14/10/2020
Assim podia definir o dia a dia e a pandemia no pequeno povoado, nas periferias e em todo Brasil. Nada é como antes. Todas opções preventivas desprezadas por autoridades que negam a realidade, o que nos mostra a trama urdida. A consequência se vê através de corpos ausentes, marcados em cada cadeira, em cada cama, no frio chão de cimento ou terra, nos saguões de hospitais mal equipados e despreparados, nos necrotérios, em covas rasas devido acúmulo de mortes beirando duzentos mil. Até coveiros dizem, não é normal.
― Não é normal. Como você lida
com isso?
― Pode dar tudo errado, mas vou
com ele até o fim.
― Explica isso direito.
― Votei nele e vou com ele até o
abismo.
Dois casais comiam pizza e os homens discutiam enquanto as mulheres ficavam em silêncio. Na mesa ao lado, Bia e Josué experimentavam sair de casa em plena pandemia que entra na segunda onda nesse outubro, antes mesmo de encerrar a primeira. A gente tem ciência que o governo não tem planos na pandemia, nem na economia para o bem estar da população. Ouve-se palavras ao léu emitidas por altas autoridades, até mesmo em eventos internacionais. Enquanto fazem cenas, ataquem inimigos imaginários, desvirtuem situações, aproveitam nossa dispersão e vão entregando as riquezas naturais e soberania do país. Esses assuntos não saem da pauta, credo. Que espécie essa.
Bia discutia com Josué, revoltada
com tamanha insciência na governança e ninguém para mudar o rumo. Quem tem
poder calado permanece, afinal não foi afetado como os pobres. Até mesmo aqueles
advogados responsáveis por jogar o país no caos, agora vem a público dizer fora
governo e que o povo deveria ir à rua. É hilário isso, eles com atitudes
irresponsáveis e falta de ética na função, agora cobram de nós rebeldia. E
a mídia global, então, continua na sombra, caladinha, não informando o que deve
para a população. Felizmente hoje temos jornalistas independentes, porque a depender
dessa mídia tradicional é só informação vazia, não se pode esperar nada não,
ela tem interesses escusos.
― Bia, por favor, política nessa
hora não. Estou tão cansado dessa embromação. Vamos mostrar isso no voto, assim
é que se modifica, se mostra insatisfação, apesar de que, vira e mexe não
aprendemos. Mudando de assunto, viu o filho da Dona Jovem, aquele jogador de
futebol, aí do lado?
Bia parou de conversar e voltou à
pizza. Depois levantou dizendo que ia ao banheiro. Ao sair deu de cara com a
namorada do jogador, uma morena de cabelos pretos e longos, maquiagem carregada,
bem perfumada, com roupa preta colante curtíssima e decotada.
― Sabe, Josué, quando ia ao
banheiro fiquei pensando no tempo em que a gente saía para discutir nossos
problemas, o que fazer para melhorar nossa intimidade, quais os pontos legais e
o que chateava a gente.
― Pois é, agora só se fala desse
arremedo de política que temos no nosso pobre e ainda lindo país. Você não para
de falar das perdas, dos trambiques que aparecem em meio à essa governança o
tempo todo, e do povo na miséria.
― Também depois que descobri seu
interesse na minha melhor amiga, o que você queria, que eu voltasse discutir
amor? Você desejava dormir com ela, o que queria?
― Bia, já te falei, não aconteceu
nada, falei sem pensar. E você com seu amigo da associação te paquerando?
― Mas fui leal a você. O que não
ocorreu de seu lado. Por acaso escutou de minha boca que desejava amigo seu?
Não. ― Bia buscou fundo na memória e não lembrou de fantasias com outros. A raiva até aumentava.
― Esse ressentimento está
acabando com você, com nosso casamento. Você parece não querer esquecer o que
aconteceu. Já pedi desculpas e não adiantou.
― Você pariu agora trate de
embalar. Considerei estar em seus pensamentos, foi uma frustração pra mim.
Aquela Bia morreu, nem sei se conseguirei ser como antes.
― A gente saiu para espairecer e
você tem de tocar nesse assunto, não é?
― Por que foge quando a gente discute
a relação? Diálogo é fundamental e fica cada um pro seu lado e os problemas
continuam na mudez. A situação não está fácil pra ninguém, mas problemas
particulares continuam existindo e têm de ser resolvidos.
― Chamo isso de vingança. Você
quer se vingar de mim por este e outros motivos e achou um bode expiatório.
― Pois então somos, ambos,
vingadores, e continuamos nessa bolha, como o país hoje em dia, cada um na sua
bolha.
― Ah, não, não começa com
política de novo.
O que era para ser noite diferenciada acabou trazendo à tona segredos guardados intensificando angústia. Josué pediu para embalar pizza para Toninho e pagou conta. Em silêncio entraram no fusca que custou aceitar partida parecendo captar ambiente.