segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

JOGOS DE INFÂNCIA


16/02/2020
Na vila dos anos setenta, à tarde, a garotada se reúne na rua sem asfalto. Dividem-se em grupos, e meninas e meninos, juntos, começam o jogo que virou rotina. Queimada. Na queimada, o campo é dividido ao meio, e do meio se dá quinze passos largos nas duas direções e se faz outra linha divisória, o inferno, onde ficará quem é queimado pela bola. A capitã do time organiza o jogo, metade de cada grupo num lado do campo. A menina de cabelo curto, magrela e ágil, em shortinho e camiseta, dá início ao jogo. Bate a bola de couro no chão, buscando a segurança da jogada e bem na linha divisória, prestes a lançar a bola com toda a força nos jogadores do lado adversário, afina a pontaria, finge que joga, mas não joga, em direção ao lado esquerdo. Ao contrário, escolhe e pega desprevenido o jogador à direita. Não importa se à direita ou à esquerda, com a capitã do time, a bola rodopia e rebate como um estrondo e o adversário não consegue agarrar. Queimado. Vai para o inferno. Assim o jogo continua até que apenas a equipe campeã permaneça com um/uma jogador/a em campo.
O menino e outros garotos apreciam as jogadas, esperando encerrar a partida para que o seu time enfrente o da capitã. Ele a admira: ‘Que menininha, e que agilidade. Na pelada de futebol também não dá moleza no drible, sai com a bola e quando se vê, é GOOOL. Ninguém segura a guerreira. E sabe jogar finca, bente-altas, bolinha de gude, malha. Joga com menino, joga com menina, ela tem a insígnia da desafiadora, e com o jogo limpo, o grupo sai vencedor’.
O menino gesticula, aplaude. Na rua é um menino livre. Quando abre o portão, o pai distante, ausente e rígido, a relação autoritária. Menino triste. À capitã, sua amiga e confidente, disse “sempre quis ir ao futebol com meu pai, desde pequerrucho era meu sonho que ele estivesse entre os torcedores, vibrando pelo gol. Eu olhava para a torcida procurando o rosto de meu pai, e não via.”
       O jogo acabou. Saíram antes que ouvissem a mãe chamar. Mas o menino aguardou a capitã sentado na calçada. E a garota empolgada com o resultado conversava alegre e mudando o assunto:
“Hoje estava lembrando daquele menino que produzia bodoque de forquilha perfeita, e a melhor era a de goiabeira, lembra?”
“A gente brincando de pular na barroca, naquele buraco cheio de terra, apostando o pulo mais alto...
 “E de repente sua testa em puro sangue escorrendo e você nem sentia.”
“Você gritando e pulando, avisando que o menino atrevido fugia.”
“Procuramos o danado por todo lado.”
 “Minha mãe quando me viu desmaiou, levei doze pontos na testa.” Ele falou com o riso encabulado.
“E pensar que daqui a pouco é sua formatura, dá para acreditar que já seremos adultos? Ai, sinto uma dorzinha no peito, não posso parar essa bola e nem agarrar.”
“Sabe, apesar da raiva que sinto de meu pai, penso que fez o que deu conta, o que foi possível. Na criação dele, os pais eram tão bravos e autoritários, compreendo. Afinal não sou mais criança. Vou fazer diferente.”
“Como será o novo tempo?”
 “De uma coisa tenho certeza, nos lembraremos da nossa infância como a melhor fase da vida.” O menino disse, emocionado.
Despediram-se.

Ano 2020. Ela enviou a foto antiga por whatsapp, o rapaz ao lado do pai no dia da formatura do secundário. Ambos sérios e o jovem de canudo na mão.
“Estranho o pai não colocou a mão no ombro do filho.”
“O filho também não colocou a mão no ombro do pai.” A outra respondeu.
         "Como será que ele é agora, como pai?
“Desde que se casou não tive notícia.”

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

estou indo!


09/02/2020
Começar de novo.
Aliviada e com autoestima revigorada, assim queria se sentir. Mas o momento não trazia apenas a conquista da liberdade, trazia também o lado triste de outros envolvidos que não mereciam estar no meio do redemoinho. Bem que a mãe lhe confidenciara baixinho:
 “Acha que tudo foi às mil maravilhas com seu pai? Ele era homem bonito e vistoso, de vida livre, da viola, da toada de bois, das cavalgadas, do trabalho sem horas rígidas, e onde existia isso nessa roça de meu Deus? Ao pobre é exigido o esforço além da medida humana e ele não tinha a tal energia, nem jeito com obrigações. Com salário de professora cuidei de vocês, oito filhos queridos. Ele achava que não tinha obrigação de contribuir financeiramente, o pesado bancasse eu.”
Naquelas eras, a estrada em pura terra batida onde o punhado de arenito evitava a poeirenta nuvem. Contava com nove anos e preferia ficar no cantinho, quieta e observadora, numa timidez única, não compartilhada com as irmãs. A mãe sempre ocupada com as diversas obrigações, tendo que dar direcionamento aos filhos mais velhos que cedo levavam dinheiro para casa.
A menina sentada na pedra, no cantinho da estrada onde ninguém via, conversava com amigos, e eram muitos. Esse egoísmo de não partilhar amizade, onde os irmãos brincavam longe e ela escondida entre folhagens. Com eles conversava e se abria. Quando um adulto ou irmão se aproximava, via a menina de braços abraçados às miúdas pernas. Ela sozinha, respondia com monossílabos ou não. O mundo em que vivia, rico de amigos brincalhões e cismados, se recolhiam ao mutismo. Assim passou a infância, protegida da mãe brava que punia com violência os filhos, tentando ao seu jeito dar direcionamento àquelas pequenas vidas deixadas em suas mãos, unicamente em suas mãos.
Passou a infância distante dos problemas familiares e protegida dos sopapos entre mãe e irmãos. Os mais velhos, os mais penalizados. Pôs na cabecinha, tivesse idade partiria dali, cuidar de si. A adolescência sem diferentes sensações e terminada a escola secundária foi morar com uma das irmãs casada de pouco.
Foi um tempo tumultuoso. O cunhado encontrava maneiras de assediar e a energia gasta em estratégias para proteger a irmã da verdadeira figura do marido. Quando veio a independência financeira razoável, buscou o próprio canto para manter a dignidade. Sempre que retornava à casa da irmã procurava não ficar num ambiente sozinha com o cunhado. Extremamente desgastante estar o tempo todo atenta a tudo e escapulir das ciladas.
Estudiosa e acostumada à solidão, fez o modesto patrimônio: o apartamento localizado em condomínio de quatro prédios popular. Arredia ao contato masculino, fugia de relacionamento, até que apareceu o rapaz mais jovem. Na fase madona, passada idade de casar. Aconteceu tão rápido e a união durara décadas.
A conformidade do jeito infantil estabilizou na adultez. Sóbria, tímida e o mundo interior repleto. Tranquila entre mundos, não chegava ameaçar a convivência social pela discrição constante. E tal qual a mãe, a administração financeira da casa era obrigação dela. Ela respeitou sem queixas, mas projetaram-se simbólicas no relacionamento que aos poucos adoecia. Eram tantos silêncios. O marido, no auge do másculo, dava dimensão importante ao sexo. Sexo, para quê! Separaram-se. Como buscar maneira de conduzir as situações com jeito, sem sofrimento do ex-marido e filhos? Nem sempre o começar é novo. Vem acompanhado de perdas e ganhos numa fluidez em movimento que apenas o tempo, fiel professor, dirá.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

STAND UP E AMIZADE (CENA 11)


04/02/2020
― Osvaldo, finalmente te encontro! ― O jovem colocou a bandeja à mesa e ajeitou-se para sentar.
            O homem levantou o olhar, terminou a mastigação e disse:
― Rapaz, quanto tempo! ― Limpando a boca com o guardanapo. ― A última vez foi na festinha de fim de ano. Conta as novidades.
― O ano é novo, mas as notícias continuam velhas: desemprego nas alturas, povo passando necessidade e o número de mendigos cresce. O governo orquestrando todas as tramoias iguais às das velhas políticas... tudo igual na nossa terra Brasillis. Só se vê o continuum de fake news do presidente, mas não se vê nem o presidente e nem o ministro da economia falar o que vai fazer para acabar com a fome e a desigualdade social.
― Você precisa trabalhar casos de Stand Up para criticar isso, rapaz!
― Vou bolar. Você verá.
― Como surgiu essa coisa de stand up, de comédia, na sua vida? É tão moço.
― Quando eu era pequeno, aprontava muito. Fazia bagunça em casa e na rua, gracinha com todo mundo e por aí foi. Isso tudo foi ontem, porque com 1,68 de altura, sou pequeno até hoje: O “Famoso Tarzan de Bonsai”.
Osvaldo, por pouco, engasga. Tomou gole d’água, limpou os lábios e abriu o riso.
― A maturidade chegou afinal. Hoje em dia nem dou mais risada com pessoas tropeçando na rua. Até porque se eu der risada, vão saber que sou eu.
― Você é engraçado mesmo, baixinho! ― rindo.
― Lembro uma vez que um funcionário da escola foi na sala dar um recado, porém ele tinha sofrido uma paralisia facial na metade de sua boca e falava apenas com a outra metade. Depois dele ter dado o recado, uma colega de classe disse que não entendeu nada. Então falei pra ela: “para bom entendedor meia palavra basta!”. Essa nem a professora segurou a risada.
― Rapaz, você é bom no negócio! ― Osvaldo às boas gargalhadas. ― Quem sabe bola casos também para a próxima festinha? O pessoal vai gostar e o riso está fazendo falta nesse Brasilzinho.
― Vamos voltar a comer que a minha hora de almoço está acabando. Não entendo por que você me chama de “rapaz” já que sabe meu nome.