismo em que realidade e sombra se dissociavam em meio ao esfumar até que a imagem surgia através de luz fria. Movimentou os olhos pela sala imensa vendo duas macas distantes e cada uma com um médico sentado, retirando pedacinhos de objetos da cabeça delicadamente com objeto cirúrgico e colocando em pequena bacia, enquanto conversavam, mas nada compreendia. Movimentou o corpo e viu a maca perto de si, reconheceu o irmão. Mexeu mãos, abrindo e fechando-as, esticou braço e tocou Eustáquio que parecia dormir, mas olhos bem abertos. Notou a mão cerrada e forçou cada dedo até segurar um objeto. Suspendeu e viu a chave de casa e aos poucos memória clareando em flashes que iam e vinham. Olhos marejaram. Sentiu esvair-se em imagens distorcidas. As vistas escureceram.

 

Na periférica Vila Americana moravam trabalhadores de casas simples, alguns lotes vagos, ruas sem asfalto e sem serviço de ônibus. As pessoas precisavam andar alguns quarteirões até via principal para acesso ao transporte público. Um lugar em que portas e janelas escancaradas dizia ser tranquilo. Crianças e jovens brincavam na rua, jogavam queimada, futebol, dançavam quadrilha em festas juninas ou festejavam na adolescência o vinho barato em garrafão entre a turma no período de festas de fim de ano.

Espaço para brincar não faltava. Duas casas após a da família, Osvaldo observava como ali parecia a casa da avó na roça. Um vilarejo com trilhos e barulho de trem de minutos em minutos trafegando por muitos bairros. Corria pra ver quando o trem interrompia viagem e chegava à estação da vila, apenas um retângulo em morro cimentado. Chegou a ver uma moça em desespero se jogando à frente do vagão. Ouvia casos de suicídio e de algumas pessoas alcoolizadas perderem braço ou perna por não ouvirem o sinal do trem que avizinhava. Após alguns quarteirões, muito matagal, uma área enorme com árvores de todo tamanho e espécie na fazenda do Seu Paulino, com o pasto gramado em forma de campinho onde nas folgas a trinca de meninas e meninos se encontrava para jogar futebol, rouba bandeira, queimada, pular corda, dependurar em árvore, gangorrar, gritar, conversar e algumas vezes brigar.

Quando ia para a escola seguia em cima dos trilhos ou saltando dormentes de madeira por quase vinte minutos e depois cortava caminho por várias barrocas de terra, lugar usado pela construção civil no desprezo de material. Terra rosada, bonita e interessante para crianças que brincavam livres e descalças. Nesse perímetro observava casinhas simples em meio à confusão de morros de terra, matos, árvores. O progresso ameaçava a calma. Tratores começaram eliminar tudo aquilo, expulsando moradores ao modificar o espaço urbano em foco no mercado imobiliário e na construção de grande avenida, com pista exclusiva para ônibus. Ali o preço dos impostos se elevou a tal ponto que empurrou famílias para área longínqua numa visível substituição da população pobre para o que seria transformado em bairro de classe média.

Na vila também ocorria mudança. Mudou o nome. Vila Marília. E mais tarde, com mercado imobiliário e desenvolvimento econômico também foi ocorrendo apropriação do espaço por outros mais aquinhoados, transformando-se em bairro. Poucos vizinhos permaneceram. Aos trinta e três, Osvaldo não conhecia novos moradores, casas com outro padrão, rua asfaltada e serviço de transporte público. Faltavam poucos dias para entrega da avenida e do grande shopping construído no loteamento do Seu Paulino.

 

Agora Osvaldo atravessava com a família a via transversa, ainda sem sinalização, para ida à igreja. E ao término da cerimônia, quando já no veículo, disse:

― Coloquem cinto de segurança.  ― O pai rebelde comentou que eram apenas poucos minutos até em casa, não seria necessário. O que todos concordaram.

 

Osvaldo começava acordar e a voz ao seu lado, o homem vestido de branco:

― Você e sua família sofreram acidente de trânsito e vamos te levar para fazer radiografia e ver se está tudo bem. ― Osvaldo quis saber dos familiares. O médico ponderou que faziam todos esforços, mas no momento o importante era ver como ele se encontrava. A enfermeira atravessou longo corredor com a maca, enquanto Osvaldo enxergava teto e extrema luz, ainda sonolento e sem energia pensou, como o céu é imprevisível.

 

― Ai, que que isso? ― O cigarro queimava os dedos. Osvaldo deu salto da cadeira, limpando a roupa com resquícios de cinza incandescente. ― Parece que tudo aconteceu neste momento. Todo meu corpo angustiado nessa rememorização, tal como aquele dia. Esse resgate machuca demais. Como é difícil lembrar.

Osvaldo entrou em casa, pegou água para chá se perguntando por que veio à tona?

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

imagens derretidas (CENA 31)

12/10/2020

            Imagens espalhadas e desconexas persistiam na memória, corpos ausentes e marcados no vazio. Era pesadelo sim.

Vinte e duas horas. Vinte e três de setembro. Atendo o telefone e a voz do outro lado:

― Aconteceu acidente grave com seus pais e irmão. ― Não quiseram dar outras informações, apenas estavam no pronto socorro da capital e necessitavam de parente próximo.

Osvaldo pegou chave do carro, se dirigiu ao local e nos corredores frios do hospital buscou incansavelmente por notícias, mas vinham picadas, poucas palavras, poucas respostas. A equipe trabalhava sob pressão nos casos mais graves que chegavam a todo instante e demandavam decisão emergencial. Osvaldo foi levado à uma maca metálica, dura e gelada onde Eustáquio, em estado de choque, estava em observação. Nunca tinha entrado ali, quanto sangue, gemidos próximos, cortinas brancas e finas onde se entrevia vultos e o corre corre de aventais brancos. Tocou a mão do irmão cerrada em punho e com dificuldade abriu. Uma chave. A chave da nossa casa, daquele tipo antigo e comprida, que ele segurava firme e protetor.

Lembrou o momento em que se despediu da mãe na calçada com um abraço, beijo no pescoço, ela sorrindo, contorcendo em cócegas e Osvaldo disse, te amo mamãe. Mas por que me despedi de minha mãe se estava junto a eles na igreja?

 

Era domingo de início de primavera. Enquanto assistiam a missa, longe dali no local de embarque de ônibus na periferia, o motorista antes de início de nova viagem ao centro da cidade, olhou o relógio e verificou, tenho dez minutos. Avisou que iria comprar água no boteco.

― Duas doses caprichadas de cachaça. ― pediu o motorista ao balconista. Jogou goela abaixo um copo americano cheio da bebida enquanto era observado por duas passageiras pela janela do veículo. Ele era conhecido no local e comentava, ― Sou roda federal! ― Gabando-se da habilidade ao volante. Voltou em cima da hora, ligou a chave do veículo e rumou pela nova via exclusiva de ônibus.

 

A igreja era próxima à casa da família de Osvaldo, nem bem dez minutos de tráfego. O padre encerrou a missa e ao sair, viram o céu estrelado na noite. Entraram no carro. Na via transversa o carro ficara preso ao veículo da frente e quase metade exposta na via exclusiva de ônibus. A família apreensiva de dentro do carro observava o ônibus se aproximando cada vez mais e Osvaldo não conseguia mover sequer um milímetro, mas disse, tem espaço suficiente para ele passar. O que tranquilizou os pais.

 

O motorista a certa distância percebeu a rabeira do automóvel na pista exclusiva e comentou com o auxiliar, ouvido por passageiros:

― Vou tirar um fininho naquele carro, quer ver? ― zombou em voz alta.

 

O estrondo e o mundo veio abaixo.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

lembranças (CENA 30)

 

04/10/2020

            Osvaldo a caminho da cozinha sentiu leve tonteira. Devo ter me levantado rápido, em seguida escorou a mão à parede. Acima, o quadro antigo em nanquim que ele pintara. A rua em pedras na cidade de Mariana ou Diamantina, já nem me recordo bem de onde, e olhava as fachadas dos casarões antigos, num deles um galo ostentando garboso a cumeeira do telhado indicando a direção do vento. Os passeios com escadaria conforme exigido para cidade construída entre montanhas. A solidão monótona da paisagem em preto e branco. O homem relembrou, eu gostava de desenhar. Apenas dois quadros com paisagem barroca da cidade de Minas Gerais enfeitavam a parede, resquícios de prazer antigo. Por que não continuei a arte do nanquim? Sem responder, entrou na cozinha.

Requentou café, bebeu num gole e voltou ao cantinho para continuar fumegando. Acendeu novo cigarro e Leila ainda em seus pensamentos longínquos. Saberei como ela está quando nos vermos, temos mesma idade, como andará a saúde nestes tempos de coronavírus? Setentões tomam cuidado dobrado, as mudanças fisiológicas nos devoram e exigem acompanhamento cotidiano. Como dizem, mulheres mostram-se sexo forte até neste momento. Suportam baques bem mais que nós, os garotos. Osvaldo numa sorridela lembrou música do Leoni, e cantou sonoramente “meninas são tão mulheres, seus truques e confusões ... garotos não resistem aos seus mistérios, garotos nunca dizem não... perto de uma mulher, são só garotos... ”.

É verdade, Leila para mim era isso, a mulher que me apresentou o lado forte desse sexo. Custei descobrir, aquela faísca era mais do que amor de amante, era amorosidade do amigo leal, com a qual contei durante época turbulenta de minha vida. Leila não conheceu a versão inicial, a paixão que senti. Apenas Maria e Aluísio tinham ideia. Maria percebeu olhares, meu encantamento quando Leila balbuciava palavra que fosse e num dos encontros sem a presença dos outros me dissera, por que não conta pra Leila, Valdo, pra quê continuar com essa dor sufocante? Ouço ainda agora ela me dizendo isso e eu respeitando e não tecendo comentários. Também Aluísio descobriu, mas como eu, ele tinha lá suas dificuldades em relação à Maria.

 

Maria, diferente de nós, era bem nascida, com familiares rígidos e conservadores. O coração bateu por Aluísio, rapaz habilidoso, mas cuja inteligência demandava dele esforço pessoal para qual não encontrava tempo e disposição. A vida não tinha sido fácil. A mãe falecera de câncer quando ele, ainda menino, já contribuía financeiramente, pois o pai mal e mal conseguia dar suporte familiar. Com a morte da mãe, o pai exigiu mais, cobrando decisões adultas. Quando rapaz, Aluísio passou a responsável pelo lar, pois o pai apareceu também com câncer, e em fase avançada recebia do rapaz comida na boca. Era o mais adulto dentre nós, via as coisas de forma objetiva e racional, sem contornos romanescos ou fantasiosos, mas sensível ao olhar, gostava de fotografar e escrever poemas. Queria ser escritor, o pai exigia que se formasse em Administração, para agradar não se opunha. O tom de pele parda, cabelos negros em cachos. Maria o achava bonito em sua altura média e magra. Ela, longo cabelo amendoado, pele clara e porte mignon, faziam dela pequenina. Maria cogitou auxiliar Aluísio, mas ele resistia orgulhoso. Osvaldo percebeu o sentimento desabrochando no casal quando escutou, quem aquela filhinha de papai pensa que é, disse Aluísio. Osvaldo falou, não custa aceitar ajuda de Maria, qual o problema? Você corre risco de perder o último ano do colégio. Juntos estudavam na biblioteca e entre os dois jovens surgia carinho e afeto, mas também sentimentos contraditórios, elo que ambos captaram interferindo na respiração e batidas do coração, até que num momento de raiva, não tem jeito, os incômodos são falados.

Maria se tornou ousada com a convivência entre nós, já não concordava em tudo com a mãe. Aos poucos abria asas como quem experimenta o respirar genuíno. Sei que ela contribuiu para surgimento do homem bom existente nele, apoio importante quando o pai se foi. Estavam juntos na formatura. A turma em sintonia um com o outro fez despertar na gente a solidariedade e importância grupal.

 

Osvaldo, de repente viu projetar nuvens negras. Aconteceu em setembro ou outubro? Como gravura surrealista de quadro de Salvador Dalí o acontecimento saltara frente aos olhos. Não, não foi em outubro. Fora no primeiro dia de primavera de setembro. As imagens difusas e derretidas em sua mente. O pesadelo arrebentou em furor. Precisou respirar e agonizou através da fumaça, o rosto dolorido e lágrimas no semblante. Não enxergava bem devido embaçamento, como se a vida, num baque, colocasse em dúvida a existência.