terça-feira, 30 de abril de 2019

O QUE QUEREM AS MULHERES?


23/04/2019
           Léa tem quatro filhos, meninos entre três e dez anos. O marido, Paulo, chegou à sala, fazendo a última arrumação no terno:
            ― Estou atrasado para o trabalho e hoje teremos reunião com clientes. ― Mal e mal engoliu o café da manhã. Paulo mal percebeu Léa, apesar de ter passado por ela esbaforido. Às crianças sequer dirigiu palavra de bom dia. Léa, hoje, prestou atenção. Ela tentava apaziguar as crianças que não a ouviam, com os cabelos pretos desarrumados, suada, cansada, com roupa caseira.
            Paulo chegou ao escritório e viu Nina, sua chefe, conversando com Lia, uma das funcionárias:
            ― Olho no espelho e me vejo envelhecendo, as roupas clássicas de que gosto, já não me caem bem, me transformam numa velha ultrapassada. E ainda tendo de lidar com o novo momento de minha filha de dezesseis anos pensando em namoro firme, querendo que eu conheça o rapaz. Não estou preparada.
            ― Você está com inveja e ciúme de sua filha? ― perguntou Lia.
Lia tinha seus problemas. Namorava Caio, homem casado e a esposa dele, Jane, acabara por descobrir o caso. Jane, revoltada ao pegá-los em flagrante, informou o fim do casamento, mas que, o filho e a filha adolescentes ficariam com eles, semana sim, semana não, pois agora a amante sentiria na pele o que é ser esposa.
Jane, mulher tradicional, leal e fiel, conhecia o prazer feminino. Sara, sua colega de trabalho que criticara os chifres, não conhecia tal prazer. Jane ao saber da fofoca espalhada no grupo de trabalho, num momento de raiva, contou o segredo de Sara, que saiu envergonhada e chorosa.
            Lia, amante de Caio, tinha uma amiga em comum, Meire, da qual era confidente. Meire era desajeitada com os homens, não sabia chegar, como se portar, o que falar durante um encontro, e quando dizia algo, os homens se retraiam até escapulir. Será que vou ficar sozinha? Lia orientou-a. E Meire encontrou João. Ambos advogados, estavam trabalhando no caso de uma mulher que matou o marido. Meire considerou que a mulher agiu em defesa da honra e protegendo a filha de um estupro. Eis o argumento que sustentaria no tribunal. João envolveu-se com Meire e ambos se descobriram na intimidade e se gostaram. 'O amor despenteia os cabelos e desarruma as gavetas.'
            Enquanto Paulo caminhava até sua sala, Nina, levantou o olhar:
            ― Daqui a pouco os clientes estarão aqui. Tudo preparado, Paulo?
            Uma das clientes era a Susi, mulher bem sucedida. Preocupada com sucesso, poder e voltada apenas para objetivos empresariais. Naquele momento, ditava à secretária, Melina, a correspondência. Melina, tímida e desconcertada, obedecia sob olhares exigentes. Susi fez uma pausa e perguntou à Melina:
            ― Você tem amiga? ― A moça negou com a cabeça.
            ― O médico insinuou que meu desejo por sucesso desenfreado está elevando a testosterona, o hormônio masculino, e que nem pareço mulher. Ele deu a entender que nem devo ter amigas. Isso não é verdade. Claro que não é! Vou provar a ele que não tem a ver. Vamos nos encontrar amanhã para conversar? como uma reunião de amigas, como se você fosse minha amiga? quem sabe tem uma amiga e queira levar? Isso, você leva sua amiga, combinado? na hora e local que eu lhe disse, ― Susi emendou autoritária.
            Melina somente escutou. Ao sair do escritório, Melina presenciou Leona colidindo de testa no poste e caindo para trás. Melina socorreu-a e foram para o hospital.
Leona era motorista de ônibus. Depois de medicada, contou a Melina, meio a trejeitos da face, tiques nervosos que apareciam quando gesticulava o rosto, que o marido era tradicional, e ela julgava o sexo tão normal, tão trivial, e ontem tentou ser diferente.  Preparou a cena para o sexo selvagem que imaginara, mas ao fechar a porta com força atingiu a cara do marido. Com nariz sangrando, ele saiu irritado dizendo que iria embora para a casa da mãe, pois não estava preparado para aquele tipo de vida, ele desejava uma mulher comum. Melina escutou.
Noutro dia ao tomar o ônibus, a motorista era Leona. Leona lembrou-se de Melina assim que abriu a porta do veículo. O que poderia fazer por você? Qualquer coisa, poderia pedir. Melina lembrou-se que deveria levar alguém no encontro com Susi, sua chefe, e como não tinha amiga, perguntou se Leona a ajudaria. Claro, estarei lá. Após o trabalho, Leona passeava de bicicleta, com delicado vestido tomara que caia florido. Ao parar no sinal de trânsito, virou-se para o lado direito, e um ciclista imaginou, por causa dos tiques, que lhe sorrira. Ele gostou de Leona e seguiu-a até um parque. Um encontro inusitado e maluco. Olhares curiosos somente viam ramagens balançando.
            Enquanto isso em casa de Léa, a campainha tocou. Ana, a babá contratada via fone de serviços para ficar com as crianças. Ao ver a babá, Paulo, o marido, engoliu a seco e Léa após observar a moça, retorna o olhar a ele, observando suas reações. A moça, loura, rosto expressivo e sedutora numa minissaia, aparentava ter a mesma idade que ela.
            Ana percebeu o desconforto. Paulo se retirou da sala e a moça disse: ― Vocês vão se divertir. Você é jovem e bonita, quantos anos têm? ― colocando a mão na cintura de Léa de modo provocador, ― bela cintura, deveria estar bem marcada. ― Léa respondeu, vinte e sete, surpreendendo-se. Logo Paulo retornou à sala, perguntando se estava pronta.
            ― Vou colocar um cinto.
            Na manhã do outro dia, Léa pediu ao marido que cuidasse das crianças. Não escutou as desculpas de Paulo e saiu. Encontrou-se com Ana. Logo que a viu, beijou-a num impulso e foram para um quarto de hotel.  Continuaram a se encontrar e Léa sempre pedindo ao marido que ficasse com as crianças. Léa envolveu-se de tal maneira que disse para Ana que largaria o marido. Ana, num tom forte, respondeu que não estava acostumada com rotina, achava o cotidiano chato e chegaria o momento em que estaria saturada da relação e dos filhos barulhentos de Léa. E, ainda, completou, eu sou assim, não me dou com compromissos. Léa ficou desnorteada. A vez em que Paulo seguiu-a, viu as duas conversando numa praça, aos sussurros. De volta à casa, Paulo já estava lá e disse-lhe ter descoberto que Ana a estava ajudando a se encontrar com o amante. Léa deixou o marido falando sozinho e foi para o quarto.
Paulo passou a prestar atenção na mulher ao descobrir que a perdia. Convidou-a então para sair. Contratou outra babá, organizou tudo, Léa ficou admirada dele tomar a iniciativa pela primeira vez.
            Ao chegarem à cerimônia, Paulo subiu ao púlpito e fez a homenagem surpresa pelo aniversário da esposa, declarando seu amor. 'Uma palavra e tudo está salvo. Uma palavra e tudo está perdido.' Paulo caminhou até Léa e beijou-lhe.
A música começou. Léa foi dançar com Paulo.
Ana, estava lá, de flerte com uma jovem, nem via Léa mais.
Nina conversava com Lia sobre o tempo, sobre a filha, sobre o sentimento de competição com sua menina-moça. Decidida que iria trocar as roupas por peças cleans e joviais.
Lia estava distante, exausta de lidar com os filhos de Caio, que agora moravam com ela semana sim, outra não. Nina perguntou, que houve Lia, e sua paixão? Lia respondeu que iria mandar Caio para o inferno junto com os filhos.
Jane e Sara participavam de outro grupo feminino. Até que Sara aproximou-se de Jane e pediu-lhe desculpas. Jane explicou então que o ocorrido fez que largasse a vida monótona de dona de casa e deixasse de ser passiva. Sara, por sua vez, disse que nunca sentira orgasmo e nem sentia necessidade, estava bem daquele jeito.
Meire dançava com João, apaixonados, beijavam-se.
Susi conversava com Melina. Pela primeira vez, Susi se interessara por ela e perguntara-lhe se tinha mãe. Melina contou que a mãe estava presa por ter matado o pai, e amava demais a mãe que a protegera. 
Leona por sua vez, se empolgava na festa, dançando em grupo com outras mulheres e descobrindo que não queria aceitar a proposta de casamento do ciclista, queria ter experiências com outros homens, não somente com um. Enquanto falava, as amigas notaram que os tiques de Leona desapareciam.
            Eis o conto que bolei a partir do filme da diretora francesa, Audrey Dana, O que querem as mulheres.
A película fez refletir. Lembrei as citações de Freud: "A maioria das pessoas não quer realmente a liberdade, pois liberdade envolve responsabilidade, e a maioria das pessoas tem medo de responsabilidade."; " Não somos apenas o que pensamos ser. Somos mais; somos também, o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos... sem querer."; "O homem é dono do que cala e escravo do que fala."; "O caráter de um homem é formado pelas pessoas com quem escolheu conviver."; " Nunca fui capaz de responder à grande pergunta: o que uma mulher quer?" 

'De longe tudo é igual, já dizia alguém.' Quando a câmera se aproxima...


'  '  citações do escritor Ronald Claver.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

NINGUÉM NASCE MULHER, TORNA-SE MULHER



NINGUÉM NASCE MULHER, TORNA-SE MULHER
09/04/2019
            “Amar é ter um pássaro pousado nos dedos”. Rubem Alves, um de seus poetas preferidos. Desta vez discordaria dele. Pelo menos do restante da frase “... a qualquer momento ele pode voar”. Ele pensava em Fatinha. A namorada romântica, iludida com suas frases de efeito. Lia Manoel de Barros, lia Bandeira, Quintana, tantos outros. Repetia habilmente poemas irmanados de lirismo. Mas o seu dizer, palavras soavam falso. Homens assim também usam poesia. Assim enjaulava as vítimas. Fatinha, doce e ingênua, se derretia vendo-o declamar versos, estrofes, poemas inteiros e ele vaticinado, a certeza de ter conquistado a presa. Fatinha, o bicho domesticado, criada em redoma no interior do estado. O namorado endeusado pela mocinha de coração generoso. Fatinha cumpria à risca o papel de boa moça respeitosa das convenções e Vogel, ela acreditava, pássaro autêntico.
            Vogel caminhava firme, na certeza de dar o golpe certeiro, devagar, a conta gotas. O rei do gado, pai de Fatinha, o considerava bom partido para a filha. Vogel vinha dos lados de Mato Grosso e o sobrenome que furtara dava conhecimento de família oligárquica dominadora de terras locais, oriundas de antigas grilagens, terras públicas, terra de São José, que caia nas mãos de espertos. O rei do gado assim também fizera, amealhando aqui e ali pedaços de terras devolutas e outras de pequenos agricultores que, se ousassem questionar, tinham a família eliminada a bala, obrigados a deixar a terra. As mulheres não se metiam nesses assuntos, predestinada a elas a herança e não a palavra. Mudas, opacas, sem cor, amarelecidas, mulher objeto de uso e enfeite. Fatinha desconhecida desses temas, ouvia apenas o coração. Aceitou tornar-se a mulher que ele sonhara, soprou ele no seu ouvido.
            O casório teceu a contos de fadas, bordado por Fatinha e corroborado pela mãe e pelo pai, que faziam sim, os gostos da filha. Fatinha nos ares, em voos fantasiosos com o deus Cupido, o deus do seu coração estava prestes a ter o corpo virgem e franzino.
            No famoso hotel, Vogel abriu a porta do aposento, Fatinha entrou sem a pompa habitual. Ela sonhara que ele a carregaria nas asas. Vogel, assim que trancou a porta do quarto, puxou-lhe pelos cabelos e a ira traduziu suas palavras:
            ― Nem um pio ou arrebento essa carinha de bonequinha do papai. ― em seguida, rasgou-lhe o vestido. Fatinha, olhar apavorado, antes de abrir a boca, ganhou uma bofetada. ― cala a boca!
            Jogou-a na cama, retirando a roupa à força, rasgou-lhe a calcinha, introduziu o membro ereto sem o ritual sonhado pela moça. No grito vermelho, Fatinha viu o demônio sobrevoando em cima de si e desmaiou. Ficou grávida nesse dia. Ele não mais se interessou pela presa, casou-se com direito aos bens, isso que importava. Grávida, Fatinha saiu de casa, tornou-se mulher. Dona do próprio nariz, estudou, formou-se, conseguiu emprego, sustentava o lar. Vogel destituiu-lhe a fantasia e o estrago emocional tratado em consultório psicoterápico por longos anos. Desconfiada, disfarçava a perda imaculada com sorrisos e brincadeiras no ambiente de trabalho.