02/11/2019
Era sábado. Olhou o
relógio, cinco da tarde. O corpo parecia pesar e quando entrou no quarto, a
cama ainda desarrumada desde a manhã. Nem mesmo a janela tinha sido aberta. Permitiu
ouvir o que o corpo pedia, deitou devagar, como um ritual. Fechou os olhos
tentando descansar, mas os pensamentos não deixavam. Durante os poucos minutos
ali, as palavras inundavam em sequência e rapidamente de assunto a outro, até
um ponto em que começou a sentir culpa por estar naquele estado. “O que estou
fazendo aqui esta hora? Não tem pão e amanhã é domingo. Eu deveria me levantar
e sair para comprar”. As forças vieram rápidas, em um pulo já se aprontava e
calçava a sapatilha. Abriu a bolsinha de pano rústica e florida onde colocava
o dinheirinho. “Deve dar para o que precisamos”.
O vilarejo onde moravam
era distante. Bia teria que andar alguns minutos até chegar ao pequeno comércio
que se reduzia a um cômodo, onde era a padaria, e mais adiante, o mercadinho. No
caminho não encontrou ninguém para conversar e seus pensamentos lhe deram pequeno
sossego. Passou um moço de bicicleta e olhou como se a conhecesse, distraída
não viu.
Entrou na padaria. As
prateleiras de madeira com forrinhos enfeitados de papel e feitos à mão.
Estavam quase vazias, as ofertas rareavam. Pegou o de costume, um pão de trigo,
o suficiente para o fim de semana. Pagou, agradeceu e perguntou: “cadê o Seu
Brás?”. O moço respondeu que era seu parente e que ele precisou de descanso, as
pernas doíam muito, problema nas veias. Desejou que ele melhorasse logo e que a
Bia do Josué mandou lembrança. Mais um bocado de tempo e chegou ao mercadinho.
No sábado ali era uma paradeza danada. Andou até os fundos onde estavam dependuradas as bananas. Amava
banana da terra, tão saborosa após o cozimento e nem precisava adoçar, retirava
a casca, picava em rodelas numa panela e deixava cozinhar por alguns minutos
com pouca água. Assim que pareciam macias e a água evaporada, colocava num
prato, amassava com o garfo e o purê rústico era o doce preferido. Pegou também
banana caturra para Josué e o filho. O dinheiro ainda deu para
comprar a bebida que Bia foi saboreando pelo caminho, geladinha e de sabor meio
amargo, meio doce, na cor escura.
Ao sair do mercadinho
não quis cortar caminho. Seguiu adiante com a intenção de ir caminhando pela
areia. O vento não estava forte como ontem, e Josué já deveria estar naquelas
bandas preparando a rede e os apetrechos para a pesca da madrugada. Atravessou
a ruazinha, e no boteco da esquina tinha alguns turistas. Mesmo dia que não trouxesse
o sol, e o céu como aquele, ainda assim essas paragens valiam o passeio.
Bia pisou devagar
evitando que o calçado levasse areia para dentro dos pés. Caminhou até à areia
úmida. Parou assim que sentiu o chão firme. Olhou ao redor. O mar à frente e as
ondas batiam naturais. Na margem direita, o monte de casinhas já se iluminava e
o cair da tarde dava o toque mágico. Ao longe, do lado mais esquerdo, distante
dali, enxergava outro povoado com luzinhas acesas. Tentou adivinhar onde seria,
mas pelo horário não soube definir. Respirou fundo, olhou o céu que se
modificava em tons cinzas e que iam escurecendo ainda mais de um lado a outro e
ao fundo da linha do oceano. Ao alto ainda se via rajadas mais claras e o vento
moldando tudo. Será que iria chover? Continuou a caminhar, e tornou a interromper
quando viu um pescador retornando com o barco. Perguntou se o mar estava para
peixe. O homem respondeu: “peixe é só amanhã pela manhã”. Ela sorriu e
respondeu “Ah!”. Um pássaro sobrevoou próximo e o olhar acompanhou, de repente
o pássaro se embaralhou às cinzentas nuvens, como se os dois fossem um.
Continuou caminhar. Olhou
a restinga à esquerda. Estranhou que as canoas de Zé e Luiz ainda não
estivessem preparadas para o trabalho. Josué já deveria estar longe e Toninho
não ia com ele, o pai permitiu que o filho descansasse. Os pensamentos
retornaram. Por que se sentia assim, com tantas dúvidas. Josué era homem bom. Bom
pai. Mas o que ela sentia? Parecia que entre eles já não existia significado.
Continuar vivendo ao lado daquele homem que não lhe dava mais a sensação de
companheirismo. Bia gostaria de ir embora. Gostaria de fugir para algum lugar.
Ficar consigo mesma. A solidão desejada e não como algo trágico, dava
serenidade pensar em um espaço somente dela, que tivesse o seu jeito, que a
arrumação lhe trouxesse calma e aconchego. Ainda era jovem, poderia encontrar
alguém. Josué era bom pescador, caladão, simples, sentia que era parte daquela
areia, daquela água, daquelas ondas, daquele céu. Era manso. Mas sabia que era
revolto também, dentro de si existia tal qual a tempestade que às vezes o
ameaçava em alto mar. Ele não comentava nem consigo mesmo se sentia medo. Nem
ela sabia o que o homem tinha dentro de si. Gostaria de saber, talvez se
tivessem partilhado, talvez ela não tivesse tantas dúvidas, tantas
necessidades. Ao mesmo tempo reconhecia que... Outra ave revoou, ela
volveu o olhar na direção do voo e a ave se fundiu à nuvem. Era como se
reconhecesse naquele instante que sua vida lhe pertencia e não dependia de uma
outra para a felicidade. Estaria sendo egoísta desejar isso, largar o marido e
o filho e viver a vida à sua maneira, seria errado?
Escureceu tão rápido e
ainda estava longe de casa. Bia continuou com passadas normais. E naquele
momento o escuro que a envolvia não ameaçava. Olhou nítido para a praia e
percebeu um corpo escuro na água, como se estivesse caminhando. Era uma
pessoa? Parou para ver se enxergava com nitidez, via apenas um ponto escuro que
se movimentava. Tornou andar. Tirou o sapato, passou por entre montes de
areia, dunas que se modificavam por causa do vento, subiu em alguns trechos
até chegar próximo à estradinha.
No estreito caminho até
em casa, observou as moradias iluminadas. As mulheres deveriam estar na
arrumação da janta. A sua casa na escuridão. Abriu a porta e acendeu a
luz. Guardou as bananas. Tomou café com pão. Os homens somente dariam notícia
amanhã, trariam peixes para venda e a família. O filho desaparecia na casa de
Lurdinha nos fins de semana, se acomodando no quarto da moça. Bia foi para o
banho e o tempo começou a modificar. Respingos de chuva no terreiro e o vento
que murmurava assustaram o cachorro, e ele latia. Quando terminou a janta,
arrumou a cozinha, e a tempestade veio. Bia pensou com preocupação “como
estarão os homens?”. Ao caminhar até o quarto, as luzes se apagaram no povoado.
Relampejava, as plantações balançavam bruscamente. Tateou até a cama, deitou-se
e dormiu sem pensar, a energia gasta na andança dera resultado.
Acordou de manhã com aquela conversaiada, uma falação misturada do lado de fora. Bia sentiu o
coração apertar e foi saber o que era.
Quatro pescadores não voltaram. As ruelas alagadas pela tempestade.
Galhos e até mesmo árvores arrancadas com raízes. Ela, então, correu para a
praia e encontrou mulheres em desespero chorando por seus maridos, filhos. Os
que chegaram, arrastavam as embarcações para local seguro, e contavam a
história da madrugada horrenda. Ondas altíssimas derrubaram barcos e
companheiros exaustos de tanto nadar não aguentaram e desapareceram. Bia
escutou. As mulheres olhavam para ela e a queriam consolar, mas não permitiu.
Sentou acabrunhada na areia, e sozinha esperou todo o domingo. Quando se deu
conta do que tinha pensado no dia anterior, percebeu que fora enganada pelos
próprios pensamentos. Não era verdade que desejasse ficar sozinha. Queria Josué
por perto. Aguardava o barco aportar. As águas agora mansas. O fim de tarde
caía novamente.
As mulheres solidárias,
cada hora uma, iam à praia cuidar de Bia, que ainda parada, era bicho
apavorado. E assim adormeceu. Acordou com o dia nubloso e ondas rebeldes batiam
com força. As amigas pediam que voltasse para casa, Toninho, o filho, precisava
dela. Bia parecia não escutar. O olhar voltado ao alto mar. De repente uma das
mulheres chegou aos gritos avisando que Josué tinha sido encontrado numa praia
distante. Bia não ouvia. Paralisada. As mulheres ergueram Bia e levaram com cuidado
a moça até em casa. Puseram Bia na cama e obediente permaneceu. As mulheres
continuaram se revezando.
Bia gritava o nome de Josué e nadava, nadava ao encontro do marido, quando
de repente a cabeça do homem saiu de dentro da água, ele respirou com ânsia.
Quando os dois se viram, nadaram um em direção ao outro e se abraçaram. Como
quando namoravam e se amavam no mar. E Bia dizia, você está vivo, meu amor, eu
rezei, pedi a Iemanjá, e passava as mãos no rosto e cabelo do marido. Josué no
mesmo gesto, só não falava, sorria. Beijava a mulher loucamente e depois a
apertava no corpo. Bia ainda ansiosa em sair do mar, puxava o marido que sentia
as forças se esgotarem. O cansaço era tanto que a mulher dormiu até o outro
dia.
Na terça-feira, Bia
acordou e olhou como se visse fantasma, Josué à beira da cama velava seu
conturbado sono. Os dois, abatidos pela tragédia que quase os separou, se
abraçaram. O abraço trazia a dor e a felicidade, e uniu o casal rumo
ao recomeço.