16/02/2020
Na vila dos anos
setenta, à tarde, a garotada se reúne na rua sem asfalto. Dividem-se em grupos,
e meninas e meninos, juntos, começam o jogo que virou rotina. Queimada. Na
queimada, o campo é dividido ao meio, e do meio se dá quinze passos largos nas
duas direções e se faz outra linha divisória, o inferno, onde ficará quem é queimado
pela bola. A capitã do time organiza o jogo, metade de cada grupo num lado do
campo. A menina de cabelo curto, magrela e ágil, em shortinho e camiseta, dá início
ao jogo. Bate a bola de couro no chão, buscando a segurança da jogada e bem na linha
divisória, prestes a lançar a bola com toda a força nos jogadores do lado adversário,
afina a pontaria, finge que joga, mas não joga, em direção ao lado esquerdo. Ao
contrário, escolhe e pega desprevenido o jogador à direita. Não importa se à
direita ou à esquerda, com a capitã do time, a bola rodopia e rebate como um
estrondo e o adversário não consegue agarrar. Queimado. Vai para o inferno.
Assim o jogo continua até que apenas a equipe campeã permaneça com um/uma
jogador/a em campo.
O menino e outros
garotos apreciam as jogadas, esperando encerrar a partida para que o seu time enfrente
o da capitã. Ele a admira: ‘Que menininha, e que agilidade. Na pelada de
futebol também não dá moleza no drible, sai com a bola e quando se vê, é GOOOL. Ninguém segura a guerreira. E sabe
jogar finca, bente-altas, bolinha de gude, malha. Joga com menino, joga com
menina, ela tem a insígnia da desafiadora, e com o jogo limpo, o grupo sai
vencedor’.
O menino gesticula,
aplaude. Na rua é um menino livre. Quando abre o portão, o pai distante,
ausente e rígido, a relação autoritária. Menino triste. À capitã, sua amiga e confidente,
disse “sempre quis ir ao futebol com meu pai, desde pequerrucho era meu sonho que
ele estivesse entre os torcedores, vibrando pelo gol. Eu olhava para a torcida procurando
o rosto de meu pai, e não via.”
O
jogo acabou. Saíram antes que ouvissem a mãe chamar. Mas o menino aguardou a
capitã sentado na calçada. E a garota empolgada com o resultado conversava
alegre e mudando o assunto:
“Hoje estava lembrando daquele
menino que produzia bodoque de forquilha perfeita, e a melhor era a de
goiabeira, lembra?”
“A gente brincando de
pular na barroca, naquele buraco cheio de terra, apostando o pulo mais alto...
“E de repente sua testa em puro sangue
escorrendo e você nem sentia.”
“Você gritando e
pulando, avisando que o menino atrevido fugia.”
“Procuramos o danado
por todo lado.”
“Minha mãe quando me viu desmaiou, levei doze
pontos na testa.” Ele falou com o riso encabulado.
“E pensar que daqui a
pouco é sua formatura, dá para acreditar que já seremos adultos? Ai, sinto uma
dorzinha no peito, não posso parar essa bola e nem agarrar.”
“Sabe, apesar da raiva
que sinto de meu pai, penso que fez o que deu conta, o que foi possível. Na
criação dele, os pais eram tão bravos e autoritários, compreendo. Afinal não sou
mais criança. Vou fazer diferente.”
“Como será o novo tempo?”
“De uma coisa tenho certeza, nos lembraremos da
nossa infância como a melhor fase da vida.” O menino disse, emocionado.
Despediram-se.
Ano 2020. Ela enviou a
foto antiga por whatsapp, o rapaz ao lado do pai no dia da formatura do
secundário. Ambos sérios e o jovem de canudo na mão.
“Estranho o pai não
colocou a mão no ombro do filho.”
“O filho também não
colocou a mão no ombro do pai.” A outra respondeu.
"Como
será que ele é agora, como pai?
“Desde que se casou não
tive notícia.”