quarta-feira, 27 de julho de 2016

À PROCURA DE LISTAS

   Acabei de acabar a leitura do livro do Humberto Eco, Confissões de um jovem romancista. E senti uma tristeza por ter encerrado a leitura deste livro que traz no seu bojo a história do ponto de vista técnico sobre o escrever literatura.

   O livro está cercado de ricas referências, com exemplificação admirável, como no caso das imensas listas que muitos escritores lançam mão procurando dar uma visão de detalhamento obsessivo que, às vezes, se arrastam mais e mais de três ou quatro páginas. Ele diz ser fã de listas e em todos os cinco livros de literatura as utilizou. Exemplifica as que colocou nos romances O Nome da Rosa, O Pêndulo de Foucault, O Baudolino ..., além de outros autores, como Rabelais, Joyce e outros que fizeram o mesmo. Além do que muitas delas têm intenções diferenciadas, a depender do escritor.

   O livro também traz acerca dos personagens, aqueles que acabam por ter vida própria para além do livro, como no caso do Detetive Poirot, Anna Kariênina, Madame Bovary. Da semiótica dos personagens. Do leitor modelo e empírico... dentre outras acepções que estão me sendo muito úteis.

   E foi aí que percebi que eu própria tenho cá as minhas listas, minúsculas às apresentadas por ele. Só nunca tinha imaginado a imensa utilização delas na literatura pelos escritores. Engraçado que a gente como leitor empírico deixa passar em branco muitas dessas situações quando se lê um livro e somente quando se torna um leitor crítico é que percebe a verdadeira intenção do escritor. Li O nome da Rosa e nem lembrava de lista alguma e lá está. Incrível achei é o catálogo de livros que Teofrasto (filósofo grego) escreveu. Como pode uma pessoa ter escrito tanto livro durante a vida, Humberto Eco gasta quatro páginas só para relacioná-los... puxa vida como é possível?

   Percebo que esses tipos de livros são bem legais porque a gente entra em contato com o escritor como humano que é, pois normalmente se endeusa um pouco esta arte.

sábado, 23 de julho de 2016

A ESPERANÇA DE DICKENS

   No domingo assisti o filme Mr Pip, de 2012, com aquele ator de House, Hugh Laurie. O filme vem recheado de aventuras por um lado e de outro, a terrível agressividade e carnificina oriundas de uma guerra, onde são massacrados em sua existência o povo de Papua Nova Guiné, na sua maioria crianças, mulheres e velhos, já que os homens e os jovens são levados obrigatoriamente a servir o exército na guerra.

  A população é castrada em seus direitos. Não tem um povoado estruturado, com escola, hospital, praças, empregos. Tudo é subsistência. A sobrevivência consiste em não incomodar o ditador da guerrilha. O silêncio e o esquecimento de atos de vandalismo e crueldade é obrigatório, senão o golpe fatal é a perda da vida.

   Assim vão vivendo as pessoas daquela comunidade. Até que um dos moradores, único de raça diferente dos locais, um branco, casado com uma das moradoras, chamado por todos de Senhor Pip, resolve dar aulas para a garotada. A mulher dele tem problema mental e geralmente fica em silêncio. Ele cuida dela com afeto e carinho irreconhecíveis.

   No início da classe ele revela não ter habilidade de professor, mas se dispõe a encantar a vida daquelas crianças a partir da história de Charles Dickens, Grandes Esperanças (no português), onde existe um tal de Mr Pip.  Em contrapartida as mulheres do local querem também participar como professoras levando as histórias locais. No que são respeitadas pelo professor. Elas consideram os ensinamentos do livro com abordagem que traz ideias para além das exigências no povoado. 

   E a criançada atenta às palavras do professor, cada qual ao seu modo vai construindo o arcabouço interior pelas mensagens de fé e esperança que trazem o livro. A mais envolvida de todas é uma mocinha, que a partir de cada etapa, vai vivendo sequencialmente as cenas em sua fértil e inteligente imaginação. A mocinha escreve o nome Pip na areia da praia e ao mesmo tempo vive cenas do livro. 

   No decorrer o professor cria uma afeição pela mocinha devido às conversas que têm sobre o livro. Propõe tirá-la daquele lugar junto com a mãe num barco que sai durante a noite e que avisaria quando. O que acontece a seguir vai modificar a intenção. O ditador volta ao local e quer saber o que é Pip, pois viu o escrito de cima, de um helicóptero. Contam que é um personagem de um livro. Ele quer ver o livro e a mocinha corre até a escola para pegar, pois ficou sobre a mesa. Chega lá e não o encontra. A mãe dela escondeu o livro para que as aulas fossem interrompidas e naquela situação acabou ficando calada por não poder revelar o que fez. O ditador diz que vai dar um prazo para mostrarem quem é o tal Pip. Isso já queimando móveis e utensílios de todas as casas do povoado. Até a escrivaninha da mocinha, onde ela escondeu o livro achado nas coisas da mãe. E a única salvação queima na fogueira.

   Como não tem como comprovar a existência do Mr Pip, o professor vem com um nariz de palhaço, vermelho e, diz ser o senhor Pip, o que é confirmado por uma das crianças. O ditador acha que está sendo enganado, não acredita em nada. Mata o professor, a criança e a mãe da criança, a mãe da mocinha que também se atreveu a falar. Quando vão embora deixam o povoado atirado ao caos, próprio das guerras civis que tanto vemos pelo mundo.

   A mocinha perdida vai para a beira da água e de repente vê o nariz de palhaço pendurado num galho. Entra na água e força o corpo até conseguir pegar, mas não consegue e acaba se afundando e a correnteza levando, até que é salva pelo Mr Pip de Dickens. Na verdade um grupo que estava fugindo do local no barco e percebe que ela está se afogando. São resgatados mais tarde por um navio e ela vai para a casa do pai, na Austrália, lugar que a mãe resistiu ir, com dificuldade em largar a cidade natal.

   A mocinha visita Londres e conhece a casa onde Dickens viveu e que é um museu. Também descobre que o professor era casado com outra mulher na verdade e deixou-a por uma atriz da época, que era do povoado onde ela vivia. A ex-esposa do professor alega nunca ter entendido o que ele viu na tal atriz e que tinha sido um homem que nunca conseguiu nada na vida. Bem ao contrário do homem sensível e intenso que a mocinha conheceu. Descobre o livro na biblioteca dele e a ex-esposa lhe dá de presente.

   Os ensinamentos e experiências da mocinha mais tarde vão orientar a vida da mulher que se tornou Matilda. O nome é a única coisa que possuímos e que ninguém pode nos tirar. E a importância de correr atrás dos sonhos. Torna-se uma professora e num novo tempo ensina as crianças do povoado.

   A esperança dá significado à existência.    

terça-feira, 19 de julho de 2016

NOVAS PÉTALAS

   Terminei o livro do Cristovão Tezza e não podia deixar de colocar as últimas impressões. Que fique claro, é a minha interpretação. Os antepenúltimo e penúltimo capítulos ele faz uma síntese genial do que foi abarcado em todo o livro. E dá uma pincelada em cada tema tratado.

   Na questão da inadequação como a causa do escrever, não significa que por isso todos vão escrever ou que se escrever, será literatura. Aí vai depender do trajeto e do desejo de escolha. Apenas percebe como pano de fundo a existência de uma inadequação com relação à vida pela pessoa que passa a escrever. O que necessariamente pode ou não se tornar literatura.

   Da solidão em que vive quem opta por escrever e de admitir tal situação como uma tarefa a cumprir que não pode ser relegada. Até diz de forma interessante: "... que o ato de escrever também tenta resolver problemas que antes não existiam. Ou, se existiam, eram apenas uma massa difusa desesperada por uma formulação...".

   Do uso da palavra, desde a primeira que é elaborada e que vai se agigantando, tanto que a segunda já passa a escrava. De tal forma que no decorrer da experiência as palavras vão tomando forma no texto quase que espontaneamente, sem pressão do autor. Até chegar aí vai depender da existência de um narrador que não se confunda com o autor, deixa bem claro. Só assim é possível a criação da literatura. Diz: "O nascimento da literatura é o nascimento de um narrador."

   Ele explica como o narrador não se confunde com o autor: primeiro que a linguagem vai ganhando autonomia de tal forma que em nenhum momento lembra o que o autor passará na vida real. E segundo, que o narrador é sempre um objeto, o autor é um sujeito, e que o objeto estético jamais se confunde com o evento da vida. Diz que a literatura só sobreviverá se tiver um narrador responsável.

   Portanto, para ele, "Escrever literatura é constituir um ponto de vista pelo qual estabeleço um eixo de referência da minha condição humana... o ato de escrever cria um narrador, com quem não posso me confundir. Se eu mesmo sou o narrador, não escrevo literatura...".

   Lindo o que ele escreve sobre o narrador. De que ao dar autonomia ao narrador esse gesto é de humildade, de generosidade. "Ao escrever eu me transformo em outra pessoa, e obrigatoriamente tenho de ver o mundo do lado de fora de mim mesmo."

   E chega até ao leitor, e diz que o escritor será o primeiro leitor e que escreve a frase que gostaria de ler. "Esse é o primeiro desejo de quem escreve."

   No final do penúltimo capítulo sintetiza: "Numa obra bem-sucedida, partilhamos a utopia de um mundo possível que, sem ocupar lugar real no espaço, será sempre uma chave generosa para que encontremos, narradores e leitores, nosso próprio espaço no espaço real... digamos que a literatura será uma aproximação densa e silenciosa entre duas pessoas num terreno a que nenhuma outra voz consegue chegar."

   No último capítulo Cristovão Tezza diz que não é Santo Agostinho, mas para mim soou como se fosse ao mostrar um caminho, mesmo que mínimo, como ele diz. Já que no final das contas também não tem ideia do que virá. 

   Nesta última frase lembrei do escritor Ronald Claver que diz: " a escrita é isso: um bordado de nunca acabar, um sonho de muito sonhar, um caminhar de nunca chegar."

   Mas o danado encerra o livro sem dizer o que leva alguém a escrever. Eu curiosa pra saber.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

ROL DE POSSIBILIDADES

   Fim de domingo. Friozinho gostoso apropriado para o mês de julho (vindo de quem a observação hein). Aproveitei o sossego e li o dia inteiro. Que delícia ter esse tempo só pra isso. Pude entrar no livro e esquecer o que passava a volta. E não sabem da maior... livro diferente dos que eu havia dito que ando lendo. O espírito da prosa uma autobiografia literária, do escritor Cristovão Tezza, Record, 2012. Comecei ontem e já chego ao fim. Eu fiquei curiosa com o carrear da história do escritor e não consegui parar de ler. Delícia, quer dizer, bem sofrido e angustiante o caminhar até descobrir-se um escritor de Literatura. Delícia é fazer parte da história e até encontrar pontos consonantes. Delícia é a leitura.

   Pontos de vista sobre a literatura feitos pelo escritor desde a origem. Desde quando compreendeu que queria escrever. E vai durante todo o livro tentando desvendar o por que escrever.Com o olhar crítico explicita o que pensava a cada época. Ainda faltam umas poucas páginas, mas achei interessante o modo de pensar dele sobre o escrever... normalmente pela inadequação do sujeito à visão de mundo e que provavelmente se fosse um sujeito feliz não tinha razão para escrever.

   Outro lance que gostei é sobre como muitos acontecimentos do passado ressurgem em outras histórias, mas não repetindo o passado, mas como novos eventos, servindo de ancoragem à narrativa. Querendo dizer mais ou menos o que disse o Humberto Eco com a ideia seminal. Cada escritor tendo uma visão sobre a escrita a partir de sua experiência como referencial.

   O ponto de vista sobre o realismo também é muito produtivo e ganha aspectos interessantes vistos sobre o modo de pensar dele como escritor. Abarcando a importância do tema e questionando uma visão que limita a realidade, diz "O espírito do realismo... é uma visão de mundo, um pacote inteiro de representação da realidade que pressupõe o poder máximo da prosa, um homem incompleto e desenraizado,... uma viva cultura urbana....".

   E o mais difícil de tudo e que vem entremeado em todo o livro, de como é difícil escrever literatura, pois segundo ele, ela não é ingênua e muito menos espontânea. O necessário trabalho de burilamento no tempo, do conhecimento literário, da linguagem, juntos com o desejo de escrever e querer fazer o melhor possível. "E não se escreve impunemente: a escrita nos transforma."

   Sei que adorei a autobiografia dele, acompanhando a descrição da vivência e retirando bons ensinamentos sobre "o que nos leva a escrever."

quinta-feira, 14 de julho de 2016

NAS NUVENS


   A noite está uma calmaria. A casa vazia sem os filhos. Nada de conversa, risos, aprontações. O ninho vazio é uma realidade a frente. Está mais do que na hora de cada um seguir a própria estrada. Difícil é a gente se acostumar ao novo tempo. Tempo de retornar o olhar a si próprio(a), repaginar o casamento se se é possível e ampliar os lances de novos programas a fim de ocupar o tempo com qualidade e não ficar acomodado(a) e triste com as mudanças.

   Parece frases feitas. De livro de instruções. Como se a vida que se vai vivendo fosse possível receitas práticas. Fico rindo só de ler. Mas não vejo outra solução que não assentar a poeira e refazer a caminhada.

   Consertando um pouco aqui, um pouco ali, os desacertos que implicam em dificultar a empreitada. Tem hora que fico com inveja do marido, calmo, aceita com paciência as mudanças da velhice. Enquanto eu, neurótica, ponho panos quentes, buscando soluções mágicas... pondo a veia poética pra funcionar para alargar possibilidades. O que um pouquinho de invencionice não faz, né. Ajuda a apaziguar sentimentos descoordenados do peito. Ainda bem.

   É o que passei a fazer. Procurando escrever um pouco todos os dias. Coloquei esta meta para ver se alcanço uma melhora na escrita. Além de levar meus pensamentos para lugares imaginários e não ficar assentada em terra firme. Provável esse estratagema funciona para aliviar a angústia que sobrevoa.

  A noite em silêncio. Como era difícil poder sentar a frente do computador e tentar escrever. Agora, o silêncio para que a  mente viaje nos processos de criação pode ajudar na composição, é o que espero. E assim vou exercitando novos momentos de solidão. Um bom exercício, sempre necessário.

   Falei cedo demais. Tem alguém me esperando para jantar. Deixa eu sair desse silêncio e solidão entre personagens. Voltar ao mundo real porque a fome não espera soluções mágicas. Bom jantar!    

sexta-feira, 8 de julho de 2016

A VIDA CORRE LIGEIRO

   
Desenho Ju Martins
Trem antigo. Diferente do trem bala.



   A vida precisa é de coragem. Pego emprestado a fala do Guimarães Rosa. Uma amiga disse que fui corajosa em mudar de cidade, não é fácil disse ela. Existem muitos desbravadores pela vida, não sou a primeira. Mas que não é fácil é verdade. Transformações radicais são necessárias. Desconhecer o todo e a parte e reconstruir um mundo que de hora para outra ficou irreconhecível. Aprender nomes de ruas, conhecer bairros, serviços e gentes. Essa última parte um pouco mais difícil porque criar laços leva muito tempo e a formação da amizade custa a amadurecer (epa! a palavra aqui de novo). E quando se é mais velha também existe o fator "preguiça" (ou acomodação, quem sabe), a opção é por ter boas relações e quanto aos amigos, persistem os antigos e novas construções... indo devagar com o andor.

   Associei a fala da minha amiga e juntei os cacos com um filme que assisti ontem, Kate e Leopold, de 2001, com Meg Ryan e Hugh Jackman. É um filme leve, gostoso de se ver. Eu estava um "bagaço" depois de ter ajudado a filha em um trabalho de escola e precisava de relaxamento. Não precisa de pensar muito, apenas usufruir as cenas. O filme foi crescendo aos meus olhos porque o personagem principal, um duque do século XIX, além de muito romântico, tem uma ética de abalar o nosso século. Transportado para o século XXI por um cientista vidrado no tempo. Os dois têm parentesco de descendência. O tal personagem começa a vivenciar a Nova York abismado com as transformações, veículos, inovações tecnológicas, confusões etc.

   Coincidentemente o duque conhece a mulher dos seus sonhos, moderna executiva que ambiciona crescer profissionalmente e anseia por um amor romântico. Se envolvem e se apaixonam até o momento em que eles têm uma briga e cada um vai para um lado. Chega o momento dele retornar ao seu tempo. O cientista leva-o ao local de transporte. Quando volta a casa descobre ser a executiva a sua tataravó pelas fotos de família. Convence ela a se transportar, pois o tempo está se extinguindo e o portal desaparecerá. Ela decide ir atrás do amado, encontram-se e ficam juntos naquele século. Até aí leve e gostoso filme.

   Numa das falas do cientista é que fui pega. Ele tinha sido atropelado e por ficar falando da aventura do tempo acham que é louco e o prendem no hospital considerando ser ele uma ameaça. Até que ele conquista uma das enfermeiras ao falar sua verdade numa reflexão, diz como o tempo é complexo, onde se tem a impressão de que tudo passa como um sopro. Compara com se fosse um trem em alta velocidade, a vida passando rápida e quando se vê já está na estação. Ela o ajuda a escapulir do hospital e ele leva o duque até o local do transporte.

   Logo em seguida coloquei na TV Cultura e começava Contos da meia noite. E o Paulo César Pereio ali declamando o conto A Rede, de Ana Maria Martins, onde o personagem volta a lembranças do passado durante um voo. Uma delícia de conto.

   Após decido ir dormir, não sem antes procurar um livro da escritora que eu julgava possuir, não o encontro. Enxergo outro e pego para releitura rápida, Um Amor Literário de Letícia Malard, em que a personagem adora  caminhar pelo tema literário durante a trama. Uma cinquentona que ficou viúva e começa, depois de anos de dependência ao marido, a descobrir o que é o viver independente e começa a ser dona de si mesma.

   De apenas um link passei a ter quatro. Temas diferentes mas que remetem ao tempo fisiológico, cronológico, psicológico e ficcional. 

   Para quem queria descanso o cérebro não parou de correr ligeiro.