sexta-feira, 27 de novembro de 2020

palavras (CENA 37)

 

17/11/2020

            Palavras são navalhas...

 

Bia soltou frase meio sem elaboração pouco antes de se despedir.

― Que significa, Bia? ― questionou Ruza.

A frase solta ali na ponta da língua, na ponta da lança, na ponta da lança lançada dentro dela e doía, e dolorida, não encontrasse palavra para prosseguir. Eco a ecoar garganta afora, a exprimir a verdadeira intenção, mas não. Calou-se.

― Questões com Josué andam me incomodando. Deixa pra lá. Não vale a pena tocar no assunto depois desse trabalho que tivemos pelo povoado. Vai descansar. Amanhã tem suas obrigações. E eu as minhas.

― Deixa de ser besta, mulher, vai, põe pra fora essa nódoa.

 

Um casal aos gritos a alguma distância e de repente o homem estapeia a mulher que não reage, escondendo rosto, escora numa mureta, e solta verbo contra ele. O rapaz larga a moça choramingando e caminha de encontro ao saco de lixo e chuta, depois é a vez do cão distraído farejando num canto, que saiu ganindo, abre e fecha cancela tomado de fúria e se ouve o barulhão.

― É o Oswaldo, Bia, seu vizinho? Vamos ver se a moça está bem?

Bia e Ruza a passos largos ofereceram ajuda. A moça ainda em lágrimas, que ao limpar o rosto com costas da mão manchou de maquiagem. As palavras entaladas na garganta, palavras mudas. Ameaçou abrir a boca e desistiu. Abanou cabeça e ao invés de entrar em casa do namorado, caminhou direção ao mar. Estranho era observar que os dois estavam sem máscara.

― Até hoje ter homem assim é inacreditável, e ainda pior é mulher aceitar. Ah, não, esse tipo de homem não merece nada da gente.

― Vamos lá em casa, Ruza, toma uma cervejinha comigo. Topa?

― Bia, você viu aquilo? ah não, tem mulher idiota demais, eu não aguento isso. As pessoas antes falavam pra gente não se meter em briga de casal, mas tais situações exigem da gente se intrometer, sim, porque senão, a violência se expande. Fizemos o possível. ― As duas retornaram uma casa, até portão de Bia. ― A cervejinha fica pra outra hora, o pique se foi, Zé e as meninas já devem estar em casa.

Rosária se despediu. Bia ficou parada no portão, observando o gingado, a cintura marcada pelo bermudão azul, as pernas torneadas, imaginando se Ruza seria a que Josué comentou, ou seria uma das outras duas amigas? Não deveria ter trazido à baila tal assunto, que ideia minha, parece que não consigo segurar a raiva. Mas as meninas não têm culpa, é coisa da cabeça dele. Vou dar jeito de descobrir.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Rosa Momo George Floyd

 

    Faz tempo não posto sobre filmes, mas assisti um que me motivou: Rosa e Momo, italiano de 2020, com atriz Sofia Loren como Rosa, sobrevivente de Auschwitz, antiga prostituta e agora envelhecida, cuida dos filhos de outras mulheres para que possam trabalhar na noite.

    O que faz o filme ter conotação interessante é o garoto Momo, de doze ou treze de idade, senegalês que vai morar com Rosa e aos poucos, com os dois conflitando na relação cotidiana, a sombra do passado ameaça. Muito lindo como o menino vai engrandecendo como personagem, naquele pedaço da Itália modificado pela migração, e que exige reflexão social. 

    O menino e a rua, a vivência da vida vem desse território, o que encanta é o garoto ter personalidade capaz de lutar por uma vida de afeto. Isso nos move no filme, a cada momento o afeto sendo portador de boas novas na vida de uma criança em busca de esperança.

    Quanto a Rosa, as sombras a encobrem também e Sofia Loren traz para nós a firmeza de mãe, autoridade, o desejo de compartilhar solidariedade. 

    Vou parar por aqui, afinal o filme é de 2020 e merece que cada um tenha a própria interpretação. O filme me emocionou do início ao fim. Ver Sofia Loren atuante, a questão do envelhecimento traz outro efeito, uma outra nuance.

    Adorei ouvir a canção na voz rouca da nossa querida Elza Soares, mas não vi créditos. O diretor é  filho da atriz e a história retirada de livro.

    Aconteceu de em outro dia assistir filme com ela, de 1955, a comédia Pão, amor e ... a vida se encontra não importa a idade. São bons contrapontos para análise do envelhecer.

    E outro além, num momento em que Brasil e em outros lugares, a questão da cor é ainda objeto de preconceito (existente desde chegada dos invasores) e mostra o país escravocrata que ainda somos. Rosa traz no bojo o que vivenciou nos tempos nazistas. Um período que não pôde esquecer. Um tempo de cegueira coletiva.

    A cultura é assim, nos mantêm com luzes do raciocínio em alerta e exige tomada de atitude. Não temos George Floyd, temos milhares de Georges Floyds.   

domingo, 22 de novembro de 2020

mar azul, sempre-vivas e no meio ... (CENA 36)

 

16/11/2020

            Até chegar, Bia foi contando:

― Acredita que sábado arrisquei e fui a praia pela primeira vez desde início da pandemia, de máscara e tudo. Aquele mar azul ali me esperando, pouquíssimas ondas, parecia piscina, água friinha, deliciosa, só de caminhar a beira, senti esquentar. Mas a cada passo que eu dava, me assustava, a cada grupo que eu olhava, cada casal, todos sem máscara, conversando pertíssimo como se nada houvesse. Caminhei na minha, cautelosa, sem me aproximar e, eu era alienígena. No final tirei máscara apenas para banho de mar e mesmo assim me preocupei. Ruza, como as pessoas são irresponsáveis consigo e com o próximo, tantas velhas, velhos, todas idades, assim, custei crer. Uma comédia, ou melhor dizendo, tragédia humana.

― Ainda não tive coragem de caminhar por lá, você foi corajosa, disseram que estão chegando turistas. As pessoas estão brincando de casinha, negando a realidade caótica, acreditando que não serão atingidas. Elas trazem riscos maiores para nossa comunidade, temos que alertar o povaréu.

Quando em frente a cerca simples, arregalaram olho uma para outra:

            ― Que jardinzinho! até faz o casebre ter outra vista. Quanta sempre-viva.

 

Nessa moradia quem cuidava do jardim era a filha única de vinte e oito anos. Fora encontrada pela mãe boiando em rio sobre superfície de madeira aos três meses e adotada. Poderiam ser família tranquila não fosse o padrasto tentar abusar dela desde os onze. Nem tudo são flores, cresceu visivelmente ansiosa, desconfiada, atenta todo minuto sem poder descansar. Tornou-se arredia, não lida bem com próprio corpo, sem laço afetivo com os pais. Quando contou sobre a tentativa de abuso, a mãe não acreditou. Por viver angustiada, trancou-se e isso interferiu no jeito de ser e não desenvolveu talentos. Trabalhava, ganhava pouco e convivia do jeito possível. Hoje o pai está velho, mas ela continua sentindo-se perseguida.

― Tão jovem, tanta dor, santo Deus. O jardim dá esperança na gente. Olha, vem vindo uma mulher. ― A mulher com traços pesados, sem riso nos lábios, repassou o que necessitava e mal e mal se despediu.

― As pessoas carregam tanta amargura.

 

Em outro endereço era assim...

A família era maior, com filhas e único filho. A mãe viúva arranjou marido quando os filhos ainda pequenos. Quando uma das filhas aos doze anos, que vinha sendo seduzida ardilmente através de pequenos agrados, doces, balas, carinhos que na ingenuidade de criança beira o purismo, afinal esperava carinho de pai, tinha esse direito, mas engravidou na primeira e única vez do marido da mãe. Para a mãe, a menina foi culpada e não se separou do homem. A menina foi morar num cômodo do próprio lote e somente quando o homem morreu a pobre moça sentiu alívio. Mas a relação com a mãe sempre rancorosa, ambos lados queixosos. Hoje, ela tem muita ansiedade, faz compras para além do necessário, acumula vasilhames sem uso nos armários e dívidas, muitas dívidas.

― Tem mãe que parece inimiga, credo.

 

E ali, num outro casebre, a mulher cuida da mãe com todo carinho. A velha mãe tem Alzheimer, vive acamada. Essa mulher quando jovem foi noiva, o rapaz a traiu, largou-a para casar com outra. Não quis saber de homem depois disso. Única irmã solteira, cuidou do pai até a morte e esse pai maltratava os filhos demais quando criança. Acaso chegasse tarde do trabalho, levava coro do pai que vigiava mais as mulheres. Ela vive para os seus. Cuidou do pai. Cuidou do irmão com problemas mentais até falecer. Cuida da mãe. Pergunta agora a si, quem cuidará de mim? Tornou-se ríspida, agressiva ao contato, culpa outros pelo destino e está perdendo a visão, vê formatos sem cores e segundo médicos não tem solução. Não aceita depender de ninguém. O que faz? Quando sente que as pessoas fazem pouco dela, sai e gasta o que pode e o que não pode, endividando-se. É a válvula de escape que traz grandes dificuldades. O irmão que sobrou vivo continua distante.

 

Na outra casa, a mulher dá conta de tudo. Um dos filhos fumava crack e agora o sobrinho enveredando por mesmo caminho. A família do rapaz não quis saber dele e ela cuida. É afirmativa, durona, faz salgados para venda. Quando jovem teve filha ainda solteira, que foi criada pela avó, pois precisava trabalhar. Tentou suicídio algum tempo atrás. Não teve afinidade com homens desde que foi rejeitada pelo pai da primeira filha alegando não ser dele a criança. Encontrou um homem bacana e teve o filho. O marido é mais acomodado, passivo.

 

Acolá, a mulher é casada e tem dois filhos. Come sem parar. Compulsivamente. Chora muito. Contou que eram mais de doze irmãos e os pais agressivos com eles quando criança. Como vive para resolver problemas de todos familiares, pois sente que é sua responsabilidade, pouco faz por si. Cismada com a morte de um cãozinho de estimação há alguns anos, ainda lamenta e chora por ele.

 

Noutro, a mulher cuidou do marido com problemas de mania e depressão, a tal bipolaridade. E agora a filha apresentando tais distúrbios, é instável, tem dificuldade na escola, no trabalho, com dinheiro, nas fases de euforia sai por aí com milhões de coisas na cabeça, dizendo ter solução para todos problemas e depois, planos vão água abaixo, prostra-se numa cama, carente como bebê. Muitas vezes rejeita medicação e foge de terapia. A mãe e o irmão cuidam com carinho dela e não a culpam, respeitam o jeito único, sabem da doença, e como qualquer doença, precisa ser entendida, respeitada e aguardam o tempo em que aprenda a cuidar de si, mas passam sufoco com dívidas.

 

Na casa seguinte. Seguinte. Seguinte...

 

― Então Ruza, você cuidará dessa área. Tem pouco da história de cada barraco. Histórias sofridas, em sua maioria oriundas da pobreza, da nossa desigualdade. Será que ricos têm tais problemas? Com certeza devem ter. Dores não existem somente aqui. Aqui é pedacinho do mundo. O que se sabe é que ricos têm as benesses, os arranjos, os apadrinhamentos, os conchavos e mesmo os complicados e absurdos problemas para nós, para eles, eles acham jeitinho de encaminhar, terceirizam as obrigações, escondem pais doentes em asilos, deixam filhos escondidos em hospitais psiquiátricos, pagam dívidas deles, calam a boca da imprensa para não tocar em tais assuntos. Aqui, algumas pessoas são discretas, outras contam mais a respeito de si, o que nos ajuda na assistência pelo povoado, esse é nosso papel. Fazemos o que o estado deveria ser responsável. Quando é necessário investir em regiões como a nossa, de pobreza explícita, nunca tem dinheiro. Somos massas que levantam o país e somos massacradas por ele, pelo mau poder, pelos governantes que não têm projeto de país. E nossa falta de educação não nos faz enxergar realidade. Muitas vezes lutamos para que ricos lá permaneçam do mesmo jeitinho de sempre, desde que Portugal tomou posse da terrinha.

― É difícil as pessoas entenderem. A gente participa e assim tem consciência. Consciência social. A maioria da classe média torce nariz por nossos problemas e até nos ataca como se fôssemos os responsáveis pelas mazelas. Na verdade grande parte dessa classe média foi pobre e hoje está em outro patamar. O que faz? Esquece de onde veio. Luta por projetos da elite achando que pertence àquela. Serve de massa de manobra. Quando tudo está bem, a elite deixa a classe média pensar que é rica. Quando as coisas vão mal, como agora vivemos, larga ela à deriva.

― Até mesmo muitos de nós, os paupérrimos, olhamos pra frente e pensamos, eh, eles estão certos, nós somos os culpados, essa nossa ralé, é assim que agimos, não temos solidariedade nem mesmo com os nossos. Quando o jeito é se virar, irmão desconhece irmão, na roça e no canto a gente escuta.

― Pior que é. Vê o monte de gente, tudo pobre e agindo como gado, fazendo o que mandam. No nosso povoado tem tanta gente alienada, primitiva, que desconhece importância do conhecimento para desbaratar pobreza. País com fome é importante para países desenvolvidos, porque assim podem pegar as riquezas sem constrangimento, ninguém chia, ninguém reclama. Eta vida de gado, viu!

Quando perto de casa, de tanto conversar assuntos sempre atuais, as duas mulheres ao se despedir, ainda comentaram:

― Bia, o povo detrás do matagal deve pensar que a gente é tudo pobre coitado. Quando na verdade a gente vê alegria em coisas simples, nas reuniões, nas festas, nos risos, na proximidade com tantos que consideramos família, enquanto eles lá presos em suas mansões com cerca elétrica, de risos falsos, com dinheiro que julgam solução e o que eles têm é solidão. E medo que um dia a turma aqui de baixo, o povaréu, abra cabeça e exija o que tem direito ― dignidade. Por que a gente não quer só dinheiro, não. Mas se falta dignidade, podemos ser fera.

― Ruza, você parece candidata! Precisamos de mulheres e igualdade de gênero no poder, é preciso reivindicar.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

as bolhas (CENA 35)

 

            01/11/2020

Bia se preparou para visita às casas na rotina solidária. Esperou por Rosária que no horário bateu palmas no portão. Mascaradas, se cumprimentaram de longe e foram, sacola no ombro com papel, caneta, água, álcool e banana como lanche.

― Bom sair de casa sem ser para trabalho, não é, Ruza?

― Nem fala, apesar da gente não poder ficar sem trabalhar, sair e conversar um pouco é bem bom.

― A gente quase nem está se falando mais nestes tempos. Ah, sabe quem Josué e eu demos de cara na pizzaria esses dias? O filho de Dona Jovem, o tal que é jogador de futebol.

― Ah sei, aquele lá gosta de dizer, meu nome é Oswaldo, mas Oswaldo com ‘W’. ― Ruza fez gesto irônico e deu risadinha. ― Como é metido, só porque joga naquele timeco acha que é grande coisa.

― Ele estava à mesa com outro casal. Josué viu primeiro e comentou comigo, mas evitei dar trela. O sujeito é da bolha do presidente. O companheiro de mesa queria entender porque ele tinha dado voto e ainda continuava apoiando. E ele disse que nada importava, o presidente poderia destruir o país que ele iria junto até o fim, até o abismo. Fiquei assustada ao ouvir e imaginando a leva de gente que pensa como ele.

― Quando é para ajudar a mãe, some. Já peguei ele dizendo pra ela se virar, pois não vive a custa dela e tem a própria vida pra resolver. Que ela pusesse Bolão pra bancar despesas, não contasse com ele. Coitada daquela mãe, quando ele aparece é pra tirar paz, grita e é agressivo com ela, vive mais preocupado com corpo sarado e roupa de marca. Lembra quando o marido saiu de casa por causa de mulher? Os meninos pequenos e ela criou sozinha. O marido voltou pra casa com eles adultos.

― Engraçado, ele é pardo, pobre, corpo franzino. Por outro lado, é machista, preconceituoso e tem pouco conhecimento, apesar de curso superior.

― As bolhas mostram nossa sociedade mais complicada do que se pensava. Tanto tempo achando estar melhorando a vida e lá vai o brasilzinho regredindo novamente.

― Bolão é tão diferente, né, tem jeito ingênuo. Sofrido, mas pessoa boa. Lembra quando a namorada trocou ele por outro? iam noivar. Ficou tão desorientado e a mãe viu o filho ali, dependurado do lado de fora da casa. A pobre mulher gritou ajuda enquanto segurava a perna do rapaz. Foi o que salvou. Eles são nossos vizinhos de cerca, mas não vi nada. No outro dia contaram dos gritos desesperados da mulher. Bolão depois disso ficou arredio e acabrunhado aos cantos.

― Tanta mãe com problema no nosso povoado, hein, Bia?

― Nem fala, naquele trecho onde vamos é lugar de muito sofrimento, cada história de deixar boca aberta. Mulheres fortes que dão volta por cima e seguram a família com mão protetora e elas nem têm apoio. Seguram a barra sozinhas.

― Quase não conheço aquele pedaço, tem tanto problema assim?

― Bem, voltando ao que a gente falava, da pizzaria, quando fui ao banheiro dei de cara com namorada do Oswaldo, uma bela mulher. Nossos olhares se encontraram e o olhar me pareceu tristonho, sofrido. Parecia cansada, observei.

― A gente sabe tão pouco das pessoas, e sendo ele machista, tenho dificuldade com homem machista, não dou conta desse comportamento. Com essa pandemia então, os problemas estão pipocando pra todo lado, difícil sobreviver nesses tempos de tanta falta, principalmente se se é mulher, negra e pobre. Preconceito por todo lado, a gente sente na pele. Precisa ir longe não.

As duas mulheres fizeram silêncio e continuaram caminhada até a encruzilhada que dava acesso às casas, quando de repente Bia disse, Ruza, pera aí, vou tirar foto dessas flores, que lindas! Estão sim, respondeu. Depois de subir degraus em pedra e terra batida, chegaram a uma das portas. Quem atendeu trazia semblante exausto. Bia perguntou como andava a situação, anotou o que a família necessitava, e a associação enviaria o que fosse possível, ainda visitariam outros barracos.

No caminho Bia contou:

Ela se casou tão nova, o marido era violento e com várias amantes. Separou e ficou quase vinte anos sem querer saber de homem, até que encontrou um viúvo e estão casados há três anos. Ele é bom homem, se preocupa perguntando se ela está bem. Com tanta labuta, essa mulher teve problemas de saúde, pressão alta, diabetes há mais de cinco anos. Ela teve de sair de casa ao largar o marido violento, foi tempo confuso, trabalhou demais. Fica muito nervosa com os filhos e o esposo atual por não respeitarem seu silêncio. Ela me disse, gosto de ficar quieta às vezes, mas sinto falta de conversar com alguém. Homens não compreendem. Tem hora que minha raiva é tanta que como muito açúcar, tomo litro de refrigerante, mesmo sabendo que é prejudicial. Ao conversar ficou mais aliviada, então sempre dou uma passada para saber como vai, os cuidados que anda tendo, não somente neste momento da pandemia.

Assim, no deserto entre uma moradia e outra, tão indecifrável, as duas mulheres caminhavam na areia quente que repicava pelo chinelo atingindo a perna. Que secura nesses tempos, uma falou.

Até chegar à outra moradia.

domingo, 8 de novembro de 2020

incógnita (CENA 34)

 

01/11/2020

            Osvaldo ouviu sinal de notificação. Pegou celular e disse, não aguento mais esse sinal pra tudo que chega, seja mensagens, emails, notícias, é muito chato ficar nesse automatismo, preciso pedir ajuda aos universitários, como faço para me livrar disso no meu dia a dia, ando cansado do que me deixa alerta. Essa tecnologia é bastante intromissiva, que saco.

Abriu aplicativo e viu mensagem, como você está? Dê notícias! Ao mesmo instante teclou:

― Rapaz, que milagre esse, você aparecer? Quanto tempo a gente não se vê nos almoços, hein?

― Pois é, Valdo, somente on line pra bater papo na atual circunstância. Estou trabalhando de casa e com essa onda de infecção do coronavírus intensificada mais ainda aqui no Sul neste momento, o jeito é continuar em casa, apesar dos negacionistas, não é? ― digitou risadinhas.

― Meu caro rapaz! E os stand up? Anda trabalhando neles? Parece que adivinhou, preciso de auxílio. ― Osvaldo explicou o cansaço da tecnologia através de áudio, pedindo orientação de como paralisar notificação. O jovem retornou explicação de como evitar sons incômodos, dizendo, é bem chato mesmo, não tenho notificação de nada mais. Tudo desligado, para esse momento é muito salutar, o estresse é grande e a invasão na vida da gente intensa.

― Sinto assim. Pensei que a causa era minh’idade, mas vejo jovens saturados também. Como andam as coisas por aí? ― Osvaldo escreveu.

― Ando de repouso, com covid-19 e perdi praticamente todo olfato e paladar. Vista como detalhe por nós no dia a dia, a parte sensorial do nosso corpo não recebe o devido valor, mas tem deixado a semana sem graça pra mim. Onde está o cheiro do ar da manhã, o perfume da Dama da Noite... nada pode ser sentido por mim. Eu que nunca imaginaria viver sem o cheiro das coisas, perder tais sentidos está sendo uma experiência nova e péssima.

― Que horrível, rapaz, ainda bem que os sintomas não foram graves, sei que jovens são na maioria assintomáticos, mas muitos vão a quadros graves, não somente nós idosos.

― Claro que não, até mesmo crianças estão no rol. Mas, Valdo, pior que não sentir nenhuma fragrância no ar, é comer e não saber o que está comendo. Eu comia manga, comia macarrão, comia frango grelhado, tudo simplesmente muito apetitoso aos meus olhos, dentro da minha boca só mastigava massa, uma massa diferente da outra no quesito textura, mas a falta do sabor deixava tudo idêntico.

― Olha que isso não acontece só em sintoma do corona, no câncer, em casos de AIDS e outras doenças as pessoas têm essas perdas.

― Somente agora no sexto dia do início dos sintomas, meus sentidos estão voltando e vejo a diferença imensurável que é uma vida com cheiro e sabor. A vida é boa demais para ser vivida sem graça. Cada detalhe mesmo que pareça pequeno como respirar o cheiro das coisas, ou beber o suco favorito, faz total diferença na vida. Atualmente entendo quando dizem que as melhores coisas estão nos detalhes. Dê valor aos detalhes, você se surpreenderia com a falta que fazem.

― Parece Drumond conversando e falando da vida besta, não é mesmo?

― Tem toda razão, Valdo, ― escreveu o rapaz e colocou risinhos.

Osvaldo disse chacotas por um rápido áudio: Rapazzzzzzz, seu texto está muito bom, é poesia pro meus olhos e som bom nos meus ouvidos, quem sabe continua escrever e contar mais.

O jovem riu e disse, somente você para ver poesia em tudo, Valdo. Osvaldo tornou enfatizar, seu escrito está leve gostoso e com visão saudável da vida, o que é excelente. Despediram-se e o rapaz enviou mensagem para o grupo da família, será que alguém pode trazer almoço pra mim, por favor, completamente dependente do outro. Deitou-se. E até dentro de casa, todos mascarados aguardando resultado do teste que demorava dias.

Osvaldo por seu lado, andando pelo corredor ia pensando como a vida está esquisita nestes 2020. Como se procederá no próximo ano esta enfermidade que está surpreendendo a todos? Como estarão as sofridas pessoas que vivem sem apoio? E como ficarão em 2021?