16/11/2020
Até chegar,
Bia foi contando:
― Acredita que sábado arrisquei e
fui a praia pela primeira vez desde início da pandemia, de máscara e tudo. Aquele
mar azul ali me esperando, pouquíssimas ondas, parecia piscina, água friinha,
deliciosa, só de caminhar a beira, senti esquentar. Mas a cada passo que eu
dava, me assustava, a cada grupo que eu olhava, cada casal, todos sem máscara,
conversando pertíssimo como se nada houvesse. Caminhei na minha, cautelosa, sem
me aproximar e, eu era alienígena. No final tirei máscara apenas para banho de
mar e mesmo assim me preocupei. Ruza, como as pessoas são irresponsáveis
consigo e com o próximo, tantas velhas, velhos, todas idades, assim, custei
crer. Uma comédia, ou melhor dizendo, tragédia humana.
― Ainda não tive coragem de
caminhar por lá, você foi corajosa, disseram que estão chegando turistas. As
pessoas estão brincando de casinha, negando a realidade caótica, acreditando
que não serão atingidas. Elas trazem riscos maiores para nossa comunidade,
temos que alertar o povaréu.
Quando em frente a cerca simples,
arregalaram olho uma para outra:
― Que
jardinzinho! até faz o casebre ter outra vista. Quanta sempre-viva.
Nessa moradia quem cuidava do
jardim era a filha única de vinte e oito anos. Fora encontrada pela mãe boiando
em rio sobre superfície de madeira aos três meses e adotada. Poderiam ser
família tranquila não fosse o padrasto tentar abusar dela desde os onze. Nem
tudo são flores, cresceu visivelmente ansiosa, desconfiada, atenta todo minuto sem
poder descansar. Tornou-se arredia, não lida bem com próprio corpo, sem laço
afetivo com os pais. Quando contou sobre a tentativa de abuso, a mãe não
acreditou. Por viver angustiada, trancou-se e isso interferiu no jeito de ser e
não desenvolveu talentos. Trabalhava, ganhava pouco e convivia do jeito
possível. Hoje o pai está velho, mas ela continua sentindo-se perseguida.
― Tão jovem, tanta dor, santo
Deus. O jardim dá esperança na gente. Olha, vem vindo uma mulher. ― A mulher com
traços pesados, sem riso nos lábios, repassou o que necessitava e mal e mal se
despediu.
― As pessoas carregam tanta
amargura.
Em outro endereço era assim...
A família era maior, com filhas e
único filho. A mãe viúva arranjou marido quando os filhos ainda pequenos.
Quando uma das filhas aos doze anos, que vinha sendo seduzida ardilmente
através de pequenos agrados, doces, balas, carinhos que na ingenuidade de
criança beira o purismo, afinal esperava carinho de pai, tinha esse direito,
mas engravidou na primeira e única vez do marido da mãe. Para a mãe, a menina
foi culpada e não se separou do homem. A menina foi morar num cômodo do próprio
lote e somente quando o homem morreu a pobre moça sentiu alívio. Mas a relação
com a mãe sempre rancorosa, ambos lados queixosos. Hoje, ela tem muita
ansiedade, faz compras para além do necessário, acumula vasilhames sem uso nos
armários e dívidas, muitas dívidas.
― Tem mãe que parece inimiga,
credo.
E ali, num outro casebre, a
mulher cuida da mãe com todo carinho. A velha mãe tem Alzheimer, vive acamada.
Essa mulher quando jovem foi noiva, o rapaz a traiu, largou-a para casar com
outra. Não quis saber de homem depois disso. Única irmã solteira, cuidou do pai
até a morte e esse pai maltratava os filhos demais quando criança. Acaso
chegasse tarde do trabalho, levava coro do pai que vigiava mais as mulheres. Ela
vive para os seus. Cuidou do pai. Cuidou do irmão com problemas mentais até
falecer. Cuida da mãe. Pergunta agora a si, quem cuidará de mim? Tornou-se
ríspida, agressiva ao contato, culpa outros pelo destino e está perdendo a visão,
vê formatos sem cores e segundo médicos não tem solução. Não aceita depender de
ninguém. O que faz? Quando sente que as pessoas fazem pouco dela, sai e gasta o
que pode e o que não pode, endividando-se. É a válvula de escape que traz
grandes dificuldades. O irmão que sobrou vivo continua distante.
Na outra casa, a mulher dá conta
de tudo. Um dos filhos fumava crack e agora o sobrinho enveredando por mesmo
caminho. A família do rapaz não quis saber dele e ela cuida. É afirmativa,
durona, faz salgados para venda. Quando jovem teve filha ainda solteira, que
foi criada pela avó, pois precisava trabalhar. Tentou suicídio algum tempo
atrás. Não teve afinidade com homens desde que foi rejeitada pelo pai da
primeira filha alegando não ser dele a criança. Encontrou um homem bacana e
teve o filho. O marido é mais acomodado, passivo.
Acolá, a mulher é casada e tem
dois filhos. Come sem parar. Compulsivamente. Chora muito. Contou que eram mais de doze irmãos e os pais agressivos com
eles quando criança. Como vive para resolver problemas de todos familiares, pois sente que é sua responsabilidade, pouco faz por si. Cismada com a morte de um cãozinho de estimação há alguns anos, ainda lamenta e chora por ele.
Noutro, a mulher cuidou do marido
com problemas de mania e depressão, a tal bipolaridade. E agora a filha
apresentando tais distúrbios, é instável, tem dificuldade na escola, no
trabalho, com dinheiro, nas fases de euforia sai por aí com milhões de coisas
na cabeça, dizendo ter solução para todos problemas e depois, planos vão água
abaixo, prostra-se numa cama, carente como bebê. Muitas vezes rejeita medicação
e foge de terapia. A mãe e o irmão cuidam com carinho dela e não a culpam,
respeitam o jeito único, sabem da doença, e como qualquer doença, precisa ser
entendida, respeitada e aguardam o tempo em que aprenda a cuidar de si,
mas passam sufoco com dívidas.
Na casa seguinte. Seguinte.
Seguinte...
― Então Ruza, você cuidará dessa
área. Tem pouco da história de cada barraco. Histórias sofridas, em sua maioria
oriundas da pobreza, da nossa desigualdade. Será que ricos têm tais problemas?
Com certeza devem ter. Dores não existem somente aqui. Aqui é pedacinho do
mundo. O que se sabe é que ricos têm as benesses, os arranjos, os
apadrinhamentos, os conchavos e mesmo os complicados e absurdos problemas para
nós, para eles, eles acham jeitinho de encaminhar, terceirizam as obrigações,
escondem pais doentes em asilos, deixam filhos escondidos em hospitais
psiquiátricos, pagam dívidas deles, calam a boca da imprensa para não tocar em tais assuntos. Aqui, algumas pessoas são discretas, outras contam mais a
respeito de si, o que nos ajuda na assistência pelo povoado, esse é nosso papel.
Fazemos o que o estado deveria ser responsável. Quando é necessário investir em
regiões como a nossa, de pobreza explícita, nunca tem dinheiro. Somos massas
que levantam o país e somos massacradas por ele, pelo mau poder, pelos
governantes que não têm projeto de país. E nossa falta de educação não nos faz
enxergar realidade. Muitas vezes lutamos para que ricos lá permaneçam do mesmo
jeitinho de sempre, desde que Portugal tomou posse da terrinha.
― É difícil as pessoas entenderem.
A gente participa e assim tem consciência. Consciência social. A maioria da
classe média torce nariz por nossos problemas e até nos ataca como se fôssemos os
responsáveis pelas mazelas. Na verdade grande parte dessa classe média foi
pobre e hoje está em outro patamar. O que faz? Esquece de onde veio. Luta por
projetos da elite achando que pertence àquela. Serve de massa de manobra.
Quando tudo está bem, a elite deixa a classe média pensar que é rica. Quando as
coisas vão mal, como agora vivemos, larga ela à deriva.
― Até mesmo muitos de nós, os
paupérrimos, olhamos pra frente e pensamos, eh, eles estão certos, nós somos os
culpados, essa nossa ralé, é assim que agimos, não temos solidariedade nem
mesmo com os nossos. Quando o jeito é se virar, irmão desconhece irmão, na roça
e no canto a gente escuta.
― Pior que é. Vê o monte de
gente, tudo pobre e agindo como gado, fazendo o que mandam. No nosso povoado
tem tanta gente alienada, primitiva, que desconhece importância do conhecimento
para desbaratar pobreza. País com fome é importante para países desenvolvidos, porque
assim podem pegar as riquezas sem constrangimento, ninguém chia, ninguém
reclama. Eta vida de gado, viu!
Quando perto de casa, de tanto
conversar assuntos sempre atuais, as duas mulheres ao se despedir, ainda comentaram:
― Bia, o povo detrás do matagal
deve pensar que a gente é tudo pobre coitado. Quando na verdade a gente vê
alegria em coisas simples, nas reuniões, nas festas, nos risos, na proximidade
com tantos que consideramos família, enquanto eles lá presos em suas mansões com
cerca elétrica, de risos falsos, com dinheiro que julgam solução e o que eles têm é solidão. E medo que um dia a turma aqui de baixo, o povaréu, abra cabeça e exija o que tem direito ― dignidade. Por que a gente não quer só
dinheiro, não. Mas se falta dignidade, podemos
ser fera.
― Ruza, você parece candidata!
Precisamos de mulheres e igualdade de gênero no poder, é preciso reivindicar.