terça-feira, 18 de dezembro de 2018

SAUDADE DE TAIGUARA

   Redescobri Taiguara... Há muito não me empolgava ouvir música enquanto em outra atividade. Mas, nesse dia, o CD duplo do artista entoava as cantigas dos anos setenta. Relembrei Taiguara. Que ótimo retorno! Ele se foi tão jovem ainda. E quem o trouxe a mim foi Eliane Potiguara, de quem estava lendo um texto bem interessante sobre a questão da referência da e do indígena. Empoderar todas e todos indígenas, valorizar a linguagem mãe, dar voz ao verdadeiro idioma brasileiro, não valorizado por nós. 

   Através da feminista, de origem indígena. A novidade, para mim, foi descobrir que Taiguara tinha ascendência indígena também. E que Taiguara e Eliane Potiguara foram casados. A gente que viveu a época da ditadura se recorda de como se incomodavam com a militância desse engajado homem. E ele queria cantar.

  Queria cantar o amor, a liberdade, o direito à palavra. E, constatamos como está atual esse nosso aguerrido cantor, compositor, ativista. Cada estrofe, cada verso, cada palavra, toma força irradiante a quem escuta. Veja bem, a quem escuta! Porque existe diferença muito grande entre ouvir e escutar, não é mesmo!

   Taiguara me fez tão bem. Cantei junto. Energizada, me transformei. Eu tinha vinte anos. Eu queria lutar por direitos e deveres iguais para todas e todos. Eu quero lutar por direitos e deveres iguais. Vou continuar na luta por direitos e deveres iguais para todas e todos. Eliane Potiguara é uma garota! Eu sou uma garota! 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

IDADE DE SENHORA II

IDADE DE SENHORA II
11/12/2018
   Retorno ao ortopedista.

   Aguardo na saleta. De repente o doutor passa apressado por mim e pela secretária e diz, surgiu um imprevisto, aguarde mais alguns minutos e desapareceu.

   — Deve ter acontecido algo grave, ele não é disso. — Disse a secretária.

   Meia hora depois.

   — Fiz a senhora esperar demais, vamos entrando junto comigo. — Fechou a porta do consultório. — Eu nem me lembrava que tinha esquecido o cartão no banco quando o pessoal de lá me telefonou.

   — Esquecimento é algo que tem me acontecido também. Sem problema, Doutor.

   — E como vão os trinta e oito? — Disse após leitura rápida dos dados pelo computador.

   — Achei super interessante este modo de ver. E bem diferente.

   — Eu me preocupo demais com meus pacientes. Quero sempre o melhor para eles e faço de tudo para encontrar soluções que melhorem seu tempo de vida, afinal, velho é quem já morreu, não é mesmo?

   — Verdade! — respondi, enquanto o médico analisava os raios X da coluna cervical e lombar. — Você poderia me explicar o que vê nos exames, onde estão os osteófitos e se terei que operar?

   — Não se preocupe com o diagnóstico do radiologista. O importante mesmo é o que vamos ver aqui nos raios X. — Passou o esquadro, o transferidor, traçou retas que se projetavam em ângulos, calculou e continuou:

   — Calma, calma. Não se preocupe com os osteófitos, quase todo mundo tem e até quem já morreu. Vou explicar para a senhora assim que fizer esses cálculos. Isso que é importante para sabermos o que teremos de fazer. Como anda os preparativos para o Natal?

   — Tranquilo. Não tenho o costume de me preocupar muito com tais preparativos.

   — Realmente não é o mais importante. O importante é saúde.

   — Verdade.

   Solicitou exames complementares. Disse:tenha cuidado até retornar, e continuam as recomendações: trabalho moderado, sem excessos, pois tenho uma paciente que em situação parecida, não respeitou a orientação, carregou mala pesada demais e acabou quebrando a coluna. Não será necessário operação, nem hoje e nem no futuro, mas depois que as dores forem embora, aí sim, inicia realmente o tratamento, e para toda a vida, se a senhora quiser cuidar dos trinta e oito.

   — Trinta e sete, Doutor, porque o aniversário está próximo.

   — Que seja! Cautela até trazer os resultados. Ótimo Natal e ano novo para a senhora. Até 2019!

domingo, 9 de dezembro de 2018

ETA JEITO MINEIRO

ETA JEITO MINEIRO
08/12/2018

    Tô "achano" um "poco" úmida a terra "qui". Eu acho que num vai "pricisá guá" não. E parece que vai "chovê" também, acho que se "guá" e "chovê" é pior ainda. Acho que vai "ficá" muito molhada. De qualquer forma, se "pricisá", e "otra" vir "otra" hora, mais tarde, "vê" que num chove, eu "ven' guá".

   — Menina, pensei que você tinha sido a responsável de aguar a horta hoje? Mas como você disse que a terra está muito úmida e que provavelmente vai chover, você decidiu não aguar as plantas? Quer dizer que uma outra pessoa vai aguar a horta no período da tarde?  E se a pessoa não puder ir à horta mais tarde, e se não chover, você irá à horta e água as plantas?

   Ela ficou zonza com tanta pergunta. Pensou: "Eu sô tão clara c'as palavra, que qu' ela tá queren' dizê pra mim?" (Eu sou tão clara com as palavras, o que ela está querendo me dizer?)



   De longe, escutei o "minerês" e me deu uma saudade danada de grande da minha terra. A sonoridade da frase, o jeito cantado característico e o mais importante, comendo as palavras. Só mineiro para entender. 

   De cá do meu canto, eu observava o diálogo que se travava e a confusão de entendimento de quem recebeu a informação. Mas, para mim, era poesia o que eu escutava.

   Como referência das extravagâncias cometidas por nós, mineiros, das Minas Gerais, na Língua Portuguesa, de "comer" palavras, eis um endereço, ou link, bem interessante, com ótimo senso de humor.

   
https://desciclopedia.org/wiki/Miner%C3%AAs    

sábado, 1 de dezembro de 2018

IDADE DE SENHORA

IDADE DE SENHORA
01/12/2018
      
   Fui ao ortopedista de coluna.

   — O que traz a senhora aqui?

   — Fui passear com meu cachorro e ele me derrubou, me rodou por alguns minutos e, depois disso, a coluna está dando sinais.

   — A senhora não queira saber quantas pessoas chegam aqui e me contam história semelhante. Algumas quebram a coluna, outras deslocam. Vamos ver o que aconteceu no seu caso. A senhora procurou um médico em seguida?

   — Não. Somente hoje consegui consulta com você.

   — Quando aconteceu? A senhora tomou remédio para aliviar a dor?

   — Há três meses. Usei Gelol em aerosol por uma semana. Funcionou.

   — Apenas despistou a dor, o problema continua. Algo mais?

   — Também faço alongamento e sinto melhora, mas a dor parece se intensificar quando faço algum trabalho doméstico longo. Sinto as vértebras, também, se comprimindo, ouço barulho de osso no osso, quando faço movimentos.

   — A senhora não deve fazer nenhum tipo de exercício até que se detecte o problema, pode piorar ainda mais. A senhora faz exercício físico?

   — Tenho hábito de caminhar e musculação, ainda faço o trabalho doméstico, mas desde o tombo tenho evitado.

    — Tem muita diferença entre trabalho doméstico e exercício. Não vem ao caso, no momento. A senhora tem trinta e oito anos. Deve se cuidar para vivê-los bem e com qualidade. Se fizer isso a vida vai fluir melhor. 

   Estranhei o médico dizer tal idade, sendo que ao iniciar a consulta lhe disse minha idade.

   — Eu não tenho esta idade  eu disse confusa.

   — Essa é a idade que a senhora tem para viver. O que já viveu não interessa mais. E deve se cuidar para chegar lá.

   — Ah! Duvido que chegarei aos cem.  Dei uma risadinha.

   — Não duvide, senhora. Atualmente é normal e comum.

   Fez os exames iniciais, apalpou vértebra a vértebra, e finalizou:

   — Parece que houve deslocamento de vértebra, vou pedir um raio X em caráter de urgência. Felizmente, parece que não houve complicação neurológica, mas durante esse período a senhora tenha cuidado, nada de extravagância. Trabalho moderado e descanso entre atividade, nem ficar muito sentada, nem muito deitada, em todas essas situações sentirá dor. Faça revezamentos.

   Saí do consultório me perguntando, o médico parecia mais velho do que eu, porque insistia me chamar de senhora?

sábado, 17 de novembro de 2018

ENTRELINHAS


ENTRELINHAS
            05/11/2018
Na rota de voo, asa quebrada. Você começa bisbilhotar meu íntimo com uma intimidade que nem a mim permito. Queria, juro, dar permissão de forma livre e desimpedida, mas o tempo é cruel e as marcas, marcam tanto que maceram, fingindo-se esquecidas.
Mascarar como? Nada de máscara, nem isso se deve dar o direito. Viveu, viveu. Aconteceu. Aconteceu. O que se foi, não é mais. Tudo passa.
O friozinho da mão, o calor do abraço, a voz que desaparece quando vê o desejo, se foram ou se não se foram, não tem espaço. A racionalidade do tempo encontra bom argumento para que não se repita.
Os dois à mesa, bom vinho e bruschettas.
― Então você não teria coragem?
― Não tenho idade para aventura.
― Qual o problema: Kubitschek traiu, Drumond traiu.
― Os homens se dão às aventuras de forma imatura, não envelhecem nunca.
― Velho tem direito de amar também.
― Está falando de encontro amoroso. Existem elos.
― Quanta exigência.
― E você me parece com os rapazes dos contos de um dia de Santo Antônio, conhece?
― Lembranças rondando a memória?
― Que tal um iogurte agora? Lembra da Rose di Primo apresentando aquele comercial de iogurte nos anos setenta?
― Iogurte não combina com vinho.
― Verdade. Vou pedir assim mesmo. Desejo.
― A gente tem que ser inteligente.
― Concordo.
Os dois sorriem e continuam a conversa.

https://www.youtube.com/watch?v=nVQNR4l6f-I

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

INUSITADO


INUSITADO
30/10/2018
― Oi, sou Lisboa, vizinho de cima. Vim dar uma olhada na infiltração vinda do meu apartamento.
Quando viu o coroa que ainda não conhecia, mas sabia ser viúvo, os olhos de Vera vidraram.
― Ah, pois não, entre.
Os dois ficaram cheios de dedos. Lisboa providenciou o conserto e encontrou desculpa para visitar Vera e verificar visualmente se o conserto valeu. Vera sentia a fabulosa palavrinha mágica conhecida das mulheres se achegando e, amordaçada e sedutora se insinuava a Lisboa.
Lisboa passou a lançar agrados na varanda de Vera. Amarrava, ora pacotinho de amêndoas queimadas num fio de linha, ora outros agrados, que se tornaram constantes: Balas, bombons, quitutes embalados com afeto, Maria mole, chocolate ao leite... Às vezes equivocava-se e errava a janela de Rapunzel. O presentinho espatifava na área do estacionamento. Passaram dias, semanas, meses.
Coincidentemente, Vera se tornou amiga da filha de Lisboa. Afinidade foi além e ambas apaixonadas pelo candidato que pregava o amor, a esperança, a unidade, assistiam ao resultado das urnas.
― Me conta como conheceu meu pai? A filha perguntou Vera que saboreava a segunda cervejinha, já na fala mansa.
― Quando apareceu a primeira vez, fiquei boquiaberta e me interessei. Imaginei, uau! Coroa desimpedido.
― Não sabia que tem namorada?
― Pois é, ele não comentou.
Celular toca.
― Meu pai me enviando figurinhas do candidato dele. Filha e pai passam a se provocar via whats.
― Achei que seu pai era homem esclarecido, me enganei.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

ABONADO


ABONADO

10/10/2018
― Sou abonado.
― Por que tá falando assim?
― Sou abonado, não tá vendo?
― O quê?
― Olha aqui, mandaram para mim.
― Sou rico demais, nem preciso trabalhar!
― Quero ver, deixa, o que é?
― Estão me oferecendo imóvel no Boa Vista. Quero sim! Vou comprar! Sou abonado! Estou voltando para Porto Alegre.
― Só mesmo você!, rindo.
― Sou rico! Abonado! Desculpa Floripa, você é muito linda, moro aqui há oito anos, mas estou voltando para Porto Alegre.
O rapaz olhando o celular ao lado da amiga no ponto de ônibus.
― Por que mandaram pra você?
― Sei lá! Vai ver porque sou abonado, não tá vendo como sou abonado, e ria alto e debochado, movimentando o corpo.

domingo, 4 de novembro de 2018

LIÇÃO DE ONTEM PARA O HOJE

   "Tem muito serviço pela frente. Muita coisa para fazer.Temos que dar conta do que se passa a nossa volta. Faremos isso somente se cumprirmos nossa tarefa. E nossa tarefa é pensar."  Filósofa Marilena Chauí.

   A fala da filósofa veio de encontro ao que apreendi do livro Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath), de John Steinbeck, 1ª ed. /fev/1972, coleção Os imortais da literatura universal da Abril. Implementei leitura do livro de seiscentos e vinte e nove páginas em cinco dias com o objetivo de assistir ao filme de mesmo nome e ter conhecimento a priori da obra.

   O desafio me fortaleceu a capacidade e o mais importante, fez que deixasse de lado as politicagens brasileiras dos últimos tempos. Fui salva por um clássico que discute exatamente a questão do direito do povo à terra para plantação e sobrevivência na era das transformações do século XX, quando da industrialização de maquinários agrícolas que retiraram o emprego de pequenos agricultores nos Estados Unidos. 

   Quanta luta daquele povo, oriundo do campo e perdendo terras próprias ou arrendadas por não conseguir pagar dívidas contraídas nos bancos. Vítima do mundo financeiro, que arando perversamente a dignidade das pessoas, as expulsam do pedaço de terra para monoculturas do agronegócio. 

   A visão do dinheiro, do lucro, da ganância, destruindo bases morais e culturais, causando mortes, destruições, esfacelamento de famílias, deixando que crença e esperança fossem minguando.

   Chega a ser angustiante. A gente segue o narrador da história e ele consegue nos manter no foco e interesse a cada nova página, numa habilidade de assombrar a quem curte prestar atenção a este detalhe. E a descrição dos locais, das pessoas e as características psicológicas, cada detalhe trazendo para quem o lê, a certeza de que o autor esteve e viveu a sacrificante aventura.

   E eu que pensava que os preconceitos norte-americanos eram raciais, o livro deixa claro que os pobres, por serem pobres e principalmente os de Oklahoma, chamados grotescamente de okies, no sentido pejorativo, designando o estrangeiro que não é bem vindo por ser pobre e não ter dinheiro.

   Devido a terra improdutiva, períodos de extrema seca, fome intensa, os pequenos fazendeiros acreditam na onda dos milhares de folhetos oferecendo fartura, empregos e possibilidade de aquisição de terras no sul da Califórnia. Os vários folhetos são o chamariz (a fake news da época) e leva multidões, quase sem dinheiro algum, com a esperança de tempos melhores. E com isso, conseguem pagar cada vez menos pela mão de obra devido a imensa procura por trabalho e a fome. O homem mostra a sua ferocidade, a sua característica primitiva.

   O uso da publicidade acarretando a milhares a ilusão de um mundo justo e a que todos têm direito de verdade. Não é bem assim. Tem dinheiro? Se o tem, é bem-vindo a qualquer lugar. Se não o tem, os dificultadores somam-se. É isso que vivencia a família de um jovem recém saído da prisão por ter causado a morte de um homem que o atacou. Dos oito anos de cadeia, saíra após quatro por bom comportamento. Retorna à família, pensando saborear boa comida, sesta tranquila e mulheres interessantes. Encontra a família de partida para a Califórnia e se junta a ela, apesar da liberdade condicional não permitir sair da fronteira de Oklahoma.

   O autor domina todas as referências. A mãe, o pai, a religião, as crenças e como cada uma interfere no relacionamento humano. Magistral manual do convívio.

   O autor traz muitas reflexões. Exemplos: 

"Mulheres e crianças sabiam que tudo estava bem. Mulheres e crianças sentiam profundamente que não havia sofrimentos que não suportassem desde que os homens conservassem a fé e o ânimo." 

"Às vezes, um sujeito triste perde a tristeza, falando." 

"Parecia saber (a mãe) que dependia dela o edifício de sua família; que à sua falta, todo esse edifício desmoronaria ao menor sopro de ventos adversos."

""Onde vamos parar?" Acho que não vamos parar em lugar nenhum. Estamos sempre a caminho. Sempre indo, indo para a frente... É um movimento que não acaba nunca. O pessoal anda, anda sempre. Nós sabemos por quê, e sabemos como. Caminhamos porque somos obrigados a caminhar. É o único motivo por que todos caminham...."

"... a prisão é uma coisa que foi feita pra deixar a gente louca aos poucos... E a pessoa fica louca mesmo e a gente pode ver eles e ouvir eles e não demora, já não sabe se também não está maluco."

"Calma, tu deve ter paciência. Olha,... a nossa gente estará viva ainda quando já esse pessoal não existir mais. Nós vivemos,... iremos viver sempre. Ninguém nos pode destruir. Nós somos o povo, vamos sempre pra diante. ― Sempre apanhando. Talvez seja por isso que a gente se torne tão forte e rija... Nós continuamos a avançar." 

   O filho vai qual num relato de viagem e epopeia, juntamente com a família, vivendo os dificultadores que se apresentam, fazendo escolhas e vivendo o possível. No caminho a família vai perdendo parentes (os avós), outros desaparecem fazendo escolhas diferentes e o final, surpreendente... não poderia imaginar semelhante.

   Os tempos mudaram. Os tempos para a frente são outros. Mais uma vez as tecnologias ameaçam.  Precisamos avançar. Pensar e avançar.

domingo, 14 de outubro de 2018

ALMOÇO


ALMOÇO
26/09/2018
            Duas mulheres almoçam frente uma para outra. Ao redor, pessoas com bandeja à mão buscando mesa para saborear menu do dia.
            ― Ficou sabendo de Célia?
            ― Quem diria, contava uma vantagem sobre a nora.
            ― E o Sérgio? Ele apresentou a mulher, mas depois ela se afastou e foi para o outro lado.
            ― Ele não tem um filho para cuidar dele?
            ― Parece que moram separados, casas diferentes. Ele não comenta.
            ― Nessa hora de precisão não poder contar com filho.
            ― Te enviei um vídeo.
            A outra balança a cabeça confirmando.
            ― Chorei quando assisti. Fiquei impressionada. Espero que não aconteça comigo quando estiver mais velha. Tenho medo. Minha nora é gente boa, mas sabe-se lá, mulher pode virar a cabeça de um homem, e levá-lo para o ramo da família dela.
            A outra escutando e mastigando.
            ― Está fazendo dieta?
            ― Estou tentando diminuir, ver se emagreço, mas nada, diz, limpando a boca.
            ― Seu prato está light, não tem carboidrato. Salada e vegetais, como deve ser.
            ― E não emagreci uma grama. Não ligo para massa, não gosto de arroz, feijão, macarrão. Doces, nem sinto falta.
            ― Isso que engorda.
            ― O que me pega é fritura. Adoro pastel. Peixe frito. Está no tempo da sardinha, quero comprar.
            ― Amo pastel, tenho filés de peixe no congelador, precisando fazer.
            ― Vivo pedindo a Deus, fico pensando: quem vai cuidar de mim quando eu precisar.
            ― Nunca se sabe! Eu até hoje não tive problema com minha nora.
            ― Até pouco tempo eu pensava sem parar sobre isso e ficava preocupada, estava me atrapalhando viver. Decidi tirar da mente, o que tiver de ser vou saber na hora.
            ― Você conhece aquela? Faz gesto com o olhar.
            ― Conheço. É boa de conversa. Está no outro grupo.
            ― Problemática, fiquei sabendo.
            ― E a profissão dela?
            A amiga ia responder quando outra mulher se aproxima da mesa, cumprimentando-a. Levanta e iniciam conversa. A outra observando.
 Nesse momento levantei e fui entregar a bandeja. Eu estava sentada à mesma mesa que elas. Ao sair confirmei as horas pelo celular, vai dar tempo de ir andando ao consultório médico.
            No caminho um ipê reina no tapete amarelo da calçada.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

HOSPÍCIO


HOSPÍCIO
18/09/2018
A filha ficou cacarejando pelo whatsapp. A mãe tinha obrigação de cuidar de Monstrinha, não podia deixar o adestrador maluco colocar as mãos nela. A mãe enviando foto mostrando como emagreceu e voltou a vestir peças antigas e, a filha interessada apenas em notícia de Monstrinha. A mãe respondeu, se tranquilize, não dando importância ao caso.
O casal vivia com as três cachorras, ou seria cadelas? Monstrinha, mistura diferente, pitbull e labrador, porte ostensivo, pelo brilhoso, olhos amendoados, força medonha. Quarenta e cinco quilos distribuídos à semelhança apenas da raça pitbull. Lelepe, levada e arisca, pelo marrom acaju, a única a não dar trabalho com doença. E Pequetita, uma poodle mini de pelo branquinho, latido afiado de doer tímpanos dava sinal de algo estranho, acionando as companheiras. O latido da noite em três vozes, três tons. E marido e mulher gritando: Psiu! Quietas! Vão dormir! Elas comportavam bem se, não viam, não ouviam, latidos, grunhidos, miados ou conversa alheia. Ao cheiro e ruído de cães, gambás, gatos e gente, iniciava o alvoroço. Eram netinhas que exigiam cuidados.
Lelepe e Pequetita não eram problemas. Monstrinha fazia o casal rebolar. Tinha três anos e nunca posto as patas fora de casa. Quando veio para a família, o filho escolheu o filhote que se assemelhava a pitbull, os outros pareciam demais com labrador, eu não quis, comentou ele. A cachorrinha veio fraca, com problemas de pele que a impediram de conhecer a rua. Quando se deram conta, aquele monstrengo de cachorro, que apesar de dócil com os velhos e as companheiras, se impunha na liderança com rosnados assustadores.
Assim, a mulher colocou-a para adestramento. Foram dez aulas de socialização, como disse o professor. E aprendeu comandos, senta, deita, fica, junto. Beleza. A família instruída a continuar rotina de exercícios.
O marido não se animou com a tarefa. A mulher, atrevida, pôs a coleira na cachorra e saiu. Fez os exercícios, senta, deita, fica, junto, deu voltas próximas de casa e tudo ocorreu às maravilhas. Monstrinha voltou satisfeita, abanando rabo.
À segunda saída, a mulher exercitou a cachorra próximo de casa por algum tempo e como se saiu bem, arriscou mais quarteirões. Quando iam caminhando no ritmo rápido, atravessou na frente da mulher esparramando-a pelo chão. Continuou destemida, um tombinho de nada. Senta, deita, fica, junto e acelerou. Em um quarteirão, casas com cachorro e até mais de um. Latidos. O adestrador ensinou, se ver cachorro, dê meia volta para o animal se distrair. A mulher tentou obedecer as instruções e os latidos se intensificando. Monstrinha agitada, querendo voar nos bichos. Escolheu seguir em frente, talvez no trecho adiante não tivesse animais. Na última casa da esquina, dois cachorrões. Latidos sem pausa. Firme na coleira. Antes de sair de casa, chegou a pensar, será que coloquei a coleira direito?
Num movimento brusco atiçado pelo barulho dos cães, Monstrinha avançou. A mulher, miúda e ágil, mas o solavanco que experimentou, jogou-a de bunda no chão, chegando a ficar deitada e a cachorra a rodopiando por duas vezes. A mulher segurando firme a coleira, e no instante que latidos acalmaram, conseguiu se reerguer. Neste exato momento, a coleira se solta. A mulher dotada de força desconhecida, repõe o equipamento e tenta sair dali o mais urgente possível. Empacada. Latidos ferozes. Monstrinha tomada pelo desejo de ataque. A mulher segurando rente à coleira, de forma a não escapar cão de raça tão temida.
Finalmente fora da zona de conflito. A mulher trêmula e descompensada. No passeio em frente de casa, Monstrinha estacou, nenhum comando a tirou da posição. A mulher segurou-a levantando as patas dianteiras e levando-a como criancinha. O marido envolvido no conserto do armário. Contou a aventura. Esqueceu. O corpo não, coluna estropiada.
A mulher caiu na real. Um adestrador passeava de bicicleta com cães, se interessou. Agendaram passeios três vezes por semana. Pôs o moço a par do comportamento da cachorra. No primeiro passeio, retornou em quinze minutos. O domador não esperava tanto. Ela desestruturou a rotina e outros cães.
No segundo passeio, o moço deve ter exigido além das forças de Monstrinha, forma de ficar claro quem está no comando. Retornou do passeio e foi deixando marcas de sangue no chão. A poucos passos caiu desorientada. Expulsou baba, ar parecia faltar. O uso de focinheira lhe dificultou respiração.
O marido deu com a língua nos dentes e os filhos infernizaram a mulher.
Os filhos saíram de casa e não levaram os animais.

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

CASAMENTO X POLÍTICA (gem)


CASAMENTO X POLÍTICA (gem)
03/10/2018
           Eu quero lhe falar o que vem acontecendo aqui em casa nestes últimos tempos, às portas das eleições e, nada melhor que a velha carta.
Lembra quando você falou que seria legal ter foto da turma com os dizeres “Ele não”?  E caçoei, é bom pedir autorização a cada um, vai que...
            Creio que o feitiço virou para meu lado.
João, de tempos para cá fala o que tem vontade, não guarda mais nada dentro de si, e a um comentário foi logo dizendo, não vejo problema a pessoa se manifestar. Perguntei se era impressão minha ou ele estava a favor de Bolsonaro. Desconversou. Eu disse, se votar nele o casamento acabou. Escutou (será?).
No sábado da grande passeata das “MULHERES CONTRA BOLSONARO” fui contribuir com voz feminista contra qualquer tipo de opressão e retirada de direitos. Lá estava a formiguinha na multidão, “Ele não”, “Nenhum direito a menos”, “Ele nunca”. Durante mais de três horas, mulheres, homens, crianças, bebês e seus pais, avós etc infernizando o apático tom da cidade, caminhando avenidas e ruas estratégicas do centro. Não se via início e fim da massa humana.
Quando chegamos na área hospitalar, o comando de “psiu” em efeito dominó foi se alastrando continuamente. Silêncio. Sentimento de humanidade, solidariedade, respeito, convivência, contribuição, simbolismo e a certeza de estar num lugar melhor. Emoção se propagando. 
Em seguida, ouvi o comentário “o cheiro da burguesia fede”. A juventude no jargão revolucionário, e já voltando ao mantra Ele não.
A imagem surpreendia, pessoas filmando, fazendo selfies para jogar na rede social. Estranhei jornais televisivos não veicularem notícias. A televisão é mídia ultrapassada não é mesmo? A rede deu cobertura ao protagonismo das mulheres.
À noite não é que descubro João compartilhando notícias de Bolsonaro. Foi o estopim: “Avista-se o grito da arara”.
João, que isso no celular? 
Ele desconcertado disse: Você está bisbilhotando?
Foi sem querer, mas li a mensagem.
Ficamos soltando rusgas. Não consegui ficar quieta. Eu ia da sala à cozinha, ansiosa. 
E você, compartilhando as do PT, ele revidou.
Voltei à sala. Quem disse? Entra lá e veja. Gosto de discutir política e não ficar replicando figurinha.
Voltei à cozinha.
Lembrei de dizer mais e voltei voando.
Que vergonha dos amigos vendo essas postagens.
(cozinha) Escutei ele dizer, nem ligo. 
         (sala) Com raiva, mandei João embora de casa.
(cozinha) Ouvi João, sai você!
Minutos depois, uma amiga pelo whats sobre Bolsonaro. Escrevi, você é apenas amiga e pouco importa em quem você vota. Triste é descobrir o marido compartilhando. “Eita”, foi a resposta. 
O desabafo não bastou, queixei a outra amiga, e ela, pena João ter essa atitude, faz greve de sexo. Eu mal aguentava olhar e conversar com ele.
No outro dia ele postou no Face nova figurinha. No whats respondi. Ficamos trocando fagulhas.
Considero ótimo João falar o que pensa. Mas as palavras que gostaria de ouvir de João não as ouço. A dor é perceber que somos como os nossos pais. E o país mais parecido com o de 1964. Tenho estratégias de luta, vou reverter a situação. Ele não.
Eu quero lhe contar tudo em detalhes pessoalmente.
         Abraço!

domingo, 30 de setembro de 2018

CONVERSA POR WHATSAPP


CONVERSA POR WHATSAPP
15/09/2018
O marido enviou um whats:
                ― Como foi a oficina?
            A mulher respondeu:
            ― Foi ótima, João... adorei... como sempre eu sou a mais velha, kkkkk, a participar. Em seguida fui ao teatro Aktaro com Marilda, perto ali, na João Pinto, abaixo da Tiradentes. A peça “Sobre Pedros e Terezas” é muito triste, mas foi ótima encenação. Depois rumo a Fenaostra, a Feira anual de Ostras de Florianópolis, no Largo da Alfândega. Muito boa a feira, e nós nunca fomos, hein, João! Olha, pegamos um Uber para ir embora. Quando sentei no banco senti um volume e veio na minha mão... A carteira do João, o que ela está fazendo aqui, será que caiu da minha bolsa... pensei por segundos, em seguida, claro, alguém perdeu. Resolvi não comentar com o motorista, na dúvida guardei na bolsa. A Marilda nem percebeu, deixei ela em casa e vim. Era o primeiro dia do motorista, de Porto Alegre, muito educado e fui conversando com ele sobre Floripa, os lugares turísticos, os cuidados que os motoristas devem ter em locais mais perigosos etc. Mas, quando cheguei em casa fiquei preocupada com o moço que perdeu a carteira... vi que era advogado... entrei na OAB, mas como é sábado, o fone não atendeu. Tentei descobrir no Face... não consegui. Vi que tinha Smiles, entrei com minha senha e pedi para conversar com uma pessoa real... aquelas virtuais não estão com nada. Bom, a moça me instruiu ligar no próprio Uber, mas ia cair direto no motorista, como eu não tinha dito nada para ele, desisti do aplicativo. No final, a atendente começou a me ofertar promoções do Smiles... (que vergonhoso, né... nem eu falando para ligar para o cara...). Eu respondi... eu acharia que o Smiles vale a pena se vocês entrassem em contato com o ... escrevi e dissesse que encontrei a carteira dele... a moça disse... compreendi... e finalmente se esforçou fazer algo. Expliquei que não queria nenhuma informação dele, apenas que ligassem. A moça disse que ia passar para o coordenador, mas não garantia nada... então não sei se vão avisá-lo. Coitado do moço deve estar preocupado. Eu e minhas decisões malucas, não é, João!

            ― Ai, João, agora vou falar no microfone... cansei de digitar, mais é engraçado que ontem, mudando de assunto, este é outro assunto. Ontem, uma mulher que é vizinha nossa, alguns quarteirões. Ela falou que tinha, que um carro preto parou na porta dela, ontem, e cinco caras saíram do carro. Ela estava na janela, no andar de cima, e eles falaram que estavam esperando uma pessoa para recebê-los porque eles iam entrar. Ela falou, não, não tem, não, eu não estou esperando nenhum convidado não. E, não, não tem ninguém aqui não, ela saiu rápido e foi ligar para a segurança. Quando voltou, eles não estavam mais. Estavam vestidos como se fossem para uma festa, alguma coisa assim. E, você sabe, essas ruas são tão escuras de noite. Bom, escutei tudo. E ontem, não tinha colocado alarme, pensei, ah! Precisa nada, frescura. Dormi numa boa. Mas hoje, ah, hoje eu vou colocar. Quando cheguei desse teatro, da Fenaostra, e antes de abrir a porta desliguei o alarme. Quando fechei a porta, a luz da sala não acendia, pensei: ai meu Deus do céu! Será que tem bandido dentro de casa. Mas tranquei a porta e fui acender a do corredor e tudo tranquilo. Liguei o alarme. Está chovendo, sabe, uma chuvinha boa, e como não estava com pressa de dormir, fui, ah! acho que vou lá fora um pouquinho. Quando abro a porta da varanda, o alarme, ai que saco, corri, peguei o controle e desliguei. Passou um pouquinho, o pessoal da segurança. Mas então é isso, sua mulher está muito loucaaaa mesmo. Eu estava conversando com o Fred (filho), ele ligou agora mesmo, e contei que liguei o alarme. Pra ele eu só contei isso, que liguei o alarme e esqueci. Ele me falou que você ainda não foi lá, na casa dele, ai, ai, você é ótimo, João. Eu contando para ele, dessa minha coisa, dessa minha loucura, ah, contando para ele que tudo estou esquecendo, meu cachecol, não sei onde deixei, acho que comentei com você, não é! Ah, não, acho que não cheguei a comentar com você ou comentei, não sei. Não sei onde coloquei, quem sabe está aí, hein João, na casa de Ceiça, aquele cachecol meu, rosa, desapareceu, não sei onde deixei, lembro que fui com ele, eu fui com ele, agora não sei onde deixei, se deixei num bar, se deixei no..., ah! que chato, viu, ter perdido. Mas Fred falou que esqueci brinco, esqueci anel e eu nem me lembrava que tinha esquecido essas coisas, só escrevi para ele no whats se sabia do meu cachecol, não você não deixou aqui, você deixou anel e brinco. Eu nem sabia, nem tinha atinado até o momento de perguntar sobre o cachecol, que tinha esquecido brinco e anel. Olha só, como está, e só atinei para o cachecol por que queria colocar hoje,  ele é mais quentinho e me dei conta de que não estava em lugar nenhum. Ai, João, ficar velha é triste, às vezes nem é ficar velha, às vezes é, sei não, a gente fica não querendo aceitar essas coisas, ou então é Alzheimer mesmo que está vindo a caminho. E outra coisa, João, incrível, na hora que eu estava indo pra oficina, fui de ônibus, pensei, ah! não vou gastar dinheiro com Uber, vou de ônibus. Levei um livro de poesia para passar o tempo. No ônibus pensei, ah, não! Não vou ler não. Vou, hoje vou apreciar a natureza, a paisagem, vim olhando os verdes, as montanhas, curtindo, vendo que beleza, tudo esverdeado ainda, de repente, João, a estrada para entrar na beira mar, de repente, João, achei o lugar estranho, sabe, fiquei sobressaltada, porque  desconheci onde estava, o que estava fazendo, e que lugar era aquele, eu não sabia onde estava, aquela estrada, aquele caminho desconhecido. Nossa, João, uma situação tão horrível, deu um, alguns segundos, eu me perguntava onde estava, que que estava fazendo ali, aí percebi, estava no ônibus, estava sentada, e e e e e que angústia, João, eu não sabia onde estava. E foi assim, rapidamente me antenei e voltei à realidade, por que no fundo, eu observando a natureza, me envolvi pensando num personagem do meu livro, sabe, que que eu podia fazer com ele, para movimentar ele, na história, e de repente, bolei alguma coisa, mas não me lembro mais o que, e me veio o branco, sabe, esse branco, essa ausência, essa amnésia momentânea, sei que assusta, e se passou assim, eu olhando pela lateral da janela e a partir do momento que atinei para realidade, olhei para frente, percebi que estava no centro, na beira mar, o mar ali perto, mas que sensação horrível, de ter a impressão de estar num lugar desconhecido. Bom, passando disso, eu me pergunto se não estou a caminho do esquecimento (som de risada). Tá bom, João, bom dia para você, por que eu tenho certeza que você não vai ver isso agora, só amanhã. Bye, bye, viu, tchau! Bom dia, amanhã a gente conversa mais.

sábado, 29 de setembro de 2018

FIO DE VERDADE

FIO DE VERDADE
26/08/2018

— Vamos começar com o poema? Eu leio primeiro em inglês, depois você, em português, ok?

Drinking While Driving
Raymond Carver
It’s August and I have not
read a book in six months
except something called The Retreat From Moscow
by Caulaincourt.
Nevertheless, I am happy
Riding in a car with my brother
And drinking from a pint of  Old Crow.
We do not have any place in mind to go,
We are just driving.
If I closed my eyes for a minute
I would be lost, yet
I could gladly  lie down and sleep forever
Beside this road.
My brother nudges me.
Any minute now, something will happen.  (*)
Dirigindo e bebendo
Raymond Carver
É agosto e eu não li
um livro em seis meses
exceto um troço chamado A Retirada de Moscou
de Caulaincourt.
Mesmo assim, estou feliz
andando de carro com meu irmão
e bebendo um pint de Old Crow.
Não estamos indo a lugar nenhum,
estamos só rodando.
Se eu fechasse os olhos por um minuto
estaria  perdido, contudo
eu poderia facilmente deitar e dormir para sempre
na beira dessa estrada.
Meu irmão me cutuca.
A qualquer momento, algo vai acontecer.  (*)

Agora Felipe entendia e ela também. Ele considerou, com senso responsável, não ser saudável a mensagem, beber e dirigir, principalmente a crianças e jovens. Ela rindo, concordou, mas que visse por outro ângulo, afinal é um poema. O que percebeu no poema no momento da leitura? Que sentimento aflorou?

Felipe firme, não concordava com a temática, nem mesmo em poema. Ela disse ter sentido o poeta triste e angustiado por não ter lido sequer um livro em seis meses. Realmente, como uma pessoa consegue não ler por tanto tempo, concordava, mas que escrevesse algo salutar. Essa escrita não contribui para a comunidade. O riso não largou a boca, Felipe, você é ótimo, disse ela. Insistiu que as pessoas gostam dos poemas do Raymond Carver, geralmente intelectuais, escritores, enfim, os amantes da Literatura. Afinal, no poema, o homem expressa a dor de forma espontânea e sem censura. Felipe foi quem soltou o riso, dizendo, então quem lê este escritor norte-americano são brasileiros apaixonados por Literatura, brasileiros que gostam dele, mesmo bebendo e dirigindo. Ela concordou. 
Viraram a página. Felipe trazia o melhor das tardes de sexta-feira, tempo em que jogavam palavras ao vento, produziam piadas trazidas das lembranças. Duas horas em que a vida transcorria com lirismo e risada via Skype.

— Li o conto “O cabelo”, do Raymond Carver. É muito estranho! Disse Felipe.
— Como assim?
— O escritor escreveu três páginas sobre um fio de cabelo entre os dentes.
— O cara é muito bom.
            — Quer dizer que você é fã dele? Haja assunto para contar. Um fio de cabelo nos dentes e o sujeito não consegue nem trabalhar. E a mulher, que confusão!
            — Gosto muito da escrita dele, ela disse rindo. Nos poemas e na prosa estão presentes o dia a dia das pessoas comuns. O escritor morreu aos cinquenta, tinha problemas com bebida, adorava escrever desde menino.
            — Bebendo e dirigindo?
            — Bebendo e dirigindo.
            — Realmente você acha que alguém vai ter um fio de cabelo entre dentes e não vai nem trabalhar, Felipe disse irônico.
            — Será que aconteceu mesmo?  Terá sido invenção do escritor?
            — Muito estranho, continuo achando muito estranho esse conto.


            À noite, ela assistia a TV enquanto jantava. De repente, um fiapo de alecrim se enfiou entre dentes e a pontinha fincava a gengiva. Encostou a língua e sentiu dor. Tentou apalpar com polegar e indicador e puxar. Não conseguiu. Voltou a testar com a língua, a dor pinicando. Tentou os dedos. Nada. Com a língua, com os dedos... Como conviver com aquilo nos dentes. Sabia que não se acostumaria.                   
        
(*) Carver, Raymond (1938-1988). Esta vida: poemas escolhidos; seleção e tradução de Cide Piquet; bilíngue, São Paulo, Editora 34, 1ª edição, 2017, págs 21 e 147. 
Carver, Raymond. 68 contos de Raymond Carver, trad. Rubens Figueiredo, Companhia das Letras,  SP, 2010, conto O Cabelo, pág. 45 a 48.