CONTOS... CRÔNICAS...


PENSO E ESCREVO A CARTA
26/06/2017

“Eu gostaria de dizer que te amo demais, mas algo está interferindo em minha espontânea vontade, não sei quando a perdi, sei que dela não obtenho força, nem mesmo a tarefas usuais. Meu corpo quer, minha mente idem, mas não vou à frente. Sinto-me paralisada por tais circunstâncias, supondo sempre ou jogando a responsabilidade para aspectos que interferem na energia vital e corporal.

É fácil encontrar desculpas simplistas que emperram o caminho, mesmo tendo consciência de que o tempo passa rápido. Neste momento, penso… tenho todo o tempo do mundo, continua o simplismo, até quando? Não estarei aqui, talvez, para ver isso. Você estará e sentirá o fracasso em não ter alçado esforços para ampliar, intensificar esse amor. Sentimento que generalizado em nossa vida, alcança todas as áreas, e não especificamente única opção.

A percepção é sempre insanamente mal utilizada, vê pedaços, fiascos. O amor mudado nestes novos tempos. Nem mesmo os velhos têm tempo a transformação e adotam caminhos básicos que inibem a flexibilidade do complexo universo amoroso. Isso exige muito e sabemos que todos aqueles que têm sucesso no amor estão abertos a todas as janelas e abarcam todas as chances.

Queremos ser perdedores? Permitimos que horas passem 365 dias ano a ano e o investimento em ótimas decisões empurradas. Queremos sucesso na vida e abarcamos extremidades com medo de agarrar entusiasmo.

É o Gol! Amor! Está ali no simples beijo. Ou no gozo. Na sensação que fica depois de um abraço, um carinho com as mãos, o tremor do tesão. A finalização implícita em todo o processo e apenas o auge valorizado, não todos os passos até ali.

Que estou sentindo... que isso… esse tremor indescritível, ninguém por perto a me auxiliar, essa escuridão no redondo dos olhos, e se eu piscar, tudo escuro, não consigo gritar, que está acon te cen n n n...”


O CARDÍACO

21/06/2017

Paciente após cateterismo, deitado aguardando liberação. O médico se aproxima e diz que ele está bem, não precisará passar por cirurgia, apenas pequenos ateromas em veias distais sem importância.

— E aí, tudo bem? Pergunta a enfermeira que entrou na sala após saída do médico.

— Tudo.

— Sentindo dor?

— Não.

— Tonteira?

— Não.

Vai precisar fazer angioplastia?

Não, doutor falou que estou nos trinques.

Que bom!

A única coisa que tenho é solidão.

Que triste!

E tem idiota que não aproveita a vida, quando vê o tempo passou e precisa fazer cateterismo.

O senhor está liberado então.


Até logo, Deus te dê bom marido! diz para a profissional ao sair. 

QUEM GRITA MAIS
30/05/2017

            Quando abri a porta devido aos latidos de Lana, dei de cara com um bicho muito estranho, parecendo um rato comprido. Fiquei paralisada, ele também. Voltei pé atrás assim que o susto descongelou-se. Bati porta com força. Os cães a latir, Jojô e Lulu fazendo coro.

            Respirei fundo e percebi, devia tomar uma atitude, pois que o bicho, encurralado entre elas, não conseguia fugir. Abri devagarinho e aqueles olhudos olhos me encarando. Deu vontade de fazer xixi. Tinha que enfrentar. O coitado quando me viu frente a frente, pensou, mais um sujeito, estou perdido. Num vapt vupt escalou o pequeno muro, subindo no reservatório de gás. Os vizinhos de longe, na espreita, procurando entender tamanha barulhada.

            Peguei uma vassoura e comecei a cutucar o bicho, ver se ele tomava jeito e caçava rumo. Aí que vi, não era páreo para ele, o danado, assustado, começou a grunhir, me enfrentando lá de cima.

            Até que descobri. Um gambá, disse o marido, chegando perto, fazendo o reconhecimento da bagunça de gritos histéricos, latidos e grunhidos. 

             Fiquei ainda mais medrosa. Já pensou ele inventa de esguichar aquele perfume adorável em mim?


PRONTA PARA TUDO
22/05/2017
— Quem é aquela menininha? Uma princesinha no meio dos gatinhos. O rajado de bronze e laranja todo dengoso, alisando-se entre as perninhas da garota. O marrom, de brotoejas brancas e pretas, diz miau, miau, sem parar, querendo colo. O preto, pelos brilhantes e olhar esperto, pulando de um lugar para outro, arredio.
— Senhora, não se recorda, é a filha do jardineiro. Aquele do dedo verde, como dizem por toda a cidade.
De longe observam os movimentos de lábios da pequena. Os gatinhos, miau, miau, tagarelam.
— Que tanto planejam? Daria meu trono para ser uma abelhinha e descobrir.
O mordomo, feiticeiro nas horas vagas, escondia tal segredo. Ele vira o rosto de lado e tumbllle tramblllim, e a soberana… zum, zum, zum, asinhas reconhecendo o espaço, desarvorada da falta de técnica. O criado solta um risinho e volta para o palácio, muitas ordens a dar.
— Socorro, estou zonza, não consigo me equilibrar nesta altura. E tzum, cai nos cabelinhos da menina, que escuta o zunido incômodo ao ouvido. Rodopia e sem perceber torce o pezinho num buraquinho feito pelo pai, que foi buscar a muda de coqueiro lá nos fundos. Os gatinhos, veem a brincadeira divertida e correm atrás da menina. Tibuuummm!
Rolando buraco adentro, a menininha bate a cabeça no tronco da árvore gigante que toca o céu. Cai sentada e ao redor da cabecinha a zon zon zei zei ra ra zon zon zei zei ra ra. Ela escuta longe longe, Socorro, grita a abelhinha. Alguns minutinhos e a menina se recupera do susto, olha para si mesma, pisca, pisca, pisca. Percebe os gatinhos no colo, brincalhões:
— Bilita, onde estamos?
— Vocês falam, Shadow, Meg, Simba, e estão fofinhos, como desenho animado.
— Ai, zum, zum, minha cabeça, zom, zum, zrum.
— Que abelhinha engraçada, sorri. O inseto cai na sua mão, desengonçado. Ela também fala, emenda Bilita.
— Qual a graça, claro que falo, sou rainha. Você não se enxerga não? Também é desenho.
— Eu… A garota se observa, que pena não ter espelho. Olhem meus pés, remexendo os sapatos, é verdade. Belisca-se. Estamos num mundo mágico da animação? Estou miúda e de pernas finas e compridas, levantando-se e girando ao redor. Que lugar estranho!
— Tudo aqui é como quer que seja, diz a imensa árvore, de soslaio. Afinal é o que escolheu, estar aqui com os gatinhos. A menina olha para cima e não consegue ver o fim da árvore.
— Puxa vida, a senhora é enorme, Dona Árvore. Os gatinhos se atrevendo a subir o tronco com as patinhas almofadadas. 
— Esperem por mim, diz Bilita, fazendo movimentos com a mão para que a abelhinha voe.
— Calma garota, não vê que sou aprendiz. Calma lá, senão me machuco, olha minha idade, zum, zum, zum...
— Não se preocupe abelha, aqui reina a liberdade, você vai voar. O coração comanda, falou a árvore.
— Vou alcançar os gatinhos, Dona Árvore, que tem lá em cima?
— Descubra menininha. Bilita, ansiosa, sobe. A abelhinha do lado, manifesta-se, Vamos, vamos!
— Gatinhos, esperem por mim…
Em certo trecho de um galho, escuta longe miados. Entra pelo vão que leva a estrada desconhecida. No final, uma bifurcação, e duas vias disponíveis. Uma com seta à esquerda, Vale dos Sonhos, e a outra, à direita, Vale da Realidade.
— Qual escolher?
— Ouça seu coração, diz a abelha.
— Tenho medo de escutar o que ele me diz. Adoro o mundo dos sonhos, do encantamento, do prazer das brincadeiras e guloseimas...
— … Mas, papai, sempre me diz, Não tenha medo de crescer, pois sonhos há por lá, e um dia vai descobrir para onde seguir. Não se assuste com as emoções, têm momentos de tristeza, têm momentos de alegria. Sempre conte com os amigos.
Enxerga os gatinhos lá na esquina gritando, Vem Bilita, vem brincar de esconde-esconde.
A garota ri, ímpeto de acompanhar os amiguinhos. Coloca o pezinho na curva, e a lembrança do pai. Grita, com a boca entre as mãos:
     — Shadow, Meg, Simba, encontro vocês um dia, preciso voltar para casa!


BROCADILHOS E BEBERAGENS
08/052017
Meados de maio, outono com rajadas brancas disformes no azul. A Vila Germânica calma, sem o vendaval da Oktoberfest. A gente, devagar, aprecia o enxaimel das construções e através do clik imortaliza a beleza arquitetônica. Entrando e saindo de quitandas, rouparia, ornamentos, rústicos diversos e muita, muita opção de cerveja artesanal.
Já é noite em Blumenau. Entramos num bar observando estandes de cerveja. Um sujeito com vestimenta do local, pergunta se pode nos auxiliar. Digo que gostaria de cerveja ou chopp, não estou bem certa, com nuance de mel ao paladar. Meu companheiro explica melhor o que tentei expor, os homens entendem o palavreado usual. Assim que terminamos, ele diz:
Não preciso nem perguntar, vocês são mineiros.
Mas, ao menos dissemos, uai, trem, palavras que nos denunciam.
O sotaque é característico, não tem erro.
A gente nem percebe, mas aonde vamos, por aqui, no Sul, reconhecem. Convida a escolher um lugar e experimentar, o garçom irá em seguida.
Sentamos numa mesa do Bier Vila e nos entrelaces da escolha de comida e bebida, do cantor e violão, das conversas pessoais, o rastro da curiosidade sacode.
Ouve-se o sinete tocado pelo garçom em três batidas e escuto-o dizendo a outro garçom, Está todo mundo alto. O garçom que ouviu caminha até minha mesa, pois meu olhar atento o faz aproximar-se, e diz, É a idade, tudo é permitido, dando a entender que o vozerio da mesa central, abarrotada de homens, ostenta torneio de quem bebe maior quantidade e tipo de chopp, O pior será a dor de cabeça amanhã, emenda.
Logo atrás deles, as mulheres que os acompanham, em mesa separada a pequena distância, não param de tricotar.
Consigo ler lábios sem censura.
Eta mulherada que conversa fiado, hein Serjão.
A Verinha está falando da minha garra na cama, risada alta.
Está vendo a amiga do lado da minha mulher, já experimentei o manjar.
Pode ir quente que é das boas.
Não gostei nada da nuance dela.
Está falando com um expertise.
Bebi do sumo e o paladar pede mais.
Gosto das mais encorpadas, cor caramelada.
O sinete estronda de novo, o garçom e nova rodada. As mulheres desfiam:
Homem é bobo demais, como conta vantagem. Eu que sei no escuro do quarto.
Depois que bebe todas, ele vira para o canto dizendo Quero sonhar com a loura, a morena, a ruiva.
Dora, você está caladinha, de olho na conversa dos meninos?
Com a confusão, quem escuta quem, estou atenta é com Veroca, contando as brochadas.
Tanto chopp tem lado adverso.
Vou me separar, não sei quando vou dizer que gosto de outro.
Tudo menino andando atrás da bola. Do copo. Das saias.
Levo susto com novo arrebentar de sinete e a mesa masculina brinda. Até que as horas saltaram do relógio e eles se levantando, cambaleantes, uns escorando outros. As mulheres se despedem. De repente o alvoroço dá lugar a calmaria.
Entendeu o que falavam? 
Os homens, de mulher e cerveja. As mulheres, de sentimento.

NOITE DE ASSOMBRAÇÃO
01/05/2017

O grupo adolescente se divertia com histórias, terror, gozação, animação, e risadas, de repente, um dá rasteira no outro.

Que isso, Nívio, vem com essa não. Nívio revirando o corpo, não se fazendo de rogado. Todo brincalhão, como sempre.

Que tem eu?

Vandinho não deixava por menos e dependurado no pescoço de Joel contava vantagem na história burlesca do travesti Cintura Fina.

Quando ele veio com jeito amaneirado, ia dizendo e imitando, desviei o corpo e nem bola dei. Saí de fininho. Podem crer, é verdade!

A turma na risada, desconfiada da estrepolia que Vandinho se dizia personagem. Jairo, a meio sorriso, tímido, procurava emendar assunto, dizendo ser verdade a lorota do bicho, eu estava com ele. O Cintura Fina escondia a navalha, bem rente à cintura, naquela roupa arrochada, salto do sapato bem alto, a altura dele fazia Vandinho parecer um ratinho.

Jairo esqueceu de contar que aconteceu com ele e Joel dia desses, Jaime que permanecia em silêncio, atento aos jogos do grupo, falou. Eles, no recreio, resolveram provar um tablete que Jairo comprou na mercearia. Passou a metade para Joel. Abocanharam de uma vez. De repente, os dois cuspiram... era Caldo Knoor... de Galinha. A turma caiu em cima. A gozação adiante e os dois:

Que trem ruim aquilo! Deus do céu! Joel disse entre riso.

Pensei que era chocolate, ou paçoca, nunca tinha visto daqueles tabletes, Ergh! Jairo completou avermelhado.

Assim ia a conversa fiada dos amigos da Cachoeirinha. Encontravam-se na esquina da Simão Tann, encostado no Bar do Careca (que ainda não era do Careca), fechado àquela hora. Esquecidos que de manhã tinham aula. Aos poucos foram se despedindo, cada qual caçando rumo.

A estradinha que Jaime passava, escuridão pura. A luz da lua lumiava um pouco, mas dava muito medo. Andava ligeiro e de repente, vê parte de trás de um cavalo branco. Toma carreira em meia volta, assustado. Não encontrou ninguém na rua. Parado no ponto de ônibus, sem coragem de subir. Esperava que descesse passageiro no local. Quando vieram, subiu atrás.

Tranquilo o cavalo comia capim.


ENCONTRO E DESENCONTRO
25/04/2017

Tenho querido exigir além do que estou preparada. Querendo o sorrateiro, não prestando atenção a ele. Fui me deixando levar, acreditando possível, e a cada situação, avançando um bocado. Considerei alcançar nível exigido e dominar, não o todo, que seja parte a parte, ficaria satisfeita. Isso atingiu significado em pensamentos intermitentes, na vigília, nos sonhos, nas brechas.

Quando dei por mim, era tarde. Impossível retroagir. A extensão com que me envolvi me transformou. Passei a compor figurino inda mais autêntico, mas revestido de perigo, já que tudo feito de forma neurótica avança em deformação.

Vieram noites mal dormidas, cenários me mantinham acesa, mesmo à escuridão de noites e madrugadas. O debruçar sobre livros não bastava, era necessário mais e esses mais confundindo-me. Ia para cama cada vez mais tarde, perdendo noção de coerência entre certo e errado. Viriam consequências.

Sono mais uma vez não vem. Apoio mão e corpo no corrimão e desço esmorecida a escadaria. Não acendo luzes, acostumei-me ao silêncio e escuridão noturnos. Visualizo sombras, impressionada com o vento arrastando galhos do velho coqueiro, produzindo ruídos potencializados na grande vidraça a frente. Fantasmas assombram-me a memória, pensamentos devaneiam, olhar perdido a tantos enredos…Caminho à sala e encosto o rosto na cortina, entreabro e a visão de fora faz o olhar inquiridor. Surgirá?

Vê por onde anda os amantes, a inspiração não é um deles?


VELHA BABEL ATARANTADA
17/04/2017

Sentei no último banco do ônibus. Ao lado, duas moças conversavam, abriam e fechavam mapa, até eu atinar que falavam outro idioma. Doida para puxar conversa e treinar meu parco inglês. Não tive coragem. Ensaiei, não vingou, as palavras não vinham à mente.

Descemos as três no mesmo Terminal. Enquanto esperava outro ônibus, fiquei bisbilhotando com o olhar onde elas enfurnaram. Encontrei, pareciam perdidas, cheguei próximo e lasquei:

Can I help you?

Elas apontaram no mapa para onde queriam ir. Santo Antônio de Lisboa. Um povoado remanescente dos açorianos, estilo antigo apreciado por todos, tanto a arquitetura, quanto a culinária.

Deu início meu papo babelesco, “Is here!” elas entenderam e disseram, “The centre?” Dei um sorriso e falei, “A minute, please”. Virei que nem louca varrida, afoita por informação e esbarrei numa moça que vinha em sentido contrário, copo de sorvete a mão:

Ei, que educação hein!

Minha cabeça na lua só foi atentar pelo episódio à frente. Retornei, agachei, peguei a colherinha no chão, pedi desculpas e fui com ela à cata de outra, o que ela dispensou. Nem liguei, desorientada, preocupada em responder às moças “estrangeiras”, perguntei à funcionária da lanchonete, como ir ao centro de Santo Antônio?

Logo que sair do Terminal, segue em frente e logo vem uma descida, já está lá, dez minutinhos a pé, ela completou. Escutei, mas não escutei.

Esbaforida em repassar a mensagem, meu corpo saiu trombando nas pessoas que aguardavam na fila de ônibus, o Terminal nem tão lotado como costume.

Quando eu fitei elas, o inglês não saiu, comecei a gesticular, mal e mal emiti som. Tentei dizer, misturando português, espanhol, inglês e gesticulando, engasgada com as palavras que se amoitavam em mim e não achavam destino.

Entendi quando perguntaram se demorava mais de meia hora para chegar lá a pé.

Ten minutes walk, eu disse, movimentando os dedos da mão, significando caminhar. Comecei a explicar: After the Terminal… engasguei e falei, “three”, mas a palavra significando quarteirões não me vinha, eu gesticulei feito maluca beleza, movendo os braços, mostrando três vezes o espaço que teriam de caminhar.

Blocks? uma disse. E eu, “Yeah, three blocks only”. Depois segue reto, eu mostrando com o braço e as mãos que tinha de sair do Terminal primeiro, e elas, “Outside?”. Eu, “Yeah” e continuei apontando que teriam de passar por debaixo da ponte. Elas:

Down? Eu, Yeah”.

Elas se despediram. Quando virei o corpo, o ônibus saía, dei sinal, o motorista parou. Agradeci e sentei. O desrazoado inglês que fiz em mímica me alegrou. Fiquei a pensar, será que ensinei o caminho correto? Será que entenderam?

Vi as moças caminhando de acordo com as dicas, conversavam sem pressa. Notei que viraram o rosto na passagem do ônibus, e considerei que me olhavam, sorri. O ônibus parou no cruzamento. Foi quando vi a placa com seta indicativa de Santo Antônio de Lisboa, ao contrário de onde iam.

Bateu desespero, como pude orientar errado, tinha ido no centrinho algumas vezes, e, minha filha explicado como chegar lá… de carro! No trajeto para casa fui me culpando, eu que gosto das coisas certinhas. As palavras surgindo soltas: “right, there, in front of, street…”

Passei a tarde incomodada e elaborando frases em inglês. A idade, a empolgação, provocando desastre.

Minha filha chegou do trabalho. Ansiosa, expliquei o desatino desde o início.

Mãe, você ensinou caminho errado!

Infelizmente.

Elas devem ter te xingado de tudo quanto é nome.

Sei.

Imaginei palavras que significavam xingamento em inglês, só me veio “shit”.



CACHORRINHA DE OLHAR INDIANO
11/04/2017

Olhos puxados levemente pelo sombreado de lápis de olho. O contorno sedutor, garante chamego pelos gestos dóceis e dengosa se estira ao chão. Se você conhecer Lulu, vai querer a companhia dela. Ela entende você sem qualquer pergunta, sem qualquer razão, você é você e pronto!


Começo a mexer em alguma coisa, Lulu espreita, prestando atenção nos gestos, na face, no riso, nos trejeitos e a cabeça? Vira para o lado, outro, atenção concentrada em cada detalhe.


Olha para cima entendendo o que falo, como está o dia, Lulu? Você está linda! Que aconteceu? Porque está assim? Lulu, deixa disso, para de ficar contornando lá e cá.


Fala para ir dormir. “Vai dormir Lulu!” Ela entende e grita que não vai, fala de novo, grita e todo mundo rindo e zombando. A diversão da casa é ver Lulu dando lances pitorescos do lado humano/cachorro, é tanto riso e vai dormir Lulu!


Nada de contrariar. Quer tirar ela do meu lado? Qualquer tapinha em mim não dói, mas o espírito fica alvoroçado, gênio forte para simples vira-lata. Quanta raça no balançar de cauda. E o pelo? Tom audacioso, puxado para o cobre, vistoso, brilhante e macio.


Lulu tem mistura interessante. Cachorrinho bassê e receita canina das ruas, e um monte de irmãos. Família grande precisando ser dividida, para quem doar, coloca na Internet, no Face, quem sabe encontra interessado. Fui conhecer a filhotinha. O maltrato na carinha dos bichinhos, se pudesse levava todos. Só posso levar Lulu. Parece ter trauma, qualquer coisa que se tenha a mão faz que tome carreira e se esconda.


Aqui descobriu, é livre, sem medo. Chegou e é a paixão em pessoa. A retribuição no dócil estar dos animais de São Francisco. Conviver com Lulu é divertido demais!

VAI DAR NAMORO?
03/04/2017
A moça inventou botar o corpo fora de casa. Pensou, quem sabe se eu sair dessa clausura a inspiração se padece de mim. Lá foi ela, na sapatinha, todo olhares ao cotidiano ao redor e ainda fez questão de, ao sair do prédio, colocar o pé direito primeiro, numa forma de se antecipar de algum trololó no trajeto.

O joelho não ajudava muito, vira e mexe, fisioterapia nele. Ela, de jeito atrevido, arrisca-se constantemente, afinal, melhor do que ficar num choraminguá dentro de casa reclamando dores da idade.

Ia a riso solto, uma tarde tão azul merecia o atrevimento, respirou fundo assim que pisou a calçada. Ao respirar a segunda vez, um ônibus passou esbaforido soltando fumaça enegrecida e tóxica. Começou a tossir e virou-se contra a rua, protegendo-se.

Isso não lhe tirara o humor. Até a timidez deu um desconto e tratou de ficar no seu canto. Retomou o corpo e com passadas calmas, lá se foi, cara e coragem, enfrentando o centro da cidade, beirando horário do rush. Quando deu por si, caminhara mais de oito quarteirões e o céu azul se transformado num cinza de Van Gogh, o vento agitando com força. Uma onda de poluição em redemoinho pegou-a e sentiu rodar, fechando rapidamente os olhos.

Ao abri-los, resolveu retornar porque vislumbrou temporal. A conta de pensar, o toró. Marquises não cabiam gente. Nem se importou tomar um pouco de chuva, vinha-lhe lembrança de criança, pé na enxurrada, calçado na mão, alegria junto a turma. De repente, jato de água jogado pelo veículo apressado. A coisa ficou feia. Pinto molhado pedindo socorro.

No entremente do caminho de volta dá de cara com Fulano, namorado de tempos juvenis, tão bonito. Na sua frente, um senhor calvo, poucos cabelos e brancos e porte rechonchudo. Conversa vai, conversa vem, risadas pelo aspecto de ambos, ficam sabendo da disponibilidade de cada um. Ela solteira, ele divorciado, quem sabe vai dar namoro!

PERDIDAS EM LUGAR CONHECIDO
26/03/2017
Amigas prontas para a aventura da tarde. Deixam o carro estacionado em local próximo. Equipadas para a trilha, onde o necessário é uma bolsa com apetrechos femininos, óculos, filtro solar e o extenuado celular. Vestidas levemente, camiseta e short, o biquíni por baixo, a famosa chinela de dedo e água mineral. Precisa mais que isso?
July, Bia e Anita entranham por aquela trilha, conhecida pela terceira vez nesse momento. Um cachorro vira-lata vem caminhar ao lado delas, vamos dar um nome para ele? que tal Zé? e aí Zé tudo bom. Finalmente, após hora de caminhada se deparam com a vista, gente, olha só a paisagem, somente em Floripa para, a cada vez, se abobar frente a tal proeza da natureza, uau! Puxa vida, de tirar o fôlego! Hum, hum!
Espalham a canga na areia da praia e curtem o sol de verão, o dia tão claro que passa sem pressa e podem se atrever permanecer mais um pouco, apenas elas ao deslumbre do ambiente. Zé por perto. Conversa jogada fora, afinal, jovens mulheres onde a tônica em dia de domingo é apenas o tempo de sobra. E não veem o tempo passando por cima do horizonte, passa das sete da noite.
Arrumam as coisas e calmas caminham para a saída da trilha, assuntos correndo. Zé do lado. De repente, quando retornam do descuido do pensar, escureceu muito rápido. À noite, é difícil descobrir passagens, todas se tornam tão iguais e diferentes que, na dúvida, caminham mais a frente, acho que não é aqui não, com essa escuridão não vejo nenhuma saída, a gente está perdida. Continuam e quando veem, caem numa grande duna cobrindo todo o espaço. Estão entre o matagal e a duna e nada enxergam.
Tentam celular, área sem conexão, mais essa. Coração palpita com força, a ânsia pelo conhecido não dá as caras, medo aloja a mente, fala aí Zé, como a gente sai daqui. Zé, no seu molejo canino se faz de entendido, ha ha ha, riem nervosamente e continuam o caminho de Alice, qualquer caminho serve se a gente não sabe para onde ir.
O ar da noite é frio mesmo no verão. Arrepiadas, molhadas pelos banhos de mar, sentem a roupa gelar o corpo. De repente temporal com raios, não têm onde se esconder. Em Floripa, todas as estações podem ocorrer num único dia. Descem a duna, enfronham o matagal e após boa caminhada, mortas de cansaço, caem nos fundos de um terreno. Enxergam luz iluminando a casinha lá na frente. Batem palma, oh de casa. Uma senhorinha vem. A gente está perdida, a senhora sabe onde está a rua? Passem por aqui, ela abrindo o portãozinho dos fundos. Qual o nome daqui? Povoado da Vila, diz a senhora. Percorrem o corredor da casinha humilde, igual à dona no seu falar manso e tranquilo. Desculpa amolar a senhora, obrigada por deixar a gente passar por sua casa. Finalmente a rua. 
Desembocam no povoado desconhecido, casinhas adornam e pouca gente na rua. Caminham e observam à frente três rapazes conversando. Uma fala, vamos continuar caminhando, não demonstra medo, finge que está tudo bem. Os homens param a conversa e observam as garotas passando, boa noite, dizem. Alguns metros a frente, respiram aliviadas, descobrem aonde estão, puxa vida a gente veio parar muito longe. Caminham por mais hora até o local do estacionamento.
Ufa! Nossa Senhora, onde a gente foi parar, caem na risada. E se lembram, apesar do avançar das horas, como a gente pode ir embora e deixar o Zé perdido, ele ficou com a gente o tempo todo, temos que levá-lo onde o encontramos. Vamos Zé! Mais um tempo andando até que Zé se despede delas por reconhecer o lugar. 

 MUNDO RECORTADO
21/03/2017
João Nicodemos, sentado na almofada, pernas em cruz, absorto nos pensamentos, captava palavras para escrever a história. Piscava um olho, o outro olhava para cima, assim as palavras não escapavam. Pinçava do alto uma, outra, entre o polegar e indicador, ajuntava, colhia entre as mãos e depositava no cofre entreaberto à frente, abarrotado, os lábios sorriam, criança grande fazendo estrepolia, quantas palavras!
Com estoque de bom tamanho, olhadela firme de um lado a outro. Os meninos mambembes eram mestres em lhe roubar ideias, eles iam ver só, trancou o cofre e colocou segredo.
Agachou e sentado nas pernas, lançou mão da caneta de pena de ganso, do sítio de tia Estrelita, saída do bolso. Tinha um monte de bobices úteis. Ia contando no ar a quantidade de palavras da história, gesticulava a caneta invisível na mão canhota, e depositou vagarosamente do lado esquerdo. Em seguida, um enorme rolo de papel branco se desenrolava de suas mãos. Moldava gestos, tamanho ideal para a feitura. Vou reabrir o cofre antes que venham gritando pelos corredores e embaralhem minhas ideias e palavras, pensou.
Colocou os joelhos no chão frio e liso. Entreolhava o espaço se agigantando a frente e diminuindo ao se aproximar. Deu uns passos com ajuda das mãos. Contava três passos a frente e voltava dois de ré, sem virar o rosto. Tornou engatinhar mais quatro passos, retornou três. Sabia que estaria perto do cofre quando retornasse cinco passos, ritual do abra-te cofre.
Embaralhou-se, não atinava passos dados a frente e para trás. A confusão fez que ficasse nervoso. Gostava do ritmo certinho. Jogando as mãos sobre a cabeça, buscando cobri-la, caminhava até o cabelo, trazia à face e escorregava quase expulsando os óculos, a visão embaçava, ele tonteava e a insegurança tirava atenção. Balançou a cabeça com força, não, não ia deixar os meninos do capeta atrapalhar o plano e interferir na história.
Tombou pelo chão, tipo tatuzinho de jardim enroscando-se. Tinha truques, os mambembes o aguardassem. Recuperou o senso perdido como passe de mágica, no estalar de dedos. O cofre abriu-se, palavras voando até ele, fumaça no ar, amarelo nuvem abraço sorteio doces amoras torta de maçã gordinho fofura dengo medo feioso risonho monstro birra cãozinho rosa bichinho redondo risada
Birmânia chegou de mansinho, o menino grande balançava corpo pra frente, pra trás. Estendeu as mãos e chamou, vamos Joãozinho, mamãe está esperando.


A PALAVRA FALHA
05/03/2017
- o que aconteceu?
- houve uma falha...
- como assim... que tipo de falha?
- na hora agá o sujeito teve a palavra falha
- e como se deu a coisa, isto é a falha?
- ele estava conversando com a menina e disse:
- eu sou seu pai, ela olhou assustada pra ele.
- desculpa, ele disse. 
Na verdade ele queria que ela fosse a filha. Por causa da mãe!
- o que tem a ver a falha na questão?
- não sei quem é o pai
- quem é a mãe
- quem é a filha
- sei apenas que houve a palavra falha.

outro causo

O mineirin estava empolgado com o desenrolar da situação:
- Então o trem sai mesmo?
- Certeza absoluta. Não vai falhar de jeito nenhum.
- Como você pode falar um trem desse, nem conhece o sujeito direito?
- Mas te conheço e muito bem e sei que vai dar certo.
- O trem está brabo pra cima de mim, então fico bem desconfiado.
- Que nada pode relaxar bem relaxado, que nem disse aquela tal ministra “é só relaxar e gozar”...
- O que esse trem que ela disse tem a ver com nossa treta?
- Qual nada, apenas uma acalmada nos ânimos.
- Do jeito que o trem está feio, difícil a gente se acalmar. 
- Também quem disse que o mineirin não tem culpa, não foi ele que mexeu no trem?
- Ele mesmo, agora o trem fedeu e ele desapareceu dizendo: não tenho culpa com esses trens todos que vêm acontecendo. Virou pó!
- Uai moço, a gente está vendo que os trens todos estão descarrilhando naquela Brasília.
- É tanto trem de lá, trem de cá, outros já estão até em carceragem da braba porque o trem vem só aumentando de valor.
- Enquanto pra nós só vivendo de treta né mesmo?
- Êta trem danado! 


QUE FALTA FAZ O RISO

27/11/2016
Recostada à janela deixava os pensamentos virem em brumas, alguns voltavam tanto atrás que ela já não se apercebia desde quando aquilo lhe faltara. 

Sabia, entretanto, o que não ia bem: o jeito ressequido, a aspereza no tom da fala, o desenho do lábio significando cara fechada, numa forma de sorriso ao inverso, o não achar graça nas coisas simples, a necessidade de ter resposta a tudo, mesmo que desnecessária, a cobrança de si e dos outros, o toque abrutalhado, a perda da esperança. 

Apenas uma única cena continuara a fazer parte. Isso tinha a plena certeza no deixar-se recostar à janela.

Mas para aonde terá ido parar aquela garota que foi um dia?

A garota confiante nos dias, de olhar bem aberto às singelezas e que tão bem interpretava os toques, os gestos, o astral ao redor.

Que teria acontecido que fazia tanta falta?

Se lembrou da frase lida na rede social “ virou pedra a menina que um dia foi flor”.

A frase tomou seus pensamentos e o significado atingiu com estilhaços bem fronte ao rosto. Feriu fundo a fatídica frase e o rosto machucado pelo tempo buscando forjar  respostas, as quais não conseguia resgatar, por mais forçosamente se primasse, melhores fragmentos ousasse firmar, o que experimentasse, nada faria parecer francamente ao antes:

          A espontaneidade juvenil.



JOÃO UM PERSONAGEM FICCIONAL

27/11/2016

Escrever é uma atividade inútil, 
mas para mim ainda é a menos
inútil de todas e a que me faz
continuar vivo.
Dalton Trevisan

João tinha por hábito ficar atento às palavras enquanto formatava seus escritos e cautelosamente a palavra certa surgia no lance quase imediato do pensar em escrever. Se de todo esta não agradasse, em suas fatais revisões, retinha o olhar a busca de melhor opção, e poucas vezes ficava entre a cruz e a espada quando entre duas sentia que poderia dar o alcance almejado na história.

João e seu talento, a facilidade com o ritmo das histórias, a criação do suspense desejado, a estrutura de narrativa entremeada às contradições, conflitos e tensão dos personagens aparente. Mas o batente rígido imposto a si mesmo fez que começasse a apresentar tiques nervosos.

João fez das palavras a razão de viver e obstinadamente entrava para o escritório as seis, nada de esperar pelo café da manhã, acordava, punha-se de pé, trocava rapidamente a roupa, o curto ritual da manhã, obrigatório, barba aparada, cuidado dos dentes e olhada ao peso na balança ao lado do vaso sanitário, em seguida, o potente jato bem direcionado, sem respingos nas laterais, nem ao chão. Mais tarde aceitava que apenas a mulher lhe trouxesse a bandeja com o café, sempre o mesmo, café, leite, torrada em leve manteiga, fatia de queijo tradicional e suco de laranja. O horário sagrado, exigia que a bandeja estivesse à mesa ao lado da escrivaninha as oito em ponto.

João um escritor considerado excêntrico, nos seus muitos anos como literato passaram muitas palavras, e do seu conviver cotidiano nos escritos de contos, romances, novelas, eram as personagens principais e coadjuvantes. Depende da palavra para que a trama se sustente, depende da palavra para que o uso seja do apenas necessário, depende da palavra para que a narrativa ganhe conteúdo. A dependência da palavra como fenômeno fundamental para as criações fez  que aparecessem as obsessões e compulsões.

João era um homem mediano, de talhe mais redondo no rosto e corpo, tinha seus mais de quarenta anos de escrita, acostumado ao uso da máquina datilográfica teve, no final das contas, de adaptar-se às novas tecnologias, com o computador e a internet se complementando, e trazendo ainda mais forte o estresse nas cobranças íntimas, de desconhecimento da família, pois respeitava o estar só fundamental a criação.

João neste período produzia absorto a última trama. As personagens exigentes caiam aos sonhos e pesadelos da noite cobrando que ele não vacilasse. E do material onírico aproveitava palavras que por vezes deixavam de vir na rotina do escrever, tamanha a obsessão pela busca da palavra de marca definitiva. Mal e mal se punha a respirar no afã da criação.

João não se apercebeu que naquele dia tinha passado das oito. Continuou o apertar de teclas criando palavras em combinação perfeita e tomado pela certeza de estar escrevendo a obra que o levaria ao trono e aos prêmios. Enquanto teclava, esbarrava o cotovelo à cintura ou, remexia a perna direita, quando a perna voltava à passividade, batia com o pé esquerdo forte ao chão, e remexia a boca como se um mosquito estivesse pousado no nariz e piscava várias vezes.

João não se apercebeu que passara das dez tão envolvido com as criaturas que povoavam seu mundo. Atinou para as horas apenas pelo ronco forte que lhe veio do estômago. Desviou o olhar para a mesa ao lado e a bandeja não estava ali. Verificou estranhamente que ao chão estavam empilhados os jornais, sempre a mulher catava o do dia e colocava embaixo da escada. Como só ela tinha o costume de entrar no escritório ficou pasmo ao recordar-se que estava neste ritmo obcecado a mais de mês. A mais de mês alimentava-se mal esperando que a mulher lhe trouxesse o alimento. Até mesmo os vasos de violeta que ela sempre aguava quando ia ao escritório estavam ressequidos.

João teve que abrir mão e reconhecer a falta que lhe fazia a visita da esposa. Ela que não soltava um pio sequer para não interromper o transe criativo. A falta começou pequena, sentida de pouco e pouco, de repente tomou outra proporção. Nem mesmo escutava o canto tímido do passarinho na gaiola na área de serviço, que ela constante lhe punha o alpiste. Já não ouve os passos calmos e brandos a caminho de sua sala, não vê a maçaneta movimentar-se para o abrir cuidadoso da porta para que não ranja e o tornar a fechar lentamente na partida.

João sentiu o embaralhar das palavras junto aos pensamentos e ora creditava que sua senhora estava por dar um toque à porta e entrar com a bandeja. Olhou-se e verificou-se ainda de pijama, chinelo de quarto e um odor característico tomava o ambiente e num avanço compulsivo ao teclado escreveu: SENHORA, VOLTA PARA CASA.


TOMADA DE DECISÃO
20/03/2016

            Eu queria sumir, sacudir a solidão que jazia como maresia no profundo de mim.

Não sei que frenesi me fluía, que nem urtiga crescendo na selva interior de soluços, num matiz entrecortado de dores, odores, pavores.

Eu mantinha um solilóquio comigo mesma, tentando entender porque eu sabotava a Márcia, num mote silente e fútil; talvez, não sei se miragem, ou Santo Antônio me resguarde... O medo de Sebastião e Fernando descobrirem o que eu não deixava vir à mente nem sacudindo a cabeça.

A maré não estava pra mim, nem mar nem maresia, o que pingava eram migalhas de uma mente conturbada, a farsa vir à tona como carne cortada, despedaçada pela faca, o sinete ia tocar, o rio vermelho em correnteza ligeira, como filmagem em 8mm, mata verde, rio vermelho, sensibilidade a flor da pele, só, estava subtraída de mim, nuvem, fumaça, não era fácil mirar o ambiente sereno e a suavidade de Madre Tereza, era não, era sonho?

Consumida por uma soltura, que não deixava escapar, eu me sentia um fóssil rastejante, nem rezando a Folhinha Mariana ia dar jeito de fraternizar-me comigo mesma.

Um físsil, macambira bem trançada, fibra, era o possível de se esperar, já que eles me aguardavam para a matiné no cine Santa Clara, na rua Montecarlo, a sudeste donde eu me encontrava sigilosa, próxima à fábrica Silva Francisco, vestindo um silvestre traje emprestado por Maria Eugênia, achando ela que eu iria a uma serenata ou seresta. Silêncios...

Mas selvagem o ímpeto em mim rosnava, queria suprimir o sofrimento, o selo marcado, ardido, dolorido do remorso. Não pude. Pedi então a Suzana, amiga sincera, que fizesse fineza entregar o bilhete lacrado.

Tive de lacrá-lo, tais confidências nem a amiga as merecia, pois micaretas, ao contrário, servem apenas a destruir sólidas e maravilhosas amizades.

Aberto o bilhete foi o que aconteceu.

O MEU AMIGO

13/03/2016
            — Como é que é?

            — Foi bem assim, sem tirar nem por, pode acreditar.

            — Não entendi direito, tem coisa que não bate...

            — ... no entremeio cheira desconexa...

            — ... sabe a velha história de pescador...

            — tô dizendo, foi assim que aconteceu...

            — ...matei a tal onça de medo, com grito...

            — ... juro!

            — Como pode ser ...

            — ... onça é animal grande por demais...

            — ...se aparecesse a tal onça...

            — ... você não tava aqui... tinha sido devorado por ela.

            — Dei um grito tão apavorante... grito daqueles de MEDOOOOOOOOO...

            — ...a bicha fugiu mais desconcertada que eu...

            — ... tô falando

            — Bicho grande que nem onça, você tava é devorado

            — Afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?


O MOMENTO DE UMA MARGEM

03/10/2016

“A beleza do mundo tem duas margens,
uma do riso e outra da angústia que
cortam o coração em duas metades.”
Virginia Woolf

Eu sou a própria. Sou a própria. Assim ela se nomeou.

Passa levemente a mão pelo colo como se o doloroso peito arfasse outros dizeres não sinta tão fortemente esses troços que você sente. Respira fundo não tão fundo quanto deveria agradecida do lembrete que a si própria teima dizer conseguindo esboçar apenas menção de breve riso.

Mansa entra no banheiro e segue o ritual e mostra os dentes ao espelho língua pra fora caretas lhe dão o bom dia sem ares de arroubos.

Sai do quarto vagarosa arrastando a chinela desce os degraus da escada escorando a mão no corrimão amparando o corpo desejado mais leve e quando chega próxima a cozinha já escuta a mãe perguntar que olhar triste perdido é esse minha filha no que responde:

Eu sou a própria. Sou a própria. Assim ela se nomeou quando instada a responder o porquê trazia o olhar triste e perdido, como deixado fugir às escapadelas oportunidade e não pudesse restabelecer o elo.

Toma o remédio que embota sentimentos e amedrontada com o depois passa mais um dia vivendo o desânimo de existir.

REMEMORAÇÃO DOS MARTINS MOURA

18/09/2016

Os pés descalços. Sentada na pedra beira da estrada, joga os pés a frente e começa remexê-los, dedo a dedo, no movimento de dobra-estica, quando para, observa as laterais dos pés, lado de fora, lado de dentro, movimentando de acordo, as rachaduras da casca grossa da pele em volta do pé. Ensimesmada, diz a si: pés largos e desajeitados, a frente parecendo bico de pato e afunilando no calcanhar, descalça de pequena até treze anos de vida, esses pés guiaram caminhos difíceis de sobrevivência, ora algazarras tolas da criancice até pavor paralisados pela vilanice no esteio do lar.

Remexeu fundo lembranças e recordou tiros de espingardas do grupo chegando, se apossando das terras dos pobres viventes do pedaço ressequido. Barulho de amedrontar criançada, fazer correr mata adentro busca de esconderijo seguro. Cada um largado a própria sorte, pois o pai raquítico e desorientado com a baderna, posto no meio do grupo armado, com chapéu entre mãos, dizendo ser de serventia, em posição de respeito, podia dizer o precisado que ele podendo atendia.

Olhos assustados de dentro da mata observavam a valentia do patriarca moribundo, de certo não ia sair vivo da emboscada no terreiro dos Martins Moura. Vinham busca de ouro, pedras preciosas, mantimentos, vestimentas, selas boas pros cavalos, comida pra todos durante dias até aprumada nos negócios, depois, podia estar certo, embora iam sem molestar criança e moça da família, palavra de honra do chefe do bando.

Benjamin gritou: Petronilha, vem mulher, faz o guisado pros convidados dos Moura, não se arrelhe de medo não que eles “agarantem” a nossa proteção, pode fiar confiança, já vi contar, o bando é respeitoso, o bando do compadre?

Saturnino, a vosso serviço, tirando o chapéu de couro em cumprimento, “Vamo” lá senhora dona, ajeita vaca atolada pra quinze “home” esfomeado. Tem novilho pra gente abater? Perguntou o chefe do bando, Seu Saturnino.

Horas de sossego depois de varada fome daqueles homens, aos poucos, a criançada aparece descalça e sapecada de poeira brinca na roda alegrando o fim de noite ao som de viola agonizando ritos do antigo sertão goiano, nos idos de quarenta e três.

Os pés sapecam ritmo no chão, sentada beira d'estrada, velha rememora tempo do cangaço nas veredas do cerrado próximo ao Jalapão.


AS PALAVRAS CONSAGRANDO A CERTEZA

04/09/2016

           A casa literalmente era de palavras. Lá estava a cadeira, objeto e nela colada em post it estava a palavra CADEIRA. Assim por diante, MESA, GELADEIRA, ESPELHO, SOFÁ, TV, ARMÁRIO, ESTANTE, LIVRO, COPO, XÍCARA, PIRES, PRATO, PAREDE, TETO, CAMA, CRIADO MUDO, BANHEIRO, QUARTO, GUARDA ROUPA, SALA, COPA, COZINHA, TORNEIRA, ÁREA DE SERVIÇO, VARAL, JANELA, CORTINA, PORTA. Os objetos básicos da casa nomeados a fim de serem reconhecidos pelo dono.

            A vida em família na casa de Cláudia é serena, o bom relacionamento entre ela, o marido e filhos observados a olho nu. A casa resplandecia leveza pelo equilíbrio emocional. Os três filhos entrando na fase adolescente e cada um exercitando o dom ao instrumento musical de afinidade. Um casal de lar estruturado onde a autonomia pessoal e conhecimento dos deveres eram respeitados.

            Cláudia uma mulher atraente, de estatura mediana, cabelos e olhos castanho-escuros, dona de sorriso e humor apropriados. O marido parecido com ela no semblante, como se diz, o casal fica parecido após anos de convivência. Os dois rapazes e a moça com a beleza exuberante da idade e uma educação no trato com as pessoas de se admirar. A vida de casal de classe média, ambos arquitetos, ascendiam de famílias de poder aquisitivo acima da média.

            O casal administrava bem as diferenças de gênero e contribuíam nas tarefas para o fluir dos dias. Até que Borges, em viagem a fazenda dos sogros numa cidade distante da capital uns quatrocentos quilômetros, a qual administrava por eles estarem em idade avançada, dirigindo o próprio carro, sente um mal estar inexplicável que o obriga a parada estratégica no atendimento ao turista. Por sorte Borges não estava ao volante quando sofreu o acidente vascular cerebral, o AVC. Levado a hospital próximo, os responsáveis em contato com a esposa informam o ocorrido.

            A partir daí a vida se transforma, dois anos de cuidado intensivo, com fisioterapia, no tratamento da paralisia lateral direita, acompanhado de fonoaudiologia, visando restaurar capacidade perdida na região do cérebro responsável pelo movimento, entendimento e fala.

            Cláudia, no auge dos quarenta, ocupa-se no papel de mulher e homem da casa, antes despreocupada com administração financeira, obrigada assimilar os detalhes administrativos e cuidar de um tudo em casa.

            Passando a ter quatro filhos; o marido, um filho a exigir aprendizagem do zero: ensina o á-bê-cê básico, a junção dos fonemas, a formação das palavras, os verbos, a ligação, os complementos, as frases, cada etapa exigindo extrema paciência dado o nível primitivo de entendimento.

            Encontrei Cláudia e Borges numa festa cinco anos depois, ele com melhora considerável nas frases esboçadas, e a mulher do lado atuando na explicitação do incógnito. Ambos de bom humor e tratando a situação com singularidade, sem preconceito ou excesso de zelo, deixando que Borges avançasse no ritmo possível.

            Cláudia me faz acreditar no humano com veemência, o bom humor, a paciência, o amor, a dedicação ao marido, sem demonstrar qualquer ranço. E rimos os três dos apuros que Borges se vê envolvido, pois os segredos engendrados pelo cérebro ainda ocupam especialistas.

            Cláudia contando as artimanhas do cérebro de Borges no dia a dia. Borges ao observar um objeto compreende mentalmente o que é, mas o esboçar é um desastre. Explica, ao ver uma xícara, ele mentalmente vê a xícara e sabe que é xícara, mas diz é um pires, assim por diante, discorrendo palavras bizarras para coisas que na verdade não tem a ver.

            A casa de palavras erigida em socorro ao desespero inicial de Borges, em não concatenar o conceito mental com a materialidade da linguagem, fez que transcorresse o caminho na certeza de não estar só.

            A família vive cada dia de cada vez, exposta às mudanças e estratagemas cerebrais de Borges.


AS MENINAS, AS CORES, JUNTAS E MISTURADAS

15/08/2016

As meninas se encontram para contar as experiências de suas vidas, cada uma com sua particularidade, mas a invencionice ganhando ares de verdade na doce e engenhosa palavra do era uma vez. E reunidas, cada uma com a cor de preferência, a de vermelho, a de amarelo, a com fita verde no cabelo e a de lastro azul, envolvidas no desenrolar da carretilha do faz de conta.

A menina de capa e chapeuzinho vermelho a mais antiga dos contos infantis, disposta a levar os quitutes para a vó e a surpreender.
A menina de capa e chapeuzinho amarelo, de olhar arisco, atenta a tudo que enxerga a frente vai dar defronte.
A de fita verde no cabelo vai serelepe por um caminho desconhecido escolhido para tornar o caminhar livre a outros olhares.
E a menina vestida de azul e seus matizes têm os tons da roupa transformados a depender da aventura.

— eu fui levar os quitutes para a vovó e quando bato à porta acho a voz da vó muito forte...

— eu fui levar um bolo para a minha avozinha, mas quando cheguei lá ela estava com uma cara...

— eu fui levar um pote de doce em calda e na cesta vazia colher framboesas pelo caminho para a minha vovozinha e lá chegando a vozinha dela fininha, fininha...

— eu não saí para ir à casa da minha vovó porque sou pequenina ainda, mas só de ouvir vocês contarem, vejam, as cores mudando de tons, primeiro azul forte tipo anil, depois o azul acinzentou e por último o azul tão claro ficou...

E cada uma contando a experiência com olhinhos faiscantes:

— de lobo e quando me aproximei da minha querida avozinha, eu senti tanto medo...

— e ela disse pode entrar e eu me senti apavorada...

— e então eu fiquei amendrontada...

—  olhem o azul marfim, o azul esverdeado, o azul alaranjado...

E vão continuamente contando emoções:

— eu tinha medo do medo do medo...

— eu tinha pavor da figura estranha deitada na cama da vó...

— eu tinha um olhar de não entender o que estava acontecendo...

— azul amarelado, azul escurecido ao preto, azul esmaltado...

E os olhinhos continuam a brilhar:

— e de repente eu vi que o meu medo era bobo...

— eu não vi mais nada quando perguntei que boca tão grande era aquela...

— eu vi que perdi a fita verde do cabelo e queria mostrar a vovozinha...

— azul pastel, azul violeta, azul pálido...

E em êxtase acrescentando:

— a vovozinha estava tão fraquinha...

— só acordei com o lenhador me tirando...

— o medo do lobo-bobo-lobo-bobo virou bolo...

— azul arroxeado, azul metalizado, azul enfarinhado...

E finalizam:

— de dentro da barriga do lobo.

— e a vovozinha já ausente e o corpinho frio e triste.

— eu e a avozinha comemos o bolo e rimos do medo bobo do lobo.

— e o azul tingiu-se furta cor.

As meninas em roda terminam a contação das histórias apostando quem seria capaz de unir as respostas corretas às verdadeiras narradoras.



Vamos descobrir, coloque um “V” nas respostas da Chapeuzinho vermelho; um “A” nas respostas da chapeuzinho amarelo; um “VD” nas respostas da menina de fita verde no cabelo; e “AZ” nas respostas da menina vestida de azul e seus matizes.

Respostas a partir da primeira fala e assim sequencial: V – A – VD – AZ / A – V – VD – AZ / A – V – VD – AZ/ A – V – VD – AZ/ VD – V – A – AZ / V – VD – A – AZ.

Referências: História do chapeuzinho vermelho, Irmãos Grimm; Chapeuzinho amarelo, Chico Buarque de Holanda e Fita verde no cabelo, Guimarães Rosa.




MALUCA BELEZA
29/08/2016

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?”, defronte a janela divagava a frase. Angustiada e meio debilitada, as varejeiras conversando ao redor da cabeça, passando-lhe sermões. De outra induziam uma postura dificultosa, afinal como aceitar-se doida, mesmo sabendo-se doido poucos são os que se creditam malucos. Aceitar-se maluca beleza. Tem gente que nem se dá conta que é sendo.

Ia falando com as varejeiras, em troca intimavam atrevesse abrir a janela com aquela fisionomia característica, meio sorumbática, ia ter troco a petulância. A mente ficando confusa. As informações não se concatenando com aquilo tudo e onde pontuava a realidade das coisas?

O feitio do rosto em riste pronto a atirar a ira arraigada e,  encarcerada, acatando com veemência as ofensas das varejeiras persecutórias insolentemente atravessando os tímpanos doloridos, zoando em círculo ameaçador. Um atordoar que amedrontava, ao mesmo tempo, impedia seguir adiante o plano de abrir a janela num grito avassalador, berrar ao mundo os lamentos, que condoíam o peito, em blasfemas.

Confusa e embasbacada vem ímpeto estrondoso do cavernoso íntimo, e em frêmito, jogou-se à janela com a mão na tramela, a força jorrada de dentro e a vazão se conformando ao ponto, o escancarar as abas da janela com os braços, tomada de pudor, censura gritos prontos a sair em debandada pela bocarra.

Expandindo-se o brilho da manhã ofusca a doença e o céu trazendo a calma do azul e as galinhas e os pintinhos ciscando o chão frente à janela, opacamente os zunidos se dissipam e saindo da clausura, um arremedo de riso na face e jeito de boba, de cotovelos cravados à janela até fim de tarde.

Até o momento de tornar fechar as abas e com tino conformado dizer “como a fecharei se não for santa?


" " - frases da poeta Adélia Prado


VIAGEM AOS CONFINS DA TERRA
29/08/2016

O que leva uma pessoinha, criança ainda, a buscar no quarto o esconderijo ideal para soltar-se nos rumos da leitura e logo em seguida expandir-se na aventura, de posse de lápis e caderno, de escrever enquanto os amiguinhos alvoroçados do lado de fora da casa, aos gritos, correm atrás da bola numa competição desenfreada?

Com vistas a pesquisa sobre o ler e o escrever entre um grupo de meninos e meninas na idade entre oito aos doze anos averiguei os hábitos diários de uma turminha bem interessante. Eu tinha de relatar tintim por tintim como se comportava cada fedelho desde a hora que se levantava até o final do dia e somente quando se encaminhasse para o sono estaria terminada a observação diária. Eu me deparei com o caso do Serginho, que após autorização dos pais acompanhei por uma semana o ritual diário.

O menininho não gostou nada nada ter uma intrusa participante de suas aventuras marcadamente confidenciais e demorou um tempinho até a resistência em me ter por perto amainasse e pudéssemos estar num mesmo ambiente sem que um interferisse nos atos do outro. Foi como se o meu olhar, feito câmera filmadora, tomasse ângulo e em câmara lenta detalhasse a cena.

Serginho, pela manhã após o lanche e a higiene pessoal, passava a mão na mochila com estampa de menino de óculos grandes e pretos sentado ao chão e do lado um monte de livro e caderno em desordem, se trancava no quarto e absorto esquecia o tempo.

Inicialmente sentado ao chão no cantinho do quarto abriu a mochila imensa, ele miudinho, retirou um livro e em seguida deitando-se de bruços, dobrando a perna, ficando os pés livres para o alto, vez ou outra remexia, a mudança de fisionomia, a expressão moldando-se, ora estupefata, ora risonha, ora indecisa, ora excitada, ora nervosa, ora tristonha, ora pensativa, ora questionadora, ora provocante, ora fazendo careta, ou duas ou três expressões em momento pontual e falando sozinho, imaginando-se na história, dando ordens, acatando-as, pondo-se em alerta, com um sonoro sim, senhor! eu, como múmia, sem mexer milímetro do corpo para não desviar a rota.

Fosse tempo de encerrar aquele imaginativo histórico, virou o corpo, sentou-se novamente fechando o livro com cuidado, colocando marcador, trocou livro por caderno e lápis.


Serginho escreve a história e, falante, descreve o roteiro da viagem empolgado. Passos descoordenados, ora levantando voo, ou na jangada flutuante, em seguida nadando de braçada no mar revolto, e respirante, nova braçada, dali escapando a salvo por marujos do navio, ou em viagem de balão, conhecendo montes rios reserva nativa, o uivar do animal selvagem, ou apito do trem, sirene do navio, ou o orquestrar de banda cantante, os convivas sacolejando corpo.


No final, exaustos pela atrevida aventura aos confins da terra.


O MENINO QUE ROUBAVA POESIA
21/08/2016

Ele voltou-se para o outro lado e atentoficou aos rumos da conversafiada vinda de mesa próxima a dele. Muito arisco e confiante nas anotações ruidosamente elaboradas nos liames do cotidiano à volta. E escreveu numa sentadasó:

Quantas nuvens embalam segredos...

Tornou a espichar o ouvido e levantando-se às pontas do pé como se se levantasse precipitadamente algo seria deixado no ar e passasse despercebido de suescuta. Na calma dos passos atravessa o amplo salão com as mesas encaixadas no devido lugar conjunto com as cadeiras e os grupos falantes envolvidos no tête-à-tête dos amigos conhecidos namorados amantes e de novo encerrouse num canto e hábil tornoua escrivinhar:

De tudo sempre alguma coisa falta...

O bloquindenotas vinha recheado de frases desconexas para ampla maioria das pessoas mas para ele trazia o concerto da vida em sua sinfonia ruidosa noutras encerrava ali os caprichosos acordes de vozes semelhantes e destoadas numa constante contradição de dizeres:

E agora? que agora?...

  Continuou à caça de novidades deixando o cantinho da parede onde se escorou para ir mais à esquerda onde divisava pelo olhar a tremenda discussão entre os jovens e as jovens em tom arfante discerniam a respeito dos temas da idade e esperava ver coroadas as frases mais arrojadas do recinto:

Que merda é essa ou dream falta ver...

Escreveu rapidamente e a mudança da aparência que de súbito envolvimento foi tomada por um borocochô de face talvez pelo não entendimento de significado que a última frase captada lhe trouxesse.   Em se tratando de conversa alheia de tudo há um pouco do simples ao burilado a vida não se restringe ao óbvio mas no implicar de tantos trechos insólitos cada vez que escrevia o menino tinha parasi que o incontestável paralelo à vida nas frases poéticasse tornandose suas era um claro emaranhado que sestendia a complexidade e ao semesmocom a simplicidade de tudo.

   Ao final da empreitada na coleta de frases para o arsenal inspirador dos rabiscapressados feitos nas páginas do bloquinho antes deflechar as estrofes apropriadamente criadas com a colaboração do sêmen da transformação de divervozes.


VOANDO NA CAIXA DE LÁPIS DE COR

07/08/2016

A turma eufórica com a reunião da caixa de lápis de cor sobre a grande mesa começou a planejar o papel que cada cor desempenharia na peça teatral que se esboçava nas mãos do garoto habilidoso da escola simples, onde os professores se permitiam abrir-se aos ventos da imaginação e sonhar em conjunto com os alunos. O menino ia escrevendo as cenas e a turma contribuía no esboço de cada personagem, o menino falando em voz alta para que todos atentassem às ideias e participassem na complementação dos passos, pois uma andorinha sozinha não faz verão.

E a imaginação correndo.

O menino diz fechem os olhinhos e entrem no mundo encantado das cores, se projetava a história do menino e da turma. A cada fala em voz alta iam engajados com ideias a cerca de.

Começa com a abertura das cortinas e apareceu o arco íris. Nós sabemos que o arco íris têm sete cores, o vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, o anil e a violeta, mas no nosso teatro, a gente vai usar a imaginação e botar em cena as cores que a gente quiser e inventar. Em empolgante alegria e olhinhos fechados todos movimentando os corpinhos como se começando a alçar voo, respondendo animados, está bem.

— A cortina está aberta pessoal, o que vem agora...

— A cor mais bonita tem de iniciar a cena, diz um, e por aí vai cada um dando seu palpite.

— Pra mim é o vermelho junto com todos os matizes possíveis, dançando em euforia na roda divertidamente colorida

— Eu quero o azul do mar daquela praia das férias, onde eu ficava a molhar os pés nas ondas quebradas na areia enquanto brincava com baldinho e pá

— Pareço o verde-amarelo-branco que simboliza a nossa bandeira e quero lutar por um Brasil possível

— Eu vou entrar com o cinza azulado dos céus de Van Gogh e em cena me transformar no pintor com pincel a mão e a tela em outra e correr os campos a procura de horizontes inspiradores

— Queria tanto o amarelado, o alaranjado e rubro de uma borboleta esvoaçante pelo jardim florido, retirando o néctar para a fome matar, ai eu quero, pode?

— Eu vou me vestir de fada, a Sininho, com um saquinho cheio de purpurina furta cores, aquele monte de cores inundando a plateia e satisfazendo os desejos das crianças presentes, borrifando purpurina sobre elas.

E a turma empolgada ia arranjando os temas que combinavam com as cores e ao terminar de escrever os detalhes das roupas de cada um, a cor imaginada e como seria a fala todos ficaram envaidecidos de contribuir na peça do teatrinho contando as traquinagens das cores, imaginando a plateia sorridente e envolvida no faz de conta.

DEPOIS DE BOAS DOSES DE CACHAÇA...

13/03/2016
            
Vinham da hora dançante, onde beberam todas, vinho, cerveja, doses de cachaça mineira. Sobrou meia garrafa de sofrível vinho tinto e ele bafejou no seu ouvido:

Vamos terminar essa garrafa no seu quarto? Deixa que eu levo, ela finalizou.

Caminharam até o hotelzinho mixuruca que hospedava a ele e a horda. Os companheiros, logo atrás, teimando enfrentar a noite com requintes de vulgaridade e a todo custo encontrar a mulher de vida fácil que toparia sair com eles p’ruma noite de intensa troca. Quando defronte ao hotel,  os olhares sedutores e avermelhados e vibrantes de tanta cachaça, eles mal parando de pé, insistentes que dariam bom caldo, um deles disse:
            Não vamo pro hotel não. Vamo dar um “rolé” por aí. “Tamo” sem sono
            — Té manhã!
            — Tchau!

O casal é o único a adentrar o recinto procurando manter-se sóbrio e, a primeira vista, atravessa até o elevador desapercebido. Logo que  assoma o quarto, ele vai se deitando numa das camas de solteiro (na esperança da mulher lhe agarrar o pescoço e a noite...), enquanto ela senta-se na outra e o papo ficando estrito. Ela levanta para pegar copos, e entrega pra ele, que deglutia a bebida no gargalo, num comportamento diferenciado do do bar, onde lhe transpareceu ar gentil e romântico.

O silêncio instalando-se.

A mulher bebe vagarosamente, tal e qual no bar e mantém o senso de realidade possível, em contrapartida, quando ele termina a bebida pede para ir ao banheiro. Saindo de lá...
            — vou indo então, até amanhã!
            — até!

Sai desconjuntado porta afora e fazendo o possível de, no corredor, manter a linha, certo de ser observado  pela mulher. Quando desaparece do olhar, ela chaveia a porta, e vai organizar-se para a noite. Ao entrar no banheiro, a toalha de rosto jogada em cima da lixeira.

           Ela despovoa a figura romanceada que, afinal, desaparece da mente.


O CONTO DO VIGÁRIO
13/03/2016

            O acontecido se deu após acharem uma imagem de santo dentro do cofre do presidente, e o veredicto se é dele, ou se não é dele, resolveram doar para uma das duas paróquias da cidade de Ouro Preto, lá em Minas. Afinal, o povoado mineiro é repleto de cristãos sempre zelosos de sua obrigação com a tradicional família mineira, bem se sabe disso lá pelas bandas de São João Del Rei, onde um dos filhos da terra anda pela mídia desfilando um rito incorporado a bem tempo.

            Mas é caso de outra monta. Fiquemos com a história do tal presente para uma das duas igrejas de Ouro Preto.

            Nenhum padre é santo, isso todo cristão sabe bem, mas, por essas e outras, não custa apelar para o sagrado. Isso mesmo que um dos vigários resolveu fazer, arranjar maneira de angariar pra sua paróquia a relíquia desejada, e foi então que disse aos fiéis vocês merecem a tentativa original de ver em sua região a ostentosa imagem, de verdadeiro gosto estético.

            O outro vigário, conhecedor das artimanhas, decide concordar com o parceiro pároco, com a condição de que a decisão divina devesse vir das patas de um burro. O burro receberia a benção com água benta e ungido pela crença da boa fé, do milagre, a trotar para o lado da bem aventurança, a igreja felizarda em adornar em seus púlpitos tão maravilhosa imagem.

           Todos concordantes com as regras ditas divinas, escolhem o animal de um cristão que não faz parte de nenhuma das congregações paroquiais participantes.

           Chega a data e se dá o rito necessário. O burro é colocado no meio do caminho entre as duas paróquias e para aquela que as patas do burro trotarem é a felizarda. A comunidade de um lado, quanto de outro, forçando pensamentos de fé, crentes no poder do bem. O animal indeciso por segundos, de certo a espera de sinal divino que rompa a estática de seu corpo animal e se despenque para o lado da igreja escolhida. Segundos que para a comunidade ouro-pretense se transformava em horas.

           Num é que passada a ânsia do tempo transcorrido, as patas junto com o corpo do animal trotaram pra paróquia do vigário mais apelante ao divino. E divinamente o burro chega a igreja vencedora, onde lhe esperava, nos fundos da edificação, um gostoso e perfumado feixe de capim, o mesmo que costumeiramente lhe era fornecido, vindo do sítio de um tio do pároco vencedor.

É TUDO IGUAL... LÁ E CÁ
12/03/2016

O velho bigodudo, gorducho, com a camisa mostrando os excessos, vai até o palanque pra discursar. E põe pra fora todos aqueles nhenhenhén que nós brasileiros conhecemos bem, imitação parecida ao novo candidato dos “estates”, o ...

Personagem chinfrim da terra brasilis, mostrando parecença com o vizinho do norte, continua com a embromação no palanque, discursa em alto e bom som para aquela comunidade alheia ao que lhe deve a Constituição... e o imbróglio vai longe...

— Meu povo, cidadão dessa nossa boa terra, aqui estou, numa conversa sincera com você, eleitor, porque quem tem boca vai a Roma, não fica parado não. Vocês podem ter a certeza que se eleito, apontando o dedo para as pessoas da plateia, vocês não vão ficar a ver navios, nem vou tapar o sol com a peneira, vou trazer tudo aqui, tudo escritinho e assinadinho embaixo, por mim, todas as necessidades da comunidade, pois que eu lhes amo...

Na plateia um ouvinte bem humorado diz que ele tá certo de fazer um muro separando uma comunidade de outra, nada de misturas mesmo não, temos que ficar só os de casa. Aliás, aqui não é a Casa da mãe Joana, como eles pensam...

 — Eu amo eles também, mas você tá certo. Cada um tem que ficar no seu canto. Nossa vizinhança tá cansada desse pomo de discórdia entre povo de cá e povo de lá. Amo todo mundo, mas não se pode fazer essa sangria desatada, nem dar uma de santinho do pau oco e achar que vai resolver os problemas de todos, como se fossem farinha do mesmo saco... 

— ... A nossa farinha tem qualidade, tem procedência, eles têm é que ficar do lado deles sem ficar correndo pro lado de cá. Eu amo todo mundo, mas cada um tem o seu lugar, nada de querer fazer a vida por estas bandas.

A data chegou e o novo eleito, além da promissora barriga e excessos, tem a peruca de cor cobre até a testa; num ato de rebeldia mostra-se como realmente é e coloca as mangas de fora, sem mostrar nada escritinho... nem assinadinho... E o Zé povinho... continua mansinho... deixa o homem trabalhar... ganhou blindagem da mídia... nada de sacanagem... só com o povo!


MISCELÂNEA (em prosa) *
 22/03/2016
    Tem de haver emoção. Onde ela está, em que labirinto se esconde, pergunta o poeta que clama inspiração. Que emoção é essa, não se precisa estar feliz e nem mesmo aflito para que surja. Vem de onde? João Nogueira diz que ela chega numa rapidez de estrela cadente, assim, de repente, e acende a mente e o coração da gente e eureka, nos guia.

     Tem de haver imaginação. Andar em mar como se andando na rua. Perambular em segredo, os degredos da alma, que pode estar congelada derramante sedente de procuras.

     Tem de haver procura. Mistura. Crie asas, maneje espada, balanceie o corpo numa dança qualquer, samba, porque não? Achou? Continue a procurar, não desanime, porque se no caminho encontrar pedras no meio do caminho, eis a senha, continue a procurar, o impossível pode estar por lá onde se esconde a poesia.

      Murchou? A mulher murchou, a flor murchou, falta regar, lalaia laia, olha que depois de murchar não volta a cantar lalaia laia, o que você está fazendo rapaz que deixou ela se afastar, lalaia laia, tão longe, longe da batucada e do seu amor lalaia laia. A flor? Pétalas ao vento.

     Me conta o segredo. Mas se diz que poesia é incomunicável. Qual a palavra mágica?

        Me conta a verdade. Há? Onde pode estar? Nada é fácil. Pode dormir à sombra, ou até mudar de assunto e que nem um poeta louco, querer um amor e fazer canção, tudo é possível. O encontro pode tardar, mas procura sempre.

       Me encontra inspiração. Já que sou poder da criação, como desencantar e não ficar como doido em tiroteio, buscando timoneiro. Faça a palavra transbordar de esperança, quem sabe assim alcança meu coração.
           

MISCELÂNEA (em verso) *

Emoção?
no labirinto se esconde?
 pergunta o poeta
 clamando inspiração

 não precisa estar feliz
nem aflito
eis que surge

Vem de onde?
 chega rápida
estrela cadente
assim de repente
acende a mente
coração da gente

A imaginação
 anda em mar
 anda em rua
perambula em segredo
degredos da alma
congelada derramante sedente

Tem procura
 mistura
asas
maneja espada
balanceia corpo
dança samba, porque não?
 achou?

Continua procura
não desanima
se encontra pedras
a senha
no impossível está

Murchou?
 A mulher murchou
A flor murchou
se murchar não canta
  não deixa se afastar
 tão longe da batucada
de seu amor

conta o segredo
qual palavra mágica?

Me conta a verdade
 Onde está?
dorme à sombra?
quero amor
quero canção
quero o possível ou não?

Inspiração
 poder de criação
vem
 alcança
o coração

* Escrito a partir de: Letra da música Poder da criação, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, Pôxa de Gilson de Souza; poemas de Carlos Drumond de Andrade: A incapacidade de ser verdadeiro, Segredo e A palavra mágica.



O LANCE DO BICHO
26/06/2016

        O bicho corria. Eu corria atrás dele. Tinha fugido por minha culpa, eu era o único responsável pela confusão. O danado ficava me dando “nega”. Desconjuntado, eu, sem a prática das corridas, com o facão na mão pronto para decapitar o bicho. O bicho correu para dentro do mercado. Eu, a cata dele, meio bisonho, fui dar de cara com aquele monte de barracas. Não sabia nem por onde recomeçar a procura.

      O bicho enfurnou para debaixo da barraca de condimentos. A dona da barraca, no susto, esparramou sabores em pó a quem passava. Eu transfigurado, marcado, tingido de tantas cores, vermelho amarelo preto marrom, danei a espirrar.

     Nem por isso o bicho se acalmou. Continuou a perseguição. Eu, lambuzado de coloridos, expulsando ar impuro sem parar. O monstrinho enganava direitinho fugindo para outro lado. Percebi quando entrou na barraca cheia de gaiolas, onde tinha tudo quanto é bicho.

       Os transeuntes se juntaram ao furdunço assustados, e um monte de bicho escapuliu das gaiolas. Era uma onomatopeia de gritos e mais gritos de bichinhos. As mulheres olhando a fuga dos pequenos ratinhos, tipo hamster, e aos gritos se amontoavam, subindo nos bancos, nas prateleiras cheias de ração, alpiste, milho, cenoura, folhas de couve, alface, e algumas ainda jogavam para cima o que achava pela frente aos roucos gritos de pavor.

    Os pobres ratinhos mais assustados ainda subiam pelas bancas, entrando por debaixo das calças das mulheres. Os que corriam pelo chão entrando nas dos homens e parecia um animado baile de tresloucados. Muitas das pessoas às risadas nervosas, misturadas aos gritos histéricos de rock pesado das mulheres. Algumas ousando rasgar as roupas e já no desconforto apavorado, desabotoando as calças. E eram homens, mulheres e bichos afoitos, tudo por causa do bicho. Eu tentando pegar o bicho. O bicho lá adiante deu uma rasteira no moço do açougue, escapando por um triz de boa machadada e fugindo para o lado esquerdo.

      Foi quando eu quase agarrei o maldito e estanquei forte uma facada no chão duro do mercado tirando um fininho no bicho que escapou por um buraco na parede e escapuliu para fora. Fiquei com cara de tacho tentando arrancar o facão agarrado à madeira do assoalho. O bicho não foi encontrado.


AMOR ORIGINAL

20/06/2016

   “Dói sempre na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia se desprezou...”. Fiquei labutando nas minhas ideia, pra frentemente e pra trasmente, a fala do poeta escritor Guimarães Rosa. Na prosa dele todo tempo se bate rebate poesias tiradas do velho sertão, donde mais há de se achar umas coisas dessa, de pureza pura que nem as que ele fala e desfala também. É coisa do demo ou de Deus, dúvida que habita, para uns mais que outros menos, quando se tem a fé ou dela se abstenha, “mire e veja” coisas do falar roseano que me corta, esfacela dilacera o coração. Que anda miudinho, ou tristonho, pode ser até encompridado, que valha, o importante é que está batendo pra riba, para adiante né mesmo? Pois não é que outra coisa não vale, pois não. Adiantava se já tivesse partido, entrado ido porta adentro? Adiantava? Amor que amor valha tem mesmo é que mostrar as caras, dá de frente, olho no olho e brilhoso brilho vai dentro do do outro e brilha inda mais quando pressente resposta, sem palavra, ali no somente que não mente, mostra a cara e coragem través do olhar. 

   Sei não porque quis ir voltar pra trasmente, vai que uma ventaniinha miúda soprou forte aqui pro meu lado quando a fala é dos amor que a gente teve e que largou mão pra lá, parado que ficou no passado e que nesse momento tratou de dar as caras porque dito e redito de tal maneira que o doido do coração fez arrepiar as lembranças todas idas. E de arrepiado ficou, lembrou e sombreou umas gotas no canto dos olho pra modo de alembrar a gente que mesmo o esquecido têm horas que volta desapercebido. Assim falhando, provando que ainda algo de deve de está incomodando, porque se tá sendo trazido de volta, vai que ainda está lá no lugar escondido, massacrado nos silêncio moído de cada uma pessoa, né mesmo? Vai saber o que roga o coração e a alma de cada uma gente.

   Tá certo que uns e outras, todos são diferentes, indiferente de ser macho fêmea preto branco com credo ou sem dele dar conta. Mas tal e tal é mais melhor dito pelas mulher, que é bicho esquisito, mas tão esquisito mesmo que destronca a certeza da gente macho que é. Pois num é? Me diga aí você que se mostra nos volume agregado na frente dos corpo. Me diga, tem coisa mais melhor de bom que uma mulher que sabe amar a gente de frente pra trás e vice versa. Sem pudor. Apenas entrega de todo corpo. No ali e agora. É trem bom por demais da conta... ou é só coisa de mineirim?

   Por mais que se diga que “o passado — é ossos em redor de ninho de coruja...”, tem hora que volta e faz uns estrondos na gente e alvoroça a imaginação dos crescido e dos mocinho. Coisa do amor num tem hora pra acordar, dá as caras sem aviso e maltrata ou não, carece saber ou não. Não tem como escapar não senhor, isso lá é coisa do demo ou de Deus?


   “ ” - Frases do escritor Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas



PALAVRAS AO LÉU
12/06/2016
Não entendi direito que acontecia.  Gostava de observar na rua os casais enamorados se beijando. Vinha desde a puberdade. Afora o beijo que transforma todo aquele ou aquela de boa fé, nada de diferente eu via.

Gostava de observar mesmo assim. Beijos. O que valia é ver o tipo de casal. Casal de jovem saindo da escola. Uniforme escolar. Era de um tipo. Aquele em que os hormônios deixam o corpo em ebulição. Outro era o do casal tradicional. O do casal de maduros, já sem pompa nenhuma, parece retrocede aos tempos iniciais, do toque de leve.

Diferente mesmo aconteceu no dia em que cada casal que eu via beijando, durante o beijo ia arrotando palavras. Saiam aos montes e quando saiam eu conseguia ler claramente, bem desenhadas, caligrafia legível e de todos os tamanhos, a depender da sintonia do casal. E em volta deles ficava aquele monte de palavras jogadas ao léu. Se vinha vento, vento levava pra longe, ora em solidão destino, ora em redemoinho, circulação de palavras não ditas, arrotadas de significação.

As palavras vindas de casal que parecia apaixonado: A M O R, D E S E J O, T E S Ã O, A L E G R I A, DOÇURA, P A I X Ã O, ...

Noutra esquina me surpreendeu o beijo de outro casal: C A F A J E S T E, M E G E R A, E S T Ú P I D O, M A L U C A,  I D I O T A, A V O A D A, ...

E outro, que a primeira vista me parecia carinhoso: C O B R A, V O U  V O M I T A R, N O J E N T O, G O S T O  R U I M, L A G A R T O, P O D R E, A Z E D O,...

Mais: C Í N I C A, I M B E C I L, B O Ç A L, C R U Z C R E D O, H O R R Í V E L, ...

E: P E R U A, C A R E C A, G O R D U C H O, M A G R E L A, P Á L I D A, J U M E N T O, C O R C U N D A, ...

E tal: P E T R A L H A, D I R E I T A, C O X I N H A, E S Q U E R D A, Q U I R I D A, M A L D I T O, E L I T E, G O L P E, F A L T A, ...

Tem outro: A N J O, D E L Í C I A, F O F U R A, M E L A D O, C U P I D O, A L E C R I M, J A S M I N, ...

Mais outro, um casal de velhos: M E S M I C E, R O T I N A, P R E G U I Ç A,  D E S Â N I M O, L U T O,  S E M  V I Ç O, ...


Não sei que bicho me mordeu. Lembro-me da ferroada de abelha. A minha cabeça já começava a atordoar de tanta palavra. Vinham a fora sem critério e de tanta, tanta, tanta palavra meu cérebro fez embaralhar aquele monte de letra que se desvencilha de uma palavra para apossar-se de outra, talvez tentando apaziguar casais dissonantes, que na verdade deixava escrito em seus beijos a verdade não dita, mas que eu, traduzia literalmente. E as via ao chão, amontoando-se aos pés do casal, ou como se pedissem socorro, ou adocicando sentimentos que reverberavam e saiam indolentes, querendo dizer ao mundo o que realmente vale.

O que sempre gostei de fazer, não aguentava mais. Cada casal que visualizava, descambava mais e mais palavrórios, palavrões, desmerecimentos, falta de amor, perda de respeito, juras malditas. Os poucos abençoados não davam conta da acelerada desdita dos rebeldes anarquistas que solfejavam em palavras, as cruezas que o mundo é capaz. Foi me dando uma lerdeza, não comportava conhecer verdade e dor e hipocrisia e ver o mundo que me rodeava irromper em tal crise de identidade e não vislumbrar conserto, ou concerto, consserto, conserrcretto, contaserto, concersserteto, o que está me desbaratando a mente. Escureceu em volta e fiquei ali jogada no banco de praça.

Não entendi direito que aconteceu depois. Sei que o primeiro casal que passou por mim e ia para o beijo, fechei fortemente o olho e não permiti tornar em palavras. Tomei pavor de reconhecer através de um beijo o sorrateiro que queria dizer. Desconsiderei relacionamentos ao meu redor e voltei o olhar a outras cenas que não me exauriam tanta energia. Um dia experimentei sorrir ao olhar um casal em tranquila conversa e perceber mais adiante, após o longo beijo, que o comum estava de volta.


BOTO – IARA... HOMEM – MULHER
04/06/2016
Quem pensa que é... este é meu pedaço da floresta.

— Não senhora. É meu pedaço e daqui não saio.

— Seu metido desgraçado. Nem pense em atrair pobres jovens para este lado.

— Olha quem fala. Vive trazendo esses homens idiotas que caem em qualquer cantada feminina.

— Ah ah ah! As idiotas que caem na sua lábia então! Pobrezitas! Ficam com o bucho cheio e depois você escapa sem motivo. Desaparece. E as crianças, aí, soltas no mundo sem pai... falso boto sem vergonha. 

— Desde quando soo falso? De onde tirou essas ideias, sua merdinha. Você que fica aí confundida entre as metades, nem mulher, ou um peixe. Decida minha filha!

— Estou perdendo a paciência com sua figurinha de araque. Boto cor de rosa, flu flu, ah ah ah! Nem homem, nem peixe, seu bestinha. Sai da minha zona.

— Estrebucha... pode gritar a vontade... daqui não saio daqui ninguém me tira não!

— Filho da mãe... pai é que você nunca teve, por isso fica agourando pobres moças a pagar o que você não consegue resolver. Seu botinho flu flu, rosa choque ah ah ah. Vai fazer charminho?

— Iara maluca... vai apelar? Consegue resolver não, falsa sereia. Você que é de araque, pensa que não sei... doida para virar mulher e largar as águas... pensa que não sei. Já ouvi seu sermão pelas águas, chororô chato. Que nem essas e outras que vivem por aí, de pernas, choram a toa!

— Senhor das águas, me ilumina. “Guentar” esse sujeito. Você é pior, muito pior que os homens xaropes que seduzo. Basta uma olhadela e se “desmilingua” todo, filhinho da mamãe ah ah ah, vê se cresce.

       Depois da discussão se acirrar os dois caem n’água. Luta corpo a corpo. Alguns momentos, homem – mulher, outra caída na água, o Boto e a Iara. Corpos de peixe em ira e urros de golfinho rebelde e gritos apeladores de sereia. Golpeiam-se até o cansaço.

        Na noite nem o boto vira homem, nem a Iara quer cantar. A concorrência de gênero alcança a floresta amazônica. Só Maria da Penha a resolver.


OLHAR DE CLARICE
17/05/2016

Aperta os olhos com força e vai abrindo-os vagarosamente. Como esperando a surpresa. Vê o reflexo de um arco-íris que se formou com múltiplos coloridos. Continua a brincar de apertar os olhos e encontra novidades: clarões estrelas bolhas borbulhantes esvoaçando o céu, riscos em caracóis se apertam e se alargam... Na doce brincadeira Clarice arteira vai de brincadeira em brincadeira.

A garotinha passa grande parte do dia na solidão do belo jardim da mansão. Não tem com quem brincar a não ser o gatinho arisco que foge aos afagos. Corre atrás dele que mia e mia assustado com os atrevimentos da pequetita. Mais danado que ela atravessa entre os ferros do portão e ganha a rua, com a certeza de conhecer os quarteirões.

 Bate forte o corpinho no portão e tenta balançar as grades e forçar abertura e como o gatinho ganhar a rua. O pesado portão nem balança. Com seus oito anos, roupas finas e sapatinho branco, cabelinho loiro em leves ondulados, a menina parece um querubim. Sem as asas da liberdade que o gatinho tem. Olha pra cima e o grande portão termina em pontas de lança, que na doce, imaginativa cabecinha, as pontas se entortam e fazem careta pra ela dizendo não pode passar.

Devolve em caretas e língua pra fora. Todos os dias procurando jeito de furtivamente escapulir e conhecer o que se passa pelo vão onde o seu olhinho não consegue enxergar.  Estica, estica o pequeno pescoço e nada vê. Chuta com raiva o portão numa das vezes e quando faz menção de retornar às brincadeiras, ouve uma vozinha de criança do lado de fora, ei menininha vamos brincar? Fica toda alvoroçada. Alguém para brincar. —Vamos sim, responde, mas como fazemos para eu sair ou você entrar? O menino raquítico acostumado à rua descobre uma forma de a menininha sair.

Ganham a rua e ela mal escuta o que o garoto lhe fala. Anda ligeira, depois começa a correr. O menino sem entender. Clarice quer ir até aonde a vista alcança sem fechar os olhos.

ARTE DO ENCONTRO
09/05/2016

Encontrar Hemingway pra mim não tem preço. E foi tudo assim, sem sequer planejar nada. Eu vestida a caráter, um tubinho soltinho e brilhoso, no tom amarelo-alaranjado e terminando em franjinhas. Meus cabelos encaracolados e presos por presilhas nas laterais da cabeça me faziam sentir a verdadeira deusa. O bar aonde os intelectuais vinham conversar literatura, beber o bom uísque ou conhaque, algo que esquentasse do frio que vinha de fora. Eu estava ali e o meu olhar encontrou o dele.

Hemingway não era em nada parecido com as fotos que me recorriam a ele. Nada de bonachão e terrível bebedor, como verifiquei a seguir. Mas o mais simples e doce homem que eu deparara de frente ao caminhar até a toilette para o retoque de batom, que deixara depositado nas taças; ali, me sorrindo gentil.

Eu tinha fugido a Paris. Crises existenciais. Precisando do arejado movimento que me levava ao esquecimento de dores, as quais, dispenso tocar. Para que maior sofrimento. Sinto no peito a angústia se traduzindo.  Já me custa.

Paramos no corredor. Ele fechando a passagem. Ficamos indecisos a que rumo tomar. Brincando de pega-pega, sem saber que lado jogar o corpo. E o início do riso gentil traduziu-se em ótimas gargalhadas com pedido de desculpas. Excusez moi mademoiselle, e eu Je suis désolée.

Ao retornar à mesa a suave melodia do jazz embalava a noite com apresentação da cantora e dançarina Josephine Baker. Em trajes ousados a artista provocava o alvoroço do salão. Minhas amigas à vontade, conversando sobre liberação feminina, questões fugazes de moda e o que mais adorávamos – literatura. Aspirantes da escrita sentíamos estar nas nuvens. A mesa pareada a nossa com ases da literatura em profusão – Joyce, Fitzgerald, Hemingway, ...

Os problemas afugentados pelo bom papo entre amigas. E vai que Hemingway chega e me convida a dançar. Canção que toca a alma. Ele larga o silêncio e pergunta:

Vous êtes parisienne?
— Non, brésilienne. Est ce que vous connaissez mon pays?
— Oui, oui, diz com risada e falo português, n’pas?
—  rsrsrs... ah que bom, meu francês anda tão enferrujado, rindo junto com ele.
Percebi os belos olhos tristes.
— Pensei o mesmo... afinidades?
— Saindo de um casamento desgastado...
— ... filho... angústia escrita na face...
— Sei que é isso!
— Afinidades... parece! Mas o que faz tão longe?
— Novos ares... vim pro curso de escrita para amadores.
— Ora, ora concorrente, esboça um riso doce.
Longe disso... mas anseio a boa escritura.
— Pega leve. "A escrita se aprende RELENDO – ARTE FAZER – ESCREVENDO ARTE – ARTEFAZENDO: Uma frase diferente faz bem aos olhos. Uma frase curiosa faz um bem danado aos olhos. A arte está no verbo fazer, o artista faz. O fazer da escrita requer clareza, rebeldia, claridade, criatividade. Escrever com arte é escrever claro, fácil, gostoso, prazeroso, sedutor, é arte-fazer. Arte-escrever. Refazer na escrita a gêneses do homem. Lembre-se: escrever com arte não é dogmatizar, ensinar, filosofar, não é luta armada, antes, amada. É ritmo, palavra, música, fruição, tesão. É brincar de amarelinha nos campos da palavra... Deixar o corpo solto leve livre..."
— Fala como fácil, mas é difícil escrever.
— Sossegue a alma... com treino, tempero e tempo chega lá! Rimos.  A música termina e caminhamos à mesa. Sugere juntá-las. O que veio ao agrado das meninas e os escritores, a companhia feminina.

Sentamos e a algazarra do grupo aumenta com o consumo de bebidas. O professor de escrita, o Hemingway, fica feliz de ver a empolgação da turma na festa à fantasia dos anos vinte. Com todos alunos e alunas vestidos a caráter. E diz:

Ótima ideia a festa no conservatório, né gente... a arquitetura do prédio colaborou na incorporação dos papéis. Todos sorriram concordantes. E eu bem feliz fiquei de, em plena dança, aprender um pouquinho da arte de escrever, vinda de Hemingway.

*" " - Texto do escritor Ronald Claver

ERA O BREU
17/04/2016

Como diz o Millôr Fernandes “Viver é desenhar sem borracha”.

Assim se vive, praia à tarde. Coloca o uniforme e aos tons retumbantes do chinelo chega lá. Aquele marzão. Venera os deuses por tanta beleza e metódica experimenta, com os pés, se a água está boa. Significa estar beirando a quentura do verão. Tira o chapéu, os óculos, a roupa de cima e tibum na água. Fica no lengalenga do brincar no mar até a altura do umbigo. Forma de sentir-se segura, meio a braçadas e pernadas desengonçadas. Mineiro é cauteloso, desconfiado. Mas o medo para aí.

         Quando dá por si escureceu e as pessoas se dispersaram. Sai da água, pega os objetos na areia e caminha pela passagem de madeira que divide a areia do asfalto. Nas laterais a conservação natural de mangue.

         INHAC. Sentiu forte arranque no corpo e viu-se sob a guarda de, não saberia dizer, pois mal e mal conseguia respirar sentindo a cabeça entrar e sair d’água e a custo borbulhava nariz e boca respirando desordenados. Não sei o que fazia com ela malabarismos entre um tronco e outro das árvores do manguezal. Não soube onde foi parar. Estava num esconderijo onde água e barro e areia se alternava e não sentia o toque no corpo; o que carregava ela era escorregadio, ou macio, lisinho, talvez gosmento, ou mistura entre areia e barro. Na dificuldade de manter-se viva e respirante e ainda enxergar o breu, fitava atenta. A dúvida era a de que fosse o que fosse, a certeza, tinha domínio sobre ela.

         Num rápido momento de quietude ouviu a voz:

         Te aprecio e tu me pertence. Ninguém sabe de ti e só a mim escutará.

         Tentou reconhecer a voz. Desconhecida. Não conseguia concatenar as ideias e era difícil raciocinar na escuridão. Única evidência, o sotaque característico do sul, com uso exagerado do te, ti, tu. Tudo voltou a ficar confuso. Ao redor peixes nadando, buscando espaço junto a crustáceos. Eles ficaram de prontidão ao chamado daquele que dirigiu a fala a ela. O líder? Que seria? O que queria? Como escapar de um lugar que nem sabia onde fica? Pensava ela, só a cabeça fora d’água e o corpo enlameado, forçando achar resposta. Foi quando um raio de luminosidade bateu bem na figura do... arregalou os olhos por não acreditar que visualizava... um peixe enorme e falante! Bagre linguado tainha?

         Exigiu silêncio aos peixes e que ficassem ali formando uma barreira de proteção entre os dois, o peixão e ela. O peixe poderoso, ao mesmo tempo dono de voz que paralisava. Ela ficando meio embriagada, como se bebido o bom vinho, ele sussurrando palavras das quais ela não se lembrava ter escutado. Tudo único mágico. Seduzida, sentiu envolver em névoa o lugar e se entregou ao sonho.

         Amanhece deitada na areia, o corpo coberto de lama. Os objetos ao lado. Sonolenta espreguiça pensando estar embalada pelo beijo de Morfeu. Levanta meio tonta e caminha a areia úmida sentindo afável bem estar. E deixa cair o corpo cansado sobre as águas curativas do mar da ilha da magia, Ilha de Santa Catarina.

Desenho Ju Martins
ARTE DE SER MULHER
10/04/2016
— Dá vontade de beijar esse lábio carnudo!
            O seminário não tinha hora para acabar. As cadeiras duras deixavam o corpo dolorido e desconfortável. Resolvi sair e convidei o companheiro para fumar um cigarro. Estranhei ele ter aceitado de pronto. Tinha um belo sorriso aquele moreno, olhos com brilho amendoado , brilho que sente cheiro de feromônio no ar.

No saguão, uma surpresa, ouvi dele uma cantada:
           
Queria ser o cigarro para ficar em seus lábios.
   
Embasbaquei. Paralisada fiquei. Respirei fundo, raciocinei uma resposta em trezentos e sessenta graus de pensamentos, uma verdadeira gestalt, elaborações e construções imagéticas para só então expressar:

            — Uai, pra quem você tá dizendo... ?
            — Sabe que tem a boca mais bonita que já vi? Não resisti.
            — Você é casado... esposa linda... bebê em casa!
            — É outra coisa.
            — Hã?
            — Pensei que você toparia...
            — Que?
            — Seu jeito extrovertido me deixa louco.
            —E a sua mulher?
            — Amo ela ainda mais depois.
            — Homens!
            —Curto o momento!
                        Tinha saído com ele para umas tragadas de cigarro. O seminário não tinha hora para acabar. As cadeiras duras deixavam o corpo dolorido e desconfortável. Estranhei aquele homem, rosto pálido, sorriso agreste, seco, olhar vazio, postura comum e completamente sem assunto. 

— Vou pro salão.

ENSAIO
10/03/2016
         Sentadas no sofá da pequena sala rola uma discussão feia entre duas jovens mulheres. Levantam e começam a se agredir, tapas pra todo lado, até que um forte estalo de soco no rosto diz que o caso...

            De repente uma delas vai até a janela estupefata.

            — O que tá acontecendo...

            — quê?

            — ... aquela confusão lá na rua?

            — que que você tá vendo?

            — a confusão lá...

            — Meu Deus que isso?

                        — mama mia, não acredito...

            — deu a louca na Jussara pra ela aparecer desse jeito no meio da rua.

            — tá “nuinha” da silva me diga que...

            — tô vendo sim! 

            Numa rua de bairro de classe média, Jussara envolta em seu delírio. A curiosidade pulula. Jussara apronta um escarcéu mostrando que ela sabe gozar muito bem e até partilha a deus e o povo a fragrância do sexo.

            Já Pepe, desorientado com a atitude da “ficante”, se encolhe do lado de dentro. Todo tímido, sem entender o “fuzuê” que a moça apronta. Ele, ar de anjo, cabelos encaracolados entre o loiro e o castanho, rosto doce e gosto pela vida zen. Agora numa sinuca de bico.
            
            E as duas amigas, estudantes de jornalismo e psicologia, continuam boquiabertas a olhar a cena:

            — tá se divertindo mais que nós!

            — hum... hum...

            Estilo mignon, as duas, uma cheinha, a outra magrela. Elas se encontram às tardes dos fins de semana para discutir literatura, ler poesia e encenar esquetes, personagens que são de um teatro amador.
           
            — quem sabe brincar é a Jussara.

            — a vida como ela é!

            — ninguém vai cobrir a moça?

            — a mãe lá.

            — onde paramos?

            — esse soco foi dureza!


CORAÇÃO DE MENINA
10/03/2016
Au , au, au... Meu cãozinho late com força e eu entretida buscando com olhos vorazes um livro na biblioteca; se bem que pouco se parece com uma, a biblioteca é um armário envelhecido, pintado à moda, patinado e com desenhos de flores juvenis, desenhos estes que de antemão já levam a devaneios antes mesmo da leitura.

O armário se veste de verde, balançando suave sob a luz e as flores pairam no ar, e já se soltam da madeira, passam de relâmpago sobre minha cara, rodopiam em volta da minha cabeça querendo brincar.

Cantigas de roda? Querem muito mais, rodam, rodam sem parar e eu com meu cãozinho no colo bailamos desgovernados, nem sei se impressão minha, nos vejo entrando ao fundo do armário e os livros antes organizados por ordem alfabética, e assunto, se debatem em uma espiral de redemoinhos e nos levam para um mundo imaginário que eu, à altura da vida, sequer cogitei possível.

Aliás, tudo o que acontece é um sonho, um sonho bom de viver, entrar no mundo mágico das crianças. E assustada, o cãozinho latindo e assustado bem mais e quando a gente pensava que os rodopios não iam parar, eles nos transportam com leveza para uma grande mesa de piquenique e quem são nossos anfitriões?

Algumas engraçadas frutas vestidas a caráter a nos receber. A banana, uma penca, está retumbante em belo arranjo de cabeça, um turbante à La Carmen Miranda. O abacaxi, todo pomposo, para não ferir ninguém com seu cabo, vestiu ele com guarda chuvinhas de cores diversas e todo fresquinho chega esbanjando alegria e ainda me pergunta se quero provar de seu delicioso suco, à escolha com alguma mistura que te encanta, a deliciosa hortelã, ou quem sabe, a menta, talvez o gengibre e seu ardidinho suave, e até mesmo com pepino diz fica divino. Que turma maluca a gente encontrou.

Até quando a divertida aventura vai durar, eu me pergunto. Sem dar tempo à resposta chega a maçã no seu rebolado, vestida provocantemente, como bem a conhecemos, e, nos oferece um bonito bailado, tendo como acompanhantes, o melão, a pera, a goiaba, a tangerina.

E o baile de frutíferas anda animado nos rodopios e de tanto movimento a gente acaba sendo cuspida para fora do armário e tenho ao colo não só meu cãozinho, mas um livro de receitas com ilustrações deliciosas de tudo quanto é tipo de fruta. Que doideira essa!

O armário está certinho e organizado, bem no lugar, olho através do vidro da janela e a lua me espia com aquele sorrisão de bem vinda que a noite vem chegando.

— Au , au, au...

CORAÇÃO MAIOR DO MUNDO
15/03/2016

Soam as trombetas ...

De dentro do casebre alguns inconfidentes se preparam para a reunião. O lema fundamental é a liberdade, antes que tarda. As discussões se acirram tanto dentro quanto fora da casa...

Toc toc toc
— Alguém à porta.
— Quem vem lá?
— UAI!
— Fecha a porta, rápido, tem muito soldado por todas as ruas e nem sei se fui seguido...
— ... as trombetas dão o sinal de que não está fácil e precisamos cautela...
— ... comecemos, pois o tempo urge... Critilo, você dará as diretivas para que todos saibam qual o dever que lhes corresponde.
— Estás certo, Alvarenga, não podemos perder a noção do tempo e o quanto ainda tem a ser definido para a luta que se aproxima.
— Estão presentes os responsáveis pela ação?
— Todos aqui, dizem em uníssono.
— O plano é o seguinte...

Tomás Antônio Gonzaga, o Critilo, cauteloso arma as estratégias a que todos devem atentar se querem atingir o resultado e permanecer vivos. Qualquer falha, por menor que seja, pode destruir os planos. Alferes, venha cá e explique este mapa com os caminhos seguros, não podemos nos dispersar companheiros, a luta acirra-se, devemos temer por nossas vidas se queremos a liberdade da nação, diz Critilo. No que tem a concordância com gesto de cabeça dos líderes presentes.

— Entenderam a tarefa de cada um? Cuidado com quem fala e lembra, só o necessário, o risco é grande, não teremos nova chance se fracassarmos, emendou Alvarenga.
— Vamos sair cada qual em espaço de tempo para não provocar suspeitas. E não se esqueçam da senha para o novo encontro aqui.

Alvarenga segue a alameda até chegar à casa de sua adorada. Sabe das cautelas por lá também, já que ambos são vigiados e segue o mesmo critério de tocar a porta e dizer a senha:

UAI. A amada sente o coração acelerar-se com a voz de seu escolhido do lado de fora. A porta é semiaberta e ele entra ligeiro, enlaçando-a nos braços e ambos sedentos soltam beijos no rosto, no pescoço, lábios, quase se sufocando, a urgência de viver sagrada, não se sabe o amanhã.

Bárbara, mesmo no seu recato, abre os braços ao amado certa de estar em seguro colo. Ele sussurra em seu ouvido:

Eu bem queria
A noite e o dia
Sempre contigo
Poder passar;
Mas orgulhosa
Sorte invejosa
Desta fortuna
Me quer privar.

Apaixonados se envolvem em carinhos recíprocos e abandonam-se por instantes, se permitindo crer seguros.

Aliás, Tomás vive semelhante elan junto a sua Marília, mesmo o jeito rude a cativa, pois que a poesia lhe cai doce e romântica, já não é Tomás, é Dirceu, o doce poeta:

     Graças, Marília bela,
     Graças à minha estrela!
    
     Os teus olhos espalham luz divina,
     A quem a luz do sol em vão se atreve;
     Papoila ou rosa delicada e fina
     Te cobre as faces, que são dor da neve.
     Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! não, não fez o Céu, gentil Pastora
Para glória de amor igual tesouro!

     Graças, Marília bela,
     Graças à minha estrela!

Ainda é paz na noite, as nuvens dão sinais de mansidão... Os amantes...


CHOCOLATE NEM SEMPRE É DOCE
12/03/2016

A caixa de bombons trufados, branca, com título em negro “DIVA”. Apaixonado dedilhou sua grafia logo acima da tampa: para a minha... (aproveitou-se do título) DIVA maravilhosa adoro!

— Você tava flertando com ele!

— o que você tá insinuando?

— Não tenta me enganar, pensa que não percebi os olhares

Ele é meu amigo, gosto de conversar com ele...

... agora também é proibido...

... tô cansada de insinuações. Você estava do meu lado, junto com ele, como pode...

— ... tudo que acontece tem segundas intenções?

SPLAT! A mão grande e morena voa rápida e sem tempo para pensar. Tentar fugir dali, mas qualquer movimento brusco... Fica num canto tentando se proteger com as mãos a frente do rosto.

Vagabunda! Você sempre me traiu!

— ...

Pensa que não sei... Quantos homens já teve? Você quer os homens na sua mão. E eu, como fico?

— ...

Acha que eu aguento saber de tudo e ficar quieto. Acha?

— ...

Avança para o lado dela tentando acertar o tapa que vibrou no ar. De repente percebe-se fora de si e aninha a moça no peito, pedindo desculpas, desculpas. Não sabe o que acontece, vem aquele vulcão de dentro, soprando as ventas, destituído de senso. Quando vê diz, diz tudo que lhe arde o peito. Quando vê disse.

— Prometo, não vai acontecer de novo.

Não dá mais, não consigo viver com um homem que a qualquer hora pode me desferir um golpe, apenas por ciúme. Os homens que tive foram antes de você, morreram. Acabou, sou dona da minha vida, tenho relação com você e sou fiel a ela, mas você não entende nada mesmo.

          A garota mais legal que já conheci vai pra casa e joga fora a caixinha de bombons DIVA. Sem remorso ou culpa.


VIAGENS EXPERIMENTAIS
09/10/2014
Encontrou na leitura o caminho que fazia a vida ter graça. O que é a vida sem fantasias, sem sonhos, sem aventuras?

Menina aparentemente sem a graça natural comum às crianças de sua idade. Muito tímida, a coitadinha. E, assim, começou a perceber-se, como gente defeituosa. Todos gabavam os atrativos e trejeitos das outras garotas, já despontando as pétalas para o florescer da puberdade.

Não, ela não entendia porque tantos defeitos instalados em uma única pessoa, ela. Ossuda, desajeitada, cabelos sarará, rostinho infantil para além do desejado e sem o brilho fácil de risadas infantis.

Seus complexos, aumentados, principalmente ao olhar-se ao espelho, desempenhava nela uma grande pena. Tinha uma imensa pena de si mesma.

Mas os floreios fantasiosos conseguiram captar o mundo interior da garota, que através dos livros pode ser toda e qualquer personagem que se identificasse.

E o conhecimento deste universo mágico fez que a tristonha menina alçasse voos junto a amigos inimagináveis; dragões voadores, aves de rapina, pterodátilos da época jurássica, "passareios" com diversos canários multicores. Conheceu terras distantes em voos rasantes; momentos de caçada aos peixes em oceano longínquo em exuberantes tons azuis; povos excêntricos em paradas estratégicas; conseguindo equilibrar seu lado humano as características necessárias em cada vivência.

Experimentar foi a maior lição. Sempre algo diferenciado. O mundo fantasioso capaz de criar a leveza para consigo mesma.

É deliciosa a leitura onde cada história nos domina e se pode ser do jeito que a gente quer.


“INDIZÍVEL” NOS DIAS DE HOJE

27/05/2014

Estou tão satisfeita com o diálogo que criei sobre jogador de futebol a partir das dicas do professor de criação literária, achando que o diálogo não está mau, eu cá com meus botões, claro! Aproveito a chegada de meu filho perto de mim, que é fanático por futebol, e peço que escute o tal diálogo que passo a ler em voz alta:


— O Neymar tá com a bola toda, hein?

— É verdade, o cara é bom de bola mesmo, né?

— Até é, mas isso não quer dizer que, de vez em quando, não pise na bola.

Uai! Porque você está insinuando que ele deu bola fora?

— Bom, dedução cara, você sabe né, com essa onda de celebridade, ele se julga a bola da vez!

— Nesse ponto concordo com você, a estratégia é fazer o contrário: não dar bola pra ele, ora bolas.

— É, além do que, ele, às vezes, está em má fase, e aí é pensar firme: o que passou, passou, bola pra frente, pois futebol cada jogo é como bola de neve, as chances vão crescendo, crescendo e quanto mais rola, mais engrossa, que nem mentira escarrada dessas que os dirigentes da Fifa querem nos jogar “guela” abaixo.

— Puxa, que drástico sujeito você está me saindo; está claro que o Felipão tá é seguindo em frente, apesar de objetivos vãos, porque afinal de contas é o que o futebol é — chance de nós, torcedores, fazermos bolinhas de sabão e viver momentos de show, até que estourem.

— Claro, afinal bola na trave não altera placar e não ganhar a copa está fora de cogitação.

— Eh, cara! Mas não é preciso ter bola de cristal para saber o que vai acontecer.

— Já que não tem bola de cristal como é possível a você a advinhação?

— Com esse time “merreca” dá pra ver que não vai rolar!

— Cruz credo! Sai pra lá agourento


Pergunto o que achou. Levo um baita tapa na cara: o texto é de velho, do tempo das cavernas, diz. Fico sem entender e pergunto o que significa. Ele risca as palavras e diz que só velho as usa. Discuto, argumento, e ele continua a dizer que aquelas palavras não são mais usadas, que um jovem escreveria de outro jeito sobre o Neymar; talvez eu esteja falando de algum jogador do passado... os jovens de hoje em dia não se falariam desta forma.

Fico ali embasbacada, queixo caído, não querendo crer que envelheci! “Até nas palavras, até na produção escrita está óbvio!” Eu cá com meus pensamentos, murmuro “ele que vá se catar" e deixo as palavras reviverem nesses novos tempos, desaforo!

Aí me vêm à cabeça os textos da Clarice Lispector e descubro que dificilmente leio hoje em dia uma palavra que é recorrente em muitos de seus textos. A palavra me fascinou quando a li e nunca mais a deixei, eu a salvei, restaurei-a, trazendo-a de volta ao maravilhoso mundo da escrita. Dou a ela a consagração – de fazer parte do título (Clarice não precisa disso, claro)!


SONO FUGIDIO
12/10/2014

Olhou o relógio e já passava da meia noite. O reboliço de sons noturnos entremeavam com latidos de cães, miado de gatos e longe, longe, longe, traças mastigando sem parar.

Automaticamente se levantou. Colocou os pés no chão, tão frio, calçou o chinelo. O pijama pouco vistoso escondeu-o vestindo o penhoar que retirou da arara da porta do meio do guarda-roupa. Não quis acender o abajur ou a lâmpada central. Pereira em sono profundo e ronco sofrido, de respiração entrecortada a espasmos que pareciam trazer sombras da dita cuja.

Caminhou até a saleta, e à janela observou o sombrio da noite e suas esquinas. A lua preguiçosa de resplandecer, não deu ar da graça, foi dia de lua morta. Ficou paralisada a olhar para lugar algum até que a manhã ameaçava detrás dos montes.

Virou-se, caminhou calmamente para o quarto, retirou o penhoar, o chinelo, deitou-se e desapareceu em continuidade ao sonambúlico estado.

         Pela manhã, cansada, não se lembrava, não se lembrava de sonhos bons ou ruins. Apenas estava muito cansada.

SONHOS
11/07/2015

Eles brigaram. Não sei quem está com a razão. Brigaram. Ele reivindicando direitos. Ela reivindicando-os também. Como ambos tinham toques de egoísmo que sobressaia eu não saberei dizer quem está certo.

Era novidade dar de cara com a situação, pois raramente chegavam às vias de fato. Sempre um amor apaixonado, dos de dar inveja mesmo. Coisa pra admirar e eles se sentiam admirados.

Não sei que aconteceu. Longa data de relacionamento amoroso chega uma hora que o troço degringola para... vá lá saber. Convívio saudável que inspirara casais, ah! Quero um amor igual ao deles, ouvi dizer, com sotaque de inveja positiva, mas inveja. Não mais.

Lá iam meses nesse enrolado amoroso e sem menção de trégua ou finalização da pendenga. Passaram a conversar o necessário, toques evitavam, risos, não se via, clima pra lá de desagradável pra quem presenciava a querela. Nada de romantismo, convites ou agrados, mas uma vivência árida se projetando no cotidiano antes ameno. Nenhum dos dois dando o braço a torcer. Cada um achando que a culpa era do outro, ele que se desculpasse. Nada disso. Silêncio. Sim, o silêncio embalou dia vai dia vem.

Ele tentou desfazer o mal entendido de meses apenas com o toque no corpo dela, não obteve resposta, sequer movimento, nem batidas do coração se modificaram, faltara algo? Ela, silêncio. À noite, pela manhã, à tarde, à noite, silêncio. Noite dessas sono não vinha, ela, ele percebeu que não sabia mais por que estavam brigados, sem conversar, sem ser gentil um com o outro. Ele, ela percebeu que não sabia mais como sair da situação em que se encontrava. Acostumou-se, ela, ele, a acomodada letargia que a convivência ia trazendo.

Pela primeira vez ela, ele se sobressaltou com as possibilidades que se avizinhavam: ficar sozinha, sozinho, ficar doente, envelhecer sem o companheiro, sem a companheira. Mas onde andava o companheirismo, a boa companhia, talvez encontrasse alguém e se não? Tantos medos se aproximando e ele, ela não vislumbrava tomar a dianteira. Fez sumir pensamentos, ela, ele relaxou e caiu no sono.

     Ele dormia forte. Roncava às vezes, um ronco forçoso. Ela relutante, agonizante e não estava pronta. O cérebro não aceitava a realidade que se mostrava, aqueles insetos em rodopios, zunindo e ela, completamente fragilizada, perdida por descobrir que todas as forças se esvaíram; não queria acreditar, mas ao esforço demasiado, tentativas de elevar os braços e não conseguir. Abriu os olhos, fez esforço para se levantar, não conseguiu. Apareceram os insetos, do nada, o quarto fechado, zunindo, dois insetos, mosquito e mosca varejeira, sem parar, um tormento.

            Fiz menção de ajudar. Não pude. Ela tentava erguer os braços para afugentar os bichos, os braços não saiam do lugar. O braço direito, quando tencionava esticá-lo, transmitia dor aguda próxima ao cotovelo, como dor de artrose, de artrite reumatoide, e, apesar do cérebro ordenar, ele ordenava, ainda assim, o braço direito e o braço esquerdo, que não apresentara dor localizada, não se erguiam para abanar os insetos nojentos.

            Dei por mim que ela agonizava no leito de morte e eu, ela ainda não estava pronta. O cérebro não aceitava a realidade que se mostrava, e ela, eu completamente fragilizada, perdida por descobrir, não querer acreditar, tentativas de soerguer os braços, angustiada, acorda com medo das mudanças que viriam, ameaçavam vir.

              Olha pra ele que dorme de bruços.


ESSA MADRUGADA EU TIVE UM SONHO 
25/10/2014

            Essa madrugada eu tive um sonho. Lia um livro de autor conhecido, por mais que me esforçasse, aumentasse a largura dos olhos para ampliar o olhar, a feição do autor continuou embaçada. O livro, o título era... Forcei ainda mais as vistas e elas ficaram embaralhadas e não consegui ver o nome deeele. A capa muito bem feita, papel de qualidade e saltava (tinha-se a impressão de que) algumas letras do alfabeto escritas em formato grande. O livro delicioso, muito bom, tanto que ganhou um prêmio literário, não saberia dizer qual.

            O livro contava a história de uma mulher que não queria morrer. O narrador era a sobrinha. A tia inventava estratégias para não dormir, com medo da morte. A mulher parecia ter em torno de uns 48 a 50 anos, vestida com camisola comprida e solta, toda branca, no peito nervuras bem talhadas e rendas delicadas como enfeite.

            A tia se sentia acima da morte, dizia ter o poder de continuar viva. Tinha passado por cuidados nas mãos de todas as irmãs, quatro, e cada uma delas se cansando daquela vida de cuidadora de uma mulher obcecada pela morte em vida.

            Sobrou então para a sobrinha que passou a ter a tia em constante demanda. Até mesmo sujeitar-se a deitar na cama junto a ela, como se niná-la fosse e, quando chegada a noite, contar histórias, conversar assuntos diversos, e assim espantar o tema da morte, sem dar chance a sobrinha de se cansar, caso isso acontecesse a tia se transformava. Levantava da cama feito louca, andava para lá, andava pra cá, até que a moça aceitasse retornar ao leito e agradar-lhe com conversas amenas.

            Tem medo do escuro. Medo do escuro. Apenas a claridade a traz de volta à paz de espírito.

            O livro, a medida que se ia lendo, ao mesmo tempo apareciam imagens bem a frente, como uma tela, como um filme traduzido simultaneamente, as imagens iam aparecendo na sequência, o que tornava a leitura dinâmica e interessante.

            A Fernanda Montenegro era uma das personagens, uma das irmãs e se mostrava extremamente cansada, nervosa dos excessos da irmã que dizia não morrer nunca. A irmã passava a mão na cabeça, assanhava os cabelos, e desorientada, com andar rápido e agitado, pra lá e cá dentro do quarto. Sei lá, parece que a sobrinha era eu...

            O quarto tinha móveis sóbrios, dos anos 60/70.  Cama em madeira de lei escura e nobre, grande cabeceira. Lençóis alvos, muito brancos, de algodão. O grande guarda roupa, imponente em tamanho, tinha quatro portas e madeira assemelhada a da cama.

            Toda a família demonstrava nuances de loucura. Cada mulher tinha uma história a contar, mas a única que passou a excentricidade era a da irmã que dizia não morrer nunca.


FRIO APELO NARCÍSICO
18/06/2015

Coloque a cebola no micro-ondas para não chorar ao cortá-la. Li o texto(*) na internet. Tá danado, nem permissão pra chorar se tem mais... nem ao cortar uma simples cebola. Será possível que evitaremos todo tipo de sentimento e emoção com regrinhas ditadas na rede?

Será que não vai ser possível usar o livre arbítrio para escolher por conta própria e risco? Já se está torcendo o pepino para receitas as mais mirabolantes possíveis. Ufa! Cabe ao grande pai cibernético enredar todas as tramas para evitar traumas. Não não se deve chorar mais!

A culpa é das estrelas! Vai aparecer alguém a defender o quesito. E o autor, anônimo ou não, verdadeiro ou falso, intencionado ou mal, que importa. Importa a necessidade de se ter tudo pronto em segundos. Instantaneamente.

Curas miraculosas buscadas com o objetivo de cada vez se expressar menos o que verdadeiramente se sente. Chorar quando se descasca uma cebola é só a pontinha de iceberg. Enquanto não se tomar consciência vão falar que a gente muda o mundo sem fazer nenhum tipo de esforço para correr atrás de tal desejo. Vamos, vamos deixar por conta de megalopropagandas enganosas que se ouvem por aí e que ouvidos incorporam em uníssono, olhos admiram em circulares gestálticas, toques vorazes reproduzem na rede como ícone, achando que tudo está pronto, o dinheiro pode pagar.

Instantaneamente. Sem sofrer! Eis a regra de tal intenção.

Claro está que num primeiro momento existe a escolha entre clicar e não clicar no assunto. E uma dica culinária não pode ser responsabilizada por coisa alguma.

Na verdade a discussão sobre se vai ter chororô quando se corta uma cebola ou não é apenas pano de fundo. Serve para demonstrar, cada vez mais pessoas deixando de agir e seguindo a rede; qualquer assunto que seja. Não vale sofrer, consiga um namoro virtual; não chore, tal e tal lugares disponibilizam prazeres; tristeza então, isso não existe! Basta simples toque ou um pagamento a ser feito imediato. Tudo para se evitar o constrangimento de ter sentimentos e emoções surgidos no encontro com pessoas, amigos, familiares, e situações.

Cada pessoa é uma ilha! E como tal deve permanecer! Olhar magnetizado para o umbigo. Adeus solidariedade, o que importa, eu, eu, eu!

(*) http://www.msn.com/pt-br/receitasebebidas/noticiasdealimentos/8-dicas-incr%C3%ADveis-para-voc%C3%AA-aproveitar-ainda-mais-seu-micro-ondas/ss-BBldaH5#image=3


A DESCOBERTA DE SER BORRALHEIRA
14/06/2015

Estava completamente absorta em um único pensamento, queria falar que o amava. Arquitetara planos com medo de algo dar errado. Imaginava alhures, viajava lugares distantes da fantasia infantil, desejosa que a frase fosse toda ela dotada de amor, incorporasse seu ardor de menina para o primeiro homem de sua vida.

Já aos ensaios da festa junina essa intenção invadiu sua mente e entre ordens do mestre... Tur! O pensamento rodava-lhe... Anarriê! Voava e imaginava-se a princesa possuída pelo príncipe amado, lindo, igual conto de fada. Noutra, o cavalheiro era Jerônimo, o herói do sertão, com coragem desvendava segredos do sertão injusto. Dentre heróis e mocinhos... Caminho da roça!

Aos quinze anos deu o primeiro beijo, puro, casto, o toque dócil e suave, capaz de umidificar corpo, arrepiar pelos, endoidecer cérebro em comandos desconcertantes e depois, fugidia a todo instante, e para voltar à realidade balançava a cabeça forte, ouvindo longe a mãe gritar, chamando a cuidar dos fazeres.

Aquele beijo fora a saída da meninice, amava, tinha certeza, sentia-se mulher, indagava se o mesmo ocorria com o jovem desejado. Ele, junto ao grupo de rapazes preparado para o futebol de turma. Corria ao portão para angariar uma migalha de seu olhar, ele envolto aos temas masculinos não notava presença, só da redondinha, dona bola. Retornava para casa entristecida, sem ser correspondida... será isto acontecia com princesas...

O mestre iniciou os trabalhos do dia com outras ordens: como seria o casamento na roça? Quem seria a mãe da noiva, o pai, por diante. Os enfeites: balões, bandeirolas, lanternas, madeira e gravetos para a fogueira? a comilança, muita fartura, canjica, quentão, pé de moleque, radiola e discos com cantigas de festa junina? quem se incumbiria ser responsável? as vestimentas, as rifas, as brincadeiras e a verba arrecadada para a Conferência, repasse de falas populares durante o casório, alegria a ser repartida ao público, a festa, o convite, a vizinhança, a cerca de bambu a separar os pares de dança da confusão do arraiá?

Interessada em participar pra valer aceitou ser mãe da noiva e Tonhão, seu amigo, topou ser pai. A festa chegou, toda a rua e lote vago enfeitados para o São João. 

Semblante e corpo em estado de graça, vestida a caráter ia com o coração a pulsar desconcertado, imaginando que o momento de jorrar ao mundo e ao amado o frescor do sentimento encarcerado chegava. Vibrava, fervilhava, era alegria e risos, felicidade a expandir-se nos movimentos de Balancê! E quando os dois foram ao centro, balançados ao som da música, ouviu a ordem Anavan tur! e no giro final cantou as palavras ao ouvido do amado. Sentindo-se liberta, bailou e voou junto à melodia junina.

Sentiu o extravasar da dor de amar e no dia seguinte soube que o príncipe estava namorando a melhor amiga da irmã. Tonhão também confessou o desejo de namorar a moça, mas ela não aceitou, com coração despedaçado para o amor.



            “QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


Carlos Drummond de Andrade”



DICAS SOBRE A ARTE DE ESCREVER
31/03/2015

Guru da escrita me sinto tecnicamente à vontade em manifestar impressões sobre o quesito; assim, mais e mais crianças, jovens e adultos vão caminhar na direção da deliciosa sobremesa que é a arte de escrever.

Experimente inicialmente se debruçar em leituras, diversas, escolha primeiramente as que excitam sua mente, sempre em busca do desconhecido. Une-se desejo ardente ao conhecimento e novos rumos sua vida vai ganhar.

Leia, leia, leia! Sempre que puder. Vai ganhar mãos, pés, fazer malabarismos, viagens infindáveis, conhecer gente e tipos interessantes. Largue a vida rotineira por novos roteiros e se surpreenda!

Quer mais, solte-se, desprenda-se de preconceitos e deixe o lápis, caneta, computador, o que lhe for mais prazeroso, correr solto por seus dedos SEM CENSURA. É um atraso permitir-se regras rígidas, severas, são empecilhos a escrita criativa. Você é você. Ponto final. Assuma-se no seu jeito e esse jeito fará de você ESPECIAL, inclusive na arte de escrever.

Quer bombar ainda mais? Escute bem, ouça o que falam nas ruas, ouvidos aguçados em todo e qualquer momento rendem gostosuras na escrita. Adocique o olhar, veja mesmo o que tem a ser visto. Nada de interjeições. Deixe o fluir ir ao que se vê, voando como pena no ar... Livre!

Antes da desejada sobremesa vem a experiência na elaboração e a colocação de todo o amor nesta culinária. Dedique-se agora a mexer e remexer até que fique palatável não somente ao seu paladar, mas do público que está com água na boca.

Não tem como evitar que todos saiam lambuzados desta experiência onde ninguém volta a ser a mesma pessoa. Tem melhor guloseima que escrever?

M. Chagá – Guru da Escrita 

SOBRE A DANÇA CIRCULAR
11/12/2014

   De onde estou, em concreto duro, armado, sustento meu corpo cansado, mal amado.

   Bem de onde estou, muitos pés em pares e ímpares, até impressão quadrúpedes, batem com força, bamboleiam ao som arfante de músicas gregas, indianas, portuguesas...

   Pés dançam... onde estão os corpos cansados que dependuram em cima? Da altura que estou apenas pés em destaque, no sacolejar de dedos, sandálias, na pedra dura, que chora sua dureza na expressividade da música advinda daqueles pés, das vozes que correm soltas naquele espaço que transcende séculos.

   Ali, ainda existente, vivo de memórias de lutas, de dores cruéis, outras vozes continuam arfantes, ouvidas lá de longe, lá de longe, onde se permite ouvir vozes. 

   Vozes do além!

As meninas do lugarejo
22/09/2014

Carolina vem correndo chamar as amigas para aventura no bosque, uma pequena área arborizada existente na cidadezinha de Seleriem Ailicec.

Chama em casa de Arabela e de Maria, ambas vizinhas. Seus gritos que inicialmente pareciam suaves foram aumentando de intensidade dado a difícil espera. Até chegarem aos ouvidos das duas meninas que se entretinham com outras brincadeiras.

Prontamente largam o que estão a fazer e correm a saber o porquê da algazarra de Carola. Ela não tem a menor paciência! Quando bota coisa na caraminhola ninguém consegue tirar. E por isso chamava as meninas, para um passeio no bosque, não simples caminhada, iriam por um caminho secreto descoberto por Carola com seu senso de enfronhar no desconhecido. A menina, mais velha das três, gosta de ler e descobrir como a fantasia dos livros se assemelham às brincadeiras com as amigas, era a sua preferência.

Arabela acabou concordando em acompanhar, mas vestia-se inapropriadamente para a situação. É que a madrinha mais tarde a levará para passeio no shopping com direito a sorvetes. Aceita fazer parte da trupe com a condição de não atrapalhar-se, porque, além disso, a mãe ficaria zangada e o chinelo posto a funcionar. Bela é uma menininha com jeitinho doce e delicado. Feito bibelô, bem comportada. Gostava de se admirar ao espelho e se imaginar heroína de histórias infantis.

Já Maria, a menorzinha, com jeito ingênuo, é a festa. Risonha, brincalhona, desperta a vida por onde passa. Vestida que nem moleca pronta para as novidades que Carolina trazia. Curiosa que só ela, não fazia perguntas, se junta às duas fazendo troça, cantando, dançando, vai cumprimentando quem vê pelo caminho, sorridente na pureza da idade: “Bom dia! Bom dia!”

O dia se torna mais bonito com Maria de companhia. E ela adora participar dos planos que a amiga inventa, já habituada a entrar nas fantasiosas histórias que a mãe lhe conta ao adormecer.

Lá se vão as três meninas que têm adoração por histórias e aventuras que as levem a viver diversas vidas várias vezes ao dia. Carola conta o plano enquanto seguida por ouvidos atentos. Arabela cuidadosa com a vestimenta. Maria, olhinhos brilhantes, soltam faíscas de pensar nas sensações deliciosas que as armações da amiga sugerem.

Risos; saltitantes passos; breves falas de Maria aos que passam: “Bom dia!”; lá vão as três se desembocar nas alegres alquimias de sonhos infantis durante passeio no bosque.

A MENINA SOBRE AS ÁGUAS
12/10/2014

A menina sobre as águas do mar, equilibrando-se docemente, o vento a impulsiona para um lado, ora outro, mas, assim, como quem não quer nada. Apenas o balanço daquela ditosa criança que se permitia pousar como dona do pedaço, do território além-águas.

            Brincava nas águas próximas à praia, onde soam tranquilas as praias de dentro, de dentro da Ilha de Santa Catarina. Esse território, os deuses em seu prodigioso poder deram a calmaria das águas, protegendo-o dos fortes ventos que vêm de fora, graças aos ardilosos montes que se arribam por toda a ilha, vindos das profundezas.

            Eu fiquei estupefata com a imagem. Nada tinha de santa, mas a inocência de uma criança em seus anseios, bravatas por conhecer o destino. Solta, livre, a desenhar sobre aquele pedaço de mar em uma prancha e cajado.

            Invejo-a, admito. Invejo-a. Ali no balanço do mar, a sensação do mundo do lado de fora e o flutuar suave da embarcação, a liberdade a reinar, nenhum tipo de domínio nem necessidade de sentido.

        Apenas o toque da suave brisa, apenas a natureza numa sinfonia.

Como as águas que passam sob a ponte!
O TEMPO PASSA DEPRESSA!
            01/07/2014
    Ele tinha acabado de ser atendido pelo laboratório de radiologia, eu seria a próxima. Caminhou até à sala em que eu aguardava acompanhado da esposa. Ele com seus oitenta e tantos anos, debilitado. O sapato se descalçou de seus pés.
   

 "Trinta e cinco anos atrás.Na sala em que trabalho apenas uma mesa com a máquina de datilografia elétrica Remington ou Olivetti, um pequeno ármário e a mesinha com telefone.

   Doutor Gomes está lá quando chego pra trabalhar às oito. Sempre pontual, ares de coronel em pleno século XX, rígido e exigente. Falam horrores do tempo em que coordenou outra repartição. Daqueles coronéis que mandavam em tudo e todos. Homem de pulso! Sério, circunspecto, de poucos sorrisos. Parece um buldogue em posição de sentido.

   Para entrar na sala dele tem que atravessar a minha. Eu atendo o telefone, eu me levanto quando chama, eu imediatamente providencio suas ordens. Atendendo às suas solicitações vê-se que é um chefe previsível.

   Numa tarde o Beto aparece pra gente bater um papo num intervalo de calma no trabalho. Senta à minha frente para boa conversa, muito agradável e com aquele jeitão relaxado.

   Doutor Gomes e o outro chefe conversam lá dentro. Mal compreendo o que está sendo dito... secretária faz ouvidos moucos ao que escuta. Mas o Beto, o Beto percebe que falam dele e num gesto para que me cale, diz : Psiu!

   Tudo acontece tão rápido...

— O Roberto não consegue resolver nada!
— Ele parece confuso. Seus funcionários não lhe obedecem.
— Ele é um descontrolado!
— É um neurastênico! Sua vida é uma bagunça!
O Beto se levanta de supetão da poltrona e adentra sem pedir licença à sala do chefe:
— Quem é neurastênico? Vocês estão falando de quem? Continuem, falem na minha frente!

   Doutor Gomes e o colega completamente sem ação com a entrada abrupta do funcionário, não têm tempo para explicações. O Beto, do jeito que entrou sai porta afora. Por alguns dias o clima é de discrição frente à situação constrangedora."

   Eis que me agacho para ajudar a arrumar o sapato de meu antigo chefe. Olho para cima e encontro o seu olhar. 

FALAR POR FALAR VÊ NO QUE DÁ!
17/06/2014
            O homem falou por falar, assim, como quem não tem nada a dizer, apenas disse e a mulher levou a sério suas palavras.
            Estavam aos festejos, entre beijos e vinhos, e disse: “quando alguém sentir que o amor está indo embora, vá antes.” Um dia a mulher não amanheceu em casa. Sem deixar nada escrito, sequer uma pista. Sumiu!
            Antes de sair ela pensa no que gostaria de ter dito a ele:

“Eu escutei tudo que você quis me dizer sobre quando o amor estivesse a ponto de ruir-se. Como não quero deixá-lo extinguir-se de todo, coerente, sigo noutra estrada.
É o que faço sim! Nossa relação diminuía a chama dia após dia, me dilacerava o coração. Não sou pra vivências sem graça, nada trazem de positivo; trato de me dar nova chance, pois mereço ir em busca do que me agrada; afinal, a vida é curta para lamentações, as quais cansei de escutar.
Quero mais é o riso, descontração, o humor. A vida séria demais, assim, a ferro e fogo, perdeu a graça.
Quero me sentir liberada, quanto a você... Quero a leveza, isso faz parte de mim e você não entendeu.”

O homem caminha em círculos, coça a cabeça, se faz perguntas, não sabe por onde começar a procurar pela mulher e, em perplexidade, perambula pensamentos invasivos:

“Essa mulher só pode estar é doida. Onde foi parar meu Deus! Desaparece de casa, nem recado deixa, o que pretende? Ela e seus rompantes românticos que vivem me irritando. Agrados que gostaria que eu realizasse e que acho um saco.
Não vejo razão para o desaparecimento dela. As coisas não estavam como antigamente, mas estavam normais.
Somos um casal com vida sólida, projetos em comum e eu não me lembro de ter dito nada que pudesse magoá-la a ponto dela evaporar sem deixar vestígio.
Não sei o que fazer. Por onde começo a procurar?”

Dizem que se deve ter cuidado com a palavra dita!


O INFERNO SÃO OS OUTROS?
25/06/2014

"CORPO-PALAVRA
O que me agrada em teu corpo é o sexo.
O que me agrada em teu sexo é a boca.
O que me agrada em tua boca é a língua.
O que me agrada em tua língua é a palavra.
Julio Cortázar"
 
            De repente colocou a mão na minha perna direita. Bem no meio da coxa, aquela mão masculina aberta do jeito que todos os dedos apalpassem maior espaço. Não mexeu com a mão fazendo uma espécie de carinho, não. Apenas permaneceu neste gesto que queria dizer algo, não disse. Parecia que a mão estava colada a mão colada à coxa. Pregada.

            Eu acabava de sair do sono numa manhã de inverno escondida debaixo de muita coberta. O frio por essas zonas é tão rigoroso que não há chance de se colocar as manguinhas de fora. O único e principal objetivo é manter-se aquecida. Graças às várias coberturas pude dormir muito bem num short pijama e camiseta por baixo de leve blusa de frio e uma boa meia nos pés. Com os pés frios não há quem aguente levar o sono adiante.

            Eu tinha dito anteriormente que não sou mulher para ser procurada somente debaixo das cobertas. Não. Quero mais que apenas o prazer do sexo qualquer que seja a hora, pela manhã ou à noite, não importa, eu quero mais que sexo.

            Quero ser mulher por inteiro, não somente debaixo de cobertas, para isso existem alternativas. Não somente gestual de mãos que buscam algo mais que conversa tátil. Procuro alguém que converse e se valha desse atributo humano. Afinal conversar é mais do que persuadir alguém, ou seduzir, ou convencer; conversar serve para criar a intimidade que todo o casal necessita para o surgimento do afeto, do amor a dois, criar a cumplicidade tão necessária ao relacionamento.

            A conversa não veio de nenhum de nós, cada qual aguardando iniciativa do outro, aquela mão na minha coxa. Os segundos caminhando na ampulheta do tempo. Retira a mão da minha coxa. Levanta da cama. Eu permaneço sob as cobertas ainda por bom tempo. Nenhum pio se ouviu naquela manhã de inverno.

Será que realmente o inferno são os outros?


MANIA DE FALAR DA VIDA ALHEIA
04/07/2014
Realmente é difícil entender porque as pessoas falam e se preocupam tanto com a vida alheia, não é mesmo? O que se ganha com tanta falação. O que acrescenta à vida de cada um que vive na fofoca da vida dos outros, que enxerga os defeitos alheios, que charfunda a falar pelas guelras sem eira, nem beira, sem nenhum bom senso.

            Eu não tenho a menor paciência. A minha vida já é bastante complicada e me toma grande parte do tempo. Olho fixo pra ver se ela se banca do ridículo, mas não, nem assim a misere em pessoa desconfia de sua gafe e continua na logorreia, então, saio sem emitir observação, senão é capaz de sobrar pra mim. Se fala dos outros, fala de mim!

            Aconteceu uma experiência interessante quando encontrei uma amiga num café. Estávamos há muitos anos sem nos falar. Conversávamos o trivial, colocando em dia as novidades e a partir daí caminhamos noutros  assuntos.

            Ela me contou que sua vida mudou após uma consulta que fizera com um médico por estar muito ansiosa. Ele me disse com todas as letras que era para eu parar de gastar o meu tempo com a vida alheia. Que se eu fizesse só isso ia perceber como a minha vida mudaria. Eu saí do consultório analisando aquela frase que passou a ser o meu lema. Percebi o meu olhar crítico sobre as pessoas: como vestiam, a aparência etc. Passei a partir de então a não mais emitir opinião sobre os outros. Se não era algo positivo que valesse a pena expressar, era descartado, eliminada a voz. A minha vida ganhou em qualidade e o tempo gasto com o que realmente importava".

            E ainda emendou: “o que importa como a pessoa está vestida, se é feia ou bonita, se é gorda ou magra... a vida é dela e faz da vida o que quiser. Isso diz respeito somente a ela. Isso faz diferença na minha vida?”

            Eu levei o maior susto ouvi-la falar daquele jeito, explicando suas impressões sobre o cotidiano das pessoas. Sempre julguei a minha amiga amadurecida e já distante desses maus hábitos que alcança grande porcentagem da população. Me assustei com a revelação, pois eu era a menos amadurecida nesse sentido e pasmem! Guardei pra mim, pois isso era o mínimo que se esperava.

            Eis que passa por nós uma mulher com roupa muito colorida, nada combinando com nada, gordinha, baixinha, feliz da vida sem qualquer preocupação com olhares.

            Minha amiga e eu olhamos uma para a outra, paralisamos a conversa, mas não emitimos qualquer observação. Caímos na gargalhada diante do nosso silêncio. Tínhamos passado ilesas àquela prova. Afinal, cada um é dono da própria vida. 

SIGNO DE LIBRA
07/06/2014
Sempre atento às decisões que ela tomava de forma autônoma. “Porque será que isto me incomoda tão diretamente?” Não conseguia resistir ter o controle sobre tudo que acontece ao redor daquela família. Por mais que os tempos eram outros, que a fase machista mais consistente do período masculino passara em sua vida, tendo destrinchado preconceitos, dogmas, posturas, ainda sentia fortes dores de cabeça ao descobrir que ela passara por cima de sua orientação e seguia ritmo próprio.

Dava conta de arregimentar todas as suas atividades e repartir de forma tranquila as obrigações caseiras, mesmo as consideradas femininas, “a igualdade no mundo de hoje faz que isso seja pensamento fora de questão, não existe o masculino, o feminino”, discorria ele mentalmente enquanto providenciava o almoço. Não tinham uma secretária disponível. Salários rentes aos gastos, até mesmo com descuido usual dela, que ultrapassava sem controle, “não é como eu!”, finalizava sempre que isso ocorria. Mas se esquivava de ser o responsável pelo orçamento, aspecto que lhe causava preguiça.

Outras coisas não, não tinha preguiça, como cuidar da lavagem da louça, das verduras e frutas, até pendurar roupas no varal tolerava, mas cuidar de contas não era seu forte. Forte mesmo era a cobrança de que tudo corresse ao seu obsessivo controle.

Confie um pouco mais no mistério da vida, por mais que seja incompreensível pela mente, se movimenta com eficiência em nome do bem de todos.” Lera isso em algum lugar e pelejava que conseguisse trazer o lema para o seu dia a dia com a companheira. Ela estava por chegar e provavelmente esbaforida, atrasada e folgada – vai encontrar a refeição pronta à mesa.

Lindi aparece à porta. Por mais que esteja na correria desenfreada, olho para ela e ainda me encanta sua beleza, mesmo a mais cotidiana. Basta sair de casa, que o simples enfeitar-se já lhe garante uma roupagem diferenciada. Eu me mordo de ciúme, mas não me atrevo a demonstrar, apenas alguns senões, outras horas uma observaçãozinha...

O lema! preciso me concentrar no lema para que consiga relaxar... confiar um pouco mais no mistério da vida... em nome do bem de todos” pensa. Ela corre ao banheiro, lava as mãos e se apronta frente à mesa. Sento ao lado, não sei por que não consigo sentar a sua frente. Ela começa a discorrer sobre os assuntos do dia. Ouço calado e sem emitir uma palavra enquanto vou preparando meu prato. Pronto. O prato dela vem regado a muito azeite e as verduras colocadas em desalinho, se misturam e dão ar de descuido, “...em nome do bem de todos”. 

     Entre uma garfada e outra, após mastigar, já emenda novo assunto e eu continuo calado e sem emitir palavra, nem sequer um Ah! É mesmo! Nossa! “Fico tão voltado para os meus mergulhos interiores que nem me lembro de que convivo com uma pessoa e ela merece obter uma resposta. Já esqueci o desgraçado lema de inda a pouco.” Não respondo nada, cauteloso, com medo de mais uma vez ela venha com decisões que sempre solta de esguelha para que eu não perca a diplomacia. Eis que Lindi dá uma paradinha, termina a mastigação, limpa os lábios e prepara para falar:

— Como tá chegando o Dia dos Namorados comprei pra nós um pacote de viagem em poucas prestações, afinal, estamos precisando de bom descanso e podemos juntar a necessidade aos momentos de paixão, que que você acha?

Eu estou com a boca cheia no momento exato em que ela inicia a pergunta e já ao final quando sinaliza a interrogação, eu me engasgando, ficando sem ar, o meu rosto a roxear, a respiração mais difícil e... quero gritar “SOCORRO” e, não consigo, simplesmente olho esbugalhado para a frente... “por mais que seja incompreensível... se movimenta com eficiência em nome do bem de todos”.


Jornal Catarinense, desenho de Juarez Machado, pag. 53, 25/05/2014

DOS DESVARIOS DE SUAS MÃOS
17/06/2014
  Dos desvarios de suas mãos os desenhos iam fluindo com tanta facilidade que claro estava o abençoado dos deuses naqueles movimentos febris, entusiásticos movimentos que à maneira dos impressionistas buscava o simbolismo almejado.

            Assim veio o esboço pálido. Traços. Rabiscos. Os volteios de um pássaro. A voar ou somente a imaginação do artista o quisesse assim? Aos poucos o rabisco vai ganhando o contorno do seu embriagado desejo.

            Mas eis que a surpresa acolheu não somente a mente as mãos tudo em descontrole ou em controle artístico? Vai surgindo novo semblante que não não é um pássaro que será? Nos contornos pouco claros o movimento do desenho ainda indefinido na sua construção, está ali a buscar a inspiração, somente a imaginação no fluir da força criadora descontrolável. O lápis esvoaça pelo papel com se tivesse vida, vida em gestação, em suaves gestos tomados sem comando.

            Bailando no espaço a possível ave, agora uma figura enigmática ainda, flanando em círculos ao redor de sua cabeça inundada por pensamentos que vêm e vão malcriados, não se aquietam.

            De repente asas ganham contornos sutis, vão se afunilando ao desenho suave de um braço feminino. Lá estão os dois braços completamente abertos ao espaço todo o espaço disponível para a aventura da criação. E segue com novos rabiscos até que ganhem contornos precisos.
            
         E da plumagem final da ave o traçado ganha novos cortes e aparecem delicadas pernas que suavizam o ar em movimento até que em um voo delirante ao mundo interior, vê a figura de menina no corpo de mulher, ainda na formação que o tempo exige. A jovem figura de uma bailarina acena finalmente em sua cabeça e pode então delinear o que seu instinto artístico tencionava.

            Lá está a doce bailarina em contínua passarada no balanço de braços e mãos desenhados pelo balé, movimentos pélvicos fazem os encaixes da dança e as pernas ora se ampliam em movimentos de abertura ora dão volteios embasbacantes, rodopios que o alucinam e de repente vê surgir a bela mulher à sua frente pronta para o impulso da dança que se inicia. Ele toma sua mão e começam a bailar. As canções românticas dominam o melódico ritmo do amor, os dois enfeitiçados pela beleza da dança, se veem introjetados, transformados, já são pássaros soltos num céu radiante e claro, tomado pelo azul pincelado de balões brancos em todos os formatos.

            No grande salão do sanatório nada é inusitado, apenas uma das demonstrações de delírios e alucinações que comumente estão presentes durante o encontro dos internos e internas a espera dos visitantes que a cada dia rareiam aparecer. As famílias escondem seus loucos e com o tempo estes vão sendo esquecidos, vivendo apenas o fértil domínio dos mundos criados em seus escombros interiores.

(Texto criado com base no desenho do Juarez Machado)


TRAGÉDIA A TRISTÃO E ISOLDA
17/06/2014
            Isolda foi com o grupo de amigos para o botequim da esquina. Estava com astral inadequado para o momento de farra, mas até que seria bom. Assim eu me envolvo com a turma e essa angústia, essa dor me abandona.
            A tarde estava ensolarada e o espaço era bastante agradável. As mesas quase se colavam uma às outras, mas cada grupo envolvido em suas discussões, umas às bases de teor alcoólico mais do que acelerado, em outras, muita discussão futebolística e noutras os olhares das garotas aos rapazes disponíveis.
            Até que a conversa da nossa turma encenava novos padrões, mas as minhas emoções faziam com que eu não conseguisse me envolver inteiramente em qualquer conversa.
            Tudo parecia tão fugaz, tão fora de propósito. Aquele monte de gente, um bando despreocupado com o destino que corria do lado de fora. Cada qual se achando no direito de estar ali no momento egoísta de apenas existir e curtir a leveza do ambiente. Nada a funcionar ou fodas se estivesse a.
            Meu olhar estava concentrado a visão que eu tinha à frente, mas para falar a verdade, eu nada via, não conseguia enxergar, tudo embaciado, num sem brilho que mais me acenava ao árido deserto da desesperança.
            Sorte que Matilde num leve balanço de cabeça no arrumar os cabelos olhou para mim e percebeu que eu não estava nos melhores dias. Ela foi se levantando da mesa e me puxando pelo braço e aos sustos pelo inédito movimento me vi sendo puxada para o fundo do salão do bar, onde parecia ser possível conversar e ser ouvida.
            Não quisemos sair para a rua, quer dizer, eu não queria que percebessem como eu me encontrava, era dar muita oportunidade de alguém cantar de galo em cima da minha tristeza tão exposta. Apesar de Matilde insistir em sair dali, puxei-a para o canto e ali ficamos de pé mesmo, numa conversa que começou a rolar desmesurada.
            Compreendeu que eu estava a ponto de desabar, me puxou para um abraço apertado onde me senti completamente amparada, nada como um amigo que te compreende no seu silêncio e consigo permanece naquele falar diferenciado, o falar dos toques da amizade, o calor do corpo a amparar e suavizar as dores que de tão latentes já não cabem sós em um peito, precisam do do amigo para dissipar o desespero.
            Foi como eu me sentia em desespero a tudo que vinha acontecendo comigo. Jorge viu que nós duas conversávamos ao pé do ouvido e deu um grito chamando-nos de volta ao grupo. Matilde com um gesto de mão acompanhado de um já vamos acalmou-o.
            — Matilde, eu e o Cássio terminamos o nosso namoro e eu não tenho vontade de mais nada a não ser chorar, chorar muito. Aquele filho da p. conseguiu arrebanhar meu coração, eu estou apaixonada por aquele sujeito como nunca estive em minha vida e o imbecil só fica a se arder de ciúme desvairado a ponto de não conseguir raciocinar adequadamente a situação em que estamos envolvidos. Demos um basta, terminamos, mas eu estou sofrendo demais, Matilde, eu nunca pensei que isso fosse acontecer comigo um dia, eu que sempre pisei nos saltos e dizia que nenhum homem ia me tirar o prumo. Já não sei o que faço, já não sei o que pensar, os meus sentimentos estão maltratados pela humilhação e desrespeito que ele me fez passar.
            — Calma, calma, me explica isso direito Loura (era como ela me chamava carinhosamente pelo apelido retirado da lenda de Tristão e Isolda).
            — Não sei mais o que pensar Matilde, você acredita que Cássio está desnorteado, com um ciúme que ultrapassa o bom senso e de tanto me atacar com palavras, me colocando como fazendo parte de uma baixaria que se vê ameaçado nos seus pensamentos em desalinho, incoerentes e próprios de alguém que sofre além do justo, como não se permitisse ser feliz, teima em volver a uma cena imaginária que construiu e deu vida própria. Cássio está em descontrole e nada faz que largue a nau dos alucinados por causa do ciúme descabido.
— Vamos, calma, me conte direito o que está acontecendo para que eu possa te ajudar, vamos lá, conte devagar. O que aconteceu para o Cássio ter essa atitude?
— Eu não tinha contado isso para alguém a não ser ele. Você é a segunda pessoa a quem falo sobre isso. É tão bobo, mas eu, ao querer ser verdadeira e manter a promessa de nada esconder resolvi contá-lo. Veja o que desencadeou, a gente terminou e eu neste sofrimento que não cabe mais em mim. Eu conheci um sujeito que andou a me fazer alguns traquejos sem graça, a querer uma relação superficial sabe ir pra cama, apenas cantada daquela sem pé nem cabeça de tão sem importância, o problema foi que resolvi contar para o Cássio e assim evitar que possíveis fofocas chegassem aos seus ouvidos.
— E daí me fala o que aconteceu?
— Cássio está ferino, julgando-me a única responsável pelas atitudes do tal fulano que queria me c. mesmo tendo compromisso sério com outra garota. O sujeito deu uma cantada das mais sem jeito, eu apenas o escutei, conheci suas intenções e expus o meu ponto de vista racionalmente, você sabe o meu jeito feminista de encarar tais coisas, assumo total responsabilidade sobre os meus atos  e não preciso de alguém que me defenda. Além do mais deixei claro para o tal sujeito que estou satisfeita com o homem que escolhi. Mas Cássio anda desnorteado, mesmo a gente tendo chegado ao final eu tenho medo do que possa acontecer. Você sabe, ele sempre foi um cara pacato, mas com aquele interior obscuro a gente mal pode saber do que é capaz.  O que eu desejava mesmo é que estivéssemos juntos aqui, com a turma, com nossos papos, mas não, olha só, eu completamente perdida, como se não achasse mais chão a pisar.
— Soldinha, fique tranquila, tudo vai passar com o tempo vocês vão entender que não tem casal mais entrosado que vocês, você vai ver tudo vai passar.
As amigas se dão um abraço solidário e neste momento ISOLDA escuta o seu nome sendo gritado aos berros e, Cássio se aproximando tomado por uma loucura que afinal está à mostra. Cabelos em desalinho, roupas amarrotadas, desleixo aparente. Enfia a mão na cintura pega a pequena pistola 38 e aperta o gatilho bem na barriga da ex-namorada alvejando todas as balas do tambor no corpo da moça TAM TAM TARARAM TAM TAM

MOVIMENTO SURREAL
13/06/2014

 
   Que susto.


   De repente uma garra grotesca, unhas e dedos encapsulados de terra se movem numa ligeireza agarrando-se a uma das grades. A pele ressequida, com sulcos profundos e imundos da terra barracenta. Lamacenta. Questão de segundos. Das grades do muro. Grosseira e suja de terra.

   Susto repentino com o movimento rápido, como se aquela garra quisesse atacar. Fizemos um movimento de corpo. Balé. Rodopio espantado. Nos defendendo como por instinto, e com olhares aterrorizados, viramos para dentro. Dentro. dentro...

   Nós dois estávamos a caminho do posto de saúde, do serviço de saúde pública, SUS, rezando para conseguir senha para o atendimento. SUS. É tão complicado ser atendido por tal serviço que mesmo acordando muito cedo ainda não conseguimos sequer um atendimento. Não. SUADOS. Não adianta argumentações pela necessidade ou urgência, acabaram-se as senhas, as poucas senhas para o dia designado para a região, somente na próxima semana. próxima semana. nova tentativa. SUSRUPIADOS. Opta-se por esperar até a semana que vem, ainda dá tempo de esperar. SUSPIROS. O serviço privado é o olho da cara. Nem classe média aguenta. Exploração. Comércio. Negócio. Espera. Assim, volta-se ao SUS. os sintomas vão se ampliando devido à ineficiência de um serviço prioritário. SUS gênero.

   Estávamos certos de que as coisas mudariam, afinal, anda-se falando tanto. Demagogia falante. Propaganda. Marketing. Médicos prontos às solicitações, até de Cuba vieram. Como não conseguir ser atendido imediatamente à chegada. Essa ladainha ainda falta muito para ser solucionada. Talvez mais 500 anos. Terra Brazilis.

   ... dentro. o jardineiro exausto e ofegante busca com uma das mãos a grade do muro. Com a mão encharcada de terra. O movimento de sua mão junto ao muro é tão imprevisível que numa fração de segundos nos retira a tranquilidade. Que susto. Ele busca o descanso até retornar a arrumação do jardim da casa, enquanto passamos pela calçada.

   Se o jardineiro cair doente ali, no aqui e agora, conseguirá atendimento SUS? SUSREAL!!!


ESCREVER OU BEIJAR, O QUE É MELHOR?
03/06/2014



   Eu nunca vi ou conheci uma pessoa como o Afonso. O sujeito estremece todinho só de falar em beijar. Faz questão de dizer para quem queira ouvir “beijar é a melhor coisa deste mundo, eu adoro beijar, beijo na boca, beijo de língua, o danado do beijo causa uma aceleração incontestável no meu corpo, o que dizer do espírito, nossa! Sai desvairado, cavalgando nas estradas sem fim do mar da paixão”.

  A maioria de nós ficou abobada com a resposta imediata do sujeito que andava sem trava na língua. Ficou tão empolgado com sua descrição! Com certeza a presença de Margot lhe afrouxou os feixes sempre tão perfeitos na expressão dos sentimentos. Frente a frente com a mulher que ele pretendeu assustar para em seguida conquistar. “Qual mulher não vacila pelo sujeito sincero e espontâneo, pronto a demonstrar sua voracidade em torno do beijo amoroso, cena que atravessa séculos e séculos nas histórias de amor e paixão... Eu ainda beijo essa mulher!”, pensou ele astucioso.

   A tentativa de ser transparente ao exprimir sobre o ato de beijar supunha ele, iria captar o desejo, mesmo raso, no coração e mente da mulher que lhe tirava o eixo.

   Olhou-a direto nos olhos, provocativo. Ela não teve como escapar de olhar tão convencedor do que pretendia dizer. Ao mesmo tempo ambos com o rosto em fogueira, disfarçando gestos, tentando escapar de olhares curiosos. Tanto Afonso, quanto Margot tinham jeito tímido por trás da couraça de confiança que dedilhavam nas palavras. Ele, traído, de certo, por tremores na emissão de fonemas, querendo arredondar palavras, se atrapalhando em atos falhos, seguidos de explicação que só serve para o velado revelar-se.

   Eu e a turma tratamos de nos dispersar, cada qual a caminho de sua área de trabalho sem dar atenção ao que se passava a fundo com aqueles dois.

   Afonso entra para o escritório com raiva do seu jeito impulsivo que sempre dá as caras à sua revelia. “Droga, será que falei demais?", batia na mesa com socos. "Não, não tô arrependido não! Eu devia é ter falado pausado, com menos emoção... Que diabo! Mania que tenho de abrir a cancela e agir sem pensar!" , as mãos vermelhas, "não, não falei demais! Tenho certeza!”

   Relembra a última ocasião que ficou cara a cara com Margot. Tão próximos, e ao mesmo tempo tão distantes, ele a sentir o hálito perfumado “porque não te beijei menina, por quê? Nós dois sozinhos ali. Ai! Essa timidez que me mata e interfere nos meus sentidos e desejos.”

   “O que será que se passa com a Margot? Queria ter asas, voar, descobrir..." por instantes caminha pelos devaneios e voa veloz para o canto da Margot.

   "Margot chega à sala numa ânsia desastrosa, querendo colocar o coração pela boca, com as batidas atrevidas e sem ritmo. Sente-se zonza, abana-se com as mãos em forma de leque, tenta afagar o peito que teima mal respirar. Suspira! Inspira! Expira!

   De repente Margot, frenética, começa a escrever, tentando compor em palavras tudo o que de forma escandalosa é perceptível em si. A mão desliza autônoma no papel, não obtém controle dos diversos sentimentos e emoções pelos quais se vê tomada.

   Viaja, transita a nau dos alucinados, deixando os dedos escorrerem sobre aquele mar indomável. Tudo é angústia numa sensação inicial, e desemboca em seguida, a transitar na paz serena das linhas preenchidas pelo espírito brincalhão, arteiro, em sintonia com o remanso confortador da escritura apaixonada."

   Dois toques na porta e ele cai de paraquedas na realidade. Margot pede licença para entrar e mostrar os índices financeiros que lhe solicitara. Observa a bela figura da mulher profissional que caminha elegante até uma cadeira. Ela começa a dissecar gráficos e análises. Nem em sombra Afonso conseguiu arrebatá-la para junto de si, dos seus desejos mais profundos.

   A tarde transita em calmaria. Apenas Afonso, apenas ele, remou mar revolto.




A INFILTRADA
20/05/2014

            Raquítica, magricela, a menina ainda não conhecia a turma da rua para onde se mudara. Via pelos buracos da cerca de madeira vários meninos nas disputas da pelada de rua com uma bola que sempre sonhou possuir, uma bola de couro!
            Curiosa, queria fazer parte do grupo, mas grupo de meninos sequer cogita da presença de um rabo de saia. Acaso isso acontecesse seria uma gozação pela turma adversária, a da outra rua, rivais em consonância com a cotidianidade das gangues infantis.
            Nenê tinha algo a seu favor, usava cabelos curtos, “sureco” no estilo “jõaozinho”. Em vista disso veio-lhe à cabeça a possibilidade de se apresentar diferente ao grupo. Vestiu a roupa do primo e trajada foi todo intrometido lançar-se à aventura de participar dum grupo que adora futebol, pelada, bola de couro, além de outras peripécias dos ardis de meninos.
            Chegou todo tímido, ares inseguros, rodeando o bando, percebendo que o tinham notado. Estavam na armação do time e como faltasse um garoto para a “zaga”, um dos moleques sugeriu que a turma o convidasse. Oh, guri! Não quer jogar com a gente?
            Nenê foi todo serelepe, ao mesmo tempo cauteloso, zeloso que seu segredo não fosse descoberto. Eram crianças e como crianças todos se parecem.
            Começou a farra, jogadas, e ao final o time de Nenê foi o campeão com dois gols dele. Foi ovacionado ao final da partida, carregado pelos moleques como  herói.
            Nenê era só alegria, esbanjando confiança. Após o término da festa de vitória, o grupo se instalou numa das calçadas da rua e ficaram conversando sobre os lances legais do dia. Nenê ressabiado dava palpites o mínimo possível, quando um dos garotos perguntou se ele não tinha uma irmã. Nenê, enroscado, completou que tinha irmã gêmea, que gostava de ficar em casa com as bonecas e companhia da mãe.
            O menino de olhos escuros e redondos abriu o semblante quando Nenê contou sobre a irmã. Os moleques deram boa risada no desconcerto dele; havia visto a menina de relance e o jeito moleque dela chamou-lhe atenção.
            Nenê procurou se conter, preferindo dar continuidade àquela vida interessante, longe da vagareza e limitação das brincadeiras de menina. Entrosando cada vez mais com os moleques, pode conhecer as artimanhas da garotada, aprendendo algumas malícias naqueles dias gloriosos de aventura pelos caminhos do bairro.
            Conheceu o lugar de encontro, onde apenas aos meninos o acesso era permitido, “luluzinhas” expressamente proibidas. Foram momentos gloriosos de liberdade, de conhecimento do universo masculino, que iam muito além do tema futebol. Entravam as estratégias para descobrir locais exploratórios: cavernas, fendas, caminhos estreitos ao entorno do povoado. As disputas pela liderança do grupo e o eleito, o menino de olhos escuros.
            Somente não contava Nenê desse tal menino tornar-se amigo ao ponto de confiar-lhe segredos. Tinha vida familiar sofrida, sendo talvez o motivo de investir sua energia no bando de moleques. O pai vivia caído pelas calçadas e ajudado pelos vizinhos até em casa. A situação constrangia olhos escuros e Nenê soube escutar com olhar tolerante e sem julgamentos.
            A tal ponto caminhou a relação de ambos que olhos escuros confidenciou a Nenê estar apaixonado pela irmã dela e, contava com a ajuda para se conhecerem melhor. Nenê se viu na encruzilhada em que armou, resolveu que a única saída era sair do esconderijo.
            Comprometeu-se marcar o encontro para o cinema entre ele e a irmã. Primeiro afastou-se da turma e finalmente liberou seu lado verdadeiro.

            Para o encontro transformou-se na garota, agora mudada e conhecedora do universo masculino que deixou de ser ameaça. E como gêmea idêntica pode conhecer o garoto no escurinho do cinema.





BOLINHA DE SABÃO
12/05/2014

BOLINHA DE SABÃO
“Sentada na calçada de canudo e canequinha
Tum plec tum bem
Eu vi um garotinho
Tum plec tum bem
Fazendo uma bolinha
Tum plec tum bem
Bolinha de sabão (2x)
Eu fiquei a olhar eu pedi para ver
Quando ele me chamou
E pediu pra com ele ficar
Foi então que eu vi como era bom
Brincar com bolinha de sabão
Ser criança é bom agora vou passar
A fazer bolinha de ilusão!” Orlan Divo

            Não consegui pensar em outra música que tenha cativado meus cantos de infância, os sonhos de criança, as trapalhadas junto à garotada; ao ver aquele garoto soprando bolinhas de sabão, aconchegado na grama verdejante do parque...  a malícia da mulher, as paixões adultas que povoam a mente, a busca pela compreensão do mundo... se esvaem naquelas bolhas que esvoaçam o azul do céu.
Aos punhados e cada bola com desenho indizível, contendo tantas belezas, cores, tamanhos, formatações diferenciadas, e eu, moleca serelepe que desde cedo se aproxima mais de sonhos que de qualquer cotidianidade.
Sentada à beira da calçada da nossa rua; em volta a criançada a falar, gritar, rir, gargalhar e correr, cantar, contar, rolar de tanto riso. Apenas o senso do que ali se apresenta, apenas a vivência infantil na plenitude. Tão cheia de satisfação, de inteireza qual o bebê em gestação, em seu mundo único, num mar temperado e acarinhado constantemente pela mãe.
Aquelas bolhas me transmutaram para outro universo, o universo da presença de minha mãe, que lá do portão, olhar atento, festeja os gorjeios da filharada. Uma escadinha atrás da outra, os cinco, e ela, na incansável destreza que tudo vê e de tudo cuida. Freud estava certo: não tem como não amar a mããããããe e clamar por ela!

            Nem que seja através das suaves bolinhas de sabão!


MOÇA DO VESTIDO AO VENTO
25/03/2014

   A moça caminha pelo jardim destruído pelo tempo, tempo de outono que a vida sempre cogita trazer, numa cotidianidade inventiva de novos tempos sempre tão iguais. O vestido esvoaçante cintila um jardim em flores, coberto de cores, que o vento quer ardentemente vê-lo sorrateiro voar, e transcrever o corpo delineado pelo desejo.

   O rapaz se extasia, tal como o vento prazeroso, ao admirar envolto no desconhecido a mulher que aparece sempre as cinco da tarde na praça da cidade. O olhar cada vez mais astucioso. Largara o sentido em nau distraída e ao léu. Cogitou possuir mais que a carne da mulher, o que vem transcrito no seu olhar, no sorriso, no caminhar pensativo sobre a grama seca que verdejante e brilhante parecia no contraste com fim de tarde e persegue aquele corpo a desfilar. Imagina o toque daquelas mãos a caminhar por sua pele. Mãos acariciadoras e leves, que ao toque do tecido imaginava ser o seu corpo desenhado pelo carinho.

   Seria dele para sempre. Teria o amor daquela mulher com ares de menina que cada vez mais invade seus pensamentos, um amor somente dele, a mais ninguém permitido. O cérebro comandava as ações autômato, traçara estratégia para possuí-la, e desde então, não mais tinha sono, não mais trabalhava com tranquilidade,passou a ser uma máquina de calcular, a medir e elaborar o esquema diabólico que aos poucos tomava forma em desenhos dimensionais, ainda ficcionais, mas resvalando de forma insana à prática.

   Planos, metas, ações... a moça do vestido esvoaçante a comandar seu destino que de repente deixara de ser tosco pelo objetivo claro, ameaçador e desejante, ao ponto de transformar o sujeito em traste ambulante, obcecado de intenções.

   Noite escura, inundada de vapores fétidos, céu grotesco e fosco surgiam ao seu olhar sem traço de humanidade. Desaparecera o sujeito compenetrado, que dosava ações ao traço do óbvio. Um olhar amedrontador toma posse daquele rosto em sucessivas visões fantasmagóricas de poder absoluto.

   Põe o lenço envolto de substâncias delirantes e a moça sucumbe nos seus braços. Completa-se naquele movimento. A mulher em sua posse definitiva, sem recusas. Caminha sôfrego para o veículo e com gestos delicados a coloca ali, uma princesa prestes a receber o beijo do amado e acordar do sonho.


   Ei-lo príncipe, transformado pela bondade ungida na esperança de aceitação pela amada que desconhecia seu amor. Observa os contornos suaves da boca rosada e devagar deixa seu lábio pender-se ao dela e acorde do sonho e vivam a vida que planejara.

   O toque forte e grosseiro na porta chamando-o para se levantar traz João de volta ao mundo real, o mundo de solfejos comuns, para mais um dia de trabalho ardente em sol a pino.




GRITO SURREAL
08/04/2014
         Em sua bocarra é despejado tudo disforme e inacreditavelmente verdadeiro caos de uma realidade desdita, dita em parágrafos completamente recheados de fendas, parafusos, e goela abaixo; enquanto aberta estava, o que jorrava era reflexo da visão frente a frente.

         Olhou para o Presidente, tinha tanto o que dizer, tanto o que pedir e, salta sapos; carrapatos; traças; cobras; jacarés e marreta, pancada, salto, prego, sangue e fulanos em cima do muro... e vomitando ia de tanto por dizer: percevejos, lagartixas, pulgas e maracutaias às talas – sem dó nem piedade; cuecas e meias e bolsas recheadas da esperança do povo que lida na deslinda, superando dívidas, dúvidas, embromação e discursos políticos niilistas entra governo sai governo.

         O líquido biliático colorido das siglas – o PMerDa Bosta nenhuma; o Podre Social Demoníacos Brazibundas (junto  ao Porco Sádico Devasso); o arrasta a Pradaria Total para o abismo final; PP saudações; DEMosquitos, e os demais existentes  aproveitando as beiradas malcheirosas dos podres poderes (copiei do Pedro Porfírio!). Todos acossando a carne viva de um povo que continua, ainda, esperançoso.

          A bocarra jorra que nem quadro surreal de uma malsucedida herança de Troia: cavalos, éguas, jumentos, quatro patas orquestrando o congresso; o senado; a câmara e um povo que ronrona, dócil, afagado por carinhos sádicos, apostando em submissão e alienação; ajoelhado implora, reza a Salve Maria esperando que tudo dê certo neste mundo de faz de conta do reino herdado de Portugal.



PRESENTE DAS ÍNDIAS
18/03/2014


        A moça acabara de chegar das Índias. Vinha de um tempo que considerara longo por estranhamento à cultura indiana. Confusão pelas ruas com veículos indo e vindo, poeira a embaçar as vistas, contrastes extremos entre ricos e pobres, metrôs lotados, lixos pelas ruas, vacas supremas reinando nas cozinhas; e ratos, ratos, ratos, por todo o lado que se olhe. 

        Dois meses pretendidos aos trabalhos voluntários lhe acarretara outros tons que vão além das constatações de olhares em primeira visão. O culto contemplativo que eleva a alma além das ansiedades ocidentais. Deuses que emanam a paz e através de rituais ancestrais, um povo que cultiva oferendas que se aproximam do mágico.

        A moça trouxera uma companhia, presente de um dos mestres budistas com o objetivo da convivência salutar durante o trajeto de vida. O jovem com aspecto e vestimentas de monge tinha como tarefa fundamental doar sua existência àquela alma que, segundo o mestre, ainda precisava de muitos degraus para o alcance do nirvana supremo. Era o seu presente àquela alma ocidental completamente afoita aos encantos sensuais, ansiosos e contemplativos da vida de comum mortal.

        A convivência com aquele que passa a ser a sua sombra no dia a dia traz a moça para outro momento, uma inter-relação que apesar de só acrescentar em crescimento espiritual, também lhe traz o peso que terá de carregar, já que os ouvidos precisam estar sempre atentos aos diversos ensinamentos que saem daquela boca como se vomitados; fora de controle, apenas aceitando o comando da existência – ser aquele que transmitirá à ela todos os grandes ensinamentos.

         Com seu espírito ainda em índole ocidental, com grande dificuldade de captar a verdadeira intenção, a moça não consegue lidar com uma sombra lhe seguindo nas vinte e quatro horas do dia. Ao travar uma conversa com aquele mestrando fica por dentro das intenções iniciais do grande mestre.

          Este lhe confessa que têm por base duas tarefas primordiais durante a estadia junto a ela. Diminuir as dores consideradas humanas num nível já transmitido por grandes mestres, onde o desenvolvimento de habilidades irá fazê-la dominar sua própria índole rebelde ao ponto de nesta vida alcançar o estado de graça. E a segunda versão ainda não está pronta para ser relatado a ela; o momento propício será dado na ampulheta do tempo, ao escorrer de grão a grão, construído com a evolução de suas convivências.

           Sentindo um e outro, unha e carne, cresce em cada um, suplantando todas as matemáticas e linguagens possíveis, uma grande afinidade – o amor carnal exacerba as leis quânticas para lá de Marrakesch e o ensinamento fundamental é apreendido em sua plenitude, trazendo a tona as voracidades do carnal em detrimento do espírito. 

           E a jovem que pretendera devolver o jovem ao seu mestre pela exaustão de conceitos e mais preceitos que nunca foram aceites em sua grave, destarte humanidade, perece cigana pela vida, em completa dispersão de espírito. Desconhecendo a segunda versão, apenas diáspora vida.


DILETANTES, POR JÚPITER!
27/ 09/2013


          Duas sessentonas. Amigas com afinidades e que gostam de sair e se divertir; mas vivem reclamando da falta de tempo para tais lazeres. Da última vez que saíram Direlene e Marciana ficaram questionando o porquê da falta de tempo de ambas e após todas as desculpas e entremeios surgidos não houve jeito, Direlene intimou que Marciana fizesse uma crônica a respeito. Amigas que nunca têm tempo para o encontro saudável de uma amizade que quer se perpetuar.

          Direlene sempre ocupadíssima, ativista implacável, nunca lhe sobra tempo. Reuniões, greves, passeatas, discussões, liderança. Tenta diletantemente, a todo custo, fazer deste mundo um mundo possível. E se ocupa o tempo todo, todo o tempo; não por obrigação, mas por gosto, como amadora do mundo. De um mundo que se quer justo e melhor.

           Marciana sempre ocupadíssima, ativista nos sonhos, nunca lhe sobra tempo. Revela-se como é, sente, pensa e age. Atreve-se a escrever poemas e prosa; a tocar o violão; cantar; dançar e devanear. Invoca Júpiter e pede pela Terra e homens melhores e solidariedade entre pessoas.

            Eis os dilemas de Direlene e Marciana. As contradições do mundo. A arte e o fazer. O fazer e a arte. Duas mulheres vivendo as transformações do corpo, da mente, da vida. Dialéticas questões. Mesa de bar. Mulheres em desejo de construção da liberdade feminina. Donas do próprio corpo. Amigas que não potencializam o tempo para se encontrar e se distrair. Duas sessentonas.





PARAFRASEANDO HERÓIS
21/08/2012
   “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”. Vocês podem me chamar de tola, pueril, mas acredito em fábulas. “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando”.
     Palavras capazes de revelar as nossas verdadeiras faces: as dos sonhos, as dos desejos, dos lampejos, das lembranças, pois “têm horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe”!
     Guimarães Rosa. Poeta do viver simples, que está próximo do sonhar, do esperançar, no mais íntimo do ser. É isto! “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”. Rosa amava seu povo!
     Querer e respeitar o que dito está, e mesmo assim, atrever-se a querer mais e sentir mais. “Ah, mas a fé nem vê a desordem ao redor...”. Eis que estamos desnudos, podendo, então, expressar o verdadeiro elã que nos evapora. “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
     Agora creio na fala do Professor Ronald: “É a escrita que nos guia”. Ponto final. “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. Uma entusiasmada aprendiz; buscando nos rumos da sensatez, da embriaguez, do não convencional, já que o cotidiano carcomido e ocre oprime, tal como ao mais triste cavalheiro – Dom Quixote – que na vã arte do desejar, busca uma civilização perdida em si mesmo: “tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo”.
     Eis-me aqui, tal qual o belo herói: carcomida pela realidade; mas com o direito de ir além, “felicidade se acha é em horinhas de descuido” – no traço da escrita – a partir de Rosa, pois “é preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e mais amar, depois de ter amado”. Ele, um respeitador do ser e do não ser. “Sorte é isto. Merecer e ter”. Eis a questão!
     Eu é que não perco meu tempo com a vida alheia: “viver para odiar uma pessoa é o mesmo que passar uma vida inteira dedicada à ela”. Prefiro a literatura!
     Eu confabulando a partir de ídolos! Quando escrevi, estava tomada, descubram por quê?
* frases de Guimarães Rosa  

(e)MARANHÃ(d)O
15/01/2014
         O Maranhão tem se tornado notícia constante ultimamente neste nosso “brazilzão”; não pelo brilho das areias quentes de suas dunas estonteantemente maravilhosas. Nem mesmo por suas praias. Não. A notícia ronda desde o sórdido do que acontece ao escalabro da justiça e que vem corroendo o significado do termo. Ao uso da lagosta como alimento das pobres criaturas sujeitadas a administrar aquele caos que reflete a Republiqueta das Bananas.

            Coitadinha da lagosta, de charmosa e requintada em pratos artisticamente elaborados por mestres de cozinha, vem talhada pelo acinte a uma população completamente segregada a miséria e a fome ao longo dos séculos, e obrigada a sorver em goles magistrais o veneno ministrado em doses constantes pela raça das tais ditas pobres criaturas.

Enquanto as pobrezinhas criaturas que administram o lugar saboreiam a deliciosa guloseima, obtida por trâmites legais do tal pregão eletrônico que, dizem – veio para ser transparente; a ralé sobrevive com o mínimo do mínimo, do digno, num lugar onde “quem ganha um salário mínimo é considerado barão”, frase que ouvi.

As pobres criaturinhas emanadas de poder ejaculam benesses aos escolhidos do reino. A ralé. Que ralé? A invisibilidade do reino do “nunca antes neste país”, onde vemos tanto emaranhado de gato e rato se imiscuindo em nocivas uniões. A ralé. Que ralé? A das letras minúsculas e não as das pobres mentes que se esforçam para administrar o lugar com letra maiúscula do “PODER DE FATO E DE DIREITO”.

Reino construído pasme, à custa da própria ralé, que embora moída, remoída, confirma sempre seu voto, que se vê triturada se não ler a cartilha como deve ser lida – como inclusive os ejaculadores que em momento de lucidez teimem em pular fora do balaio de gato e ... Que historieta!

Aqui estou eu, um observador, passivo, inerte. Uma andorinha sozinha que não faz verão, e, no escaldante suor que jorra a terra, eu, para me livrar da perseguição aos que ousam desafiar a soberana corte, me calo, inerte.

Mas.

Eis que vejo à frente, um tipo alto caminhar para o meu lado; passar por mim e languidamente caminhar em direção ao orelhão da esquina... Vem conversando sozinho. Pega o telefone com ânsia e diz: — Eu vou ligar pro Céu! Começa a discar e em seguida trava a conversa: — Se eles me atacam, eles também te atacam; então, morte a eles Senhor!

        Eu fiquei tão curioso em saber qual era o número do Céu; que pena não deu! Ele ligou tão rápido, não deu pra ver! Eu queria tanto pedir a Deus pelo Maranhão!


ANTES DO APARECIMENTO DE ADÃO E EVA
20/11/2013

              Antes do aparecimento de Adão e Eva, o mundo vivia sua época áurea de poder absoluto, completamente nas mãos de deuses e habitado pela estirpe gloriosa dos descendentes. Por todo o lado, poderes sobrenaturais emanados em sintonia com a necessidade. Nada utilizado além do necessário, o que dinamizava aquela harmonia holística.
            O Grande Pai, dosado de extrema condescendência, administrava o reino com habilidosa maestria, própria de mente superior. Sabia oferecer o suficiente para que os entes que ali dominavam, vivessem em paz, exercessem de sua autonomia.
            A liberdade beirava ao que se pode imaginar de um paraíso. Cada um tratando de contribuir para o próprio bem e o do próximo; nunca o desejo fora reclamado, pois todo o bem estava disponível a todos que o requeressem.

            Não existia a mulher do próximo, a intriga, a gula, sovinice, corrupção etc. Tudo de acordo com o isto e o aquilo. Existia a clareza, a certeza, o sagrado. Nada era como a minha mente conturbada, que nestes nossos tempos, vive a questionar, a indagar – o que se pode vislumbrar no poema:

INDAGAÇÃO

Queria saber o que é certo
verdade.
Isto ou aquilo?

Queria não ter dúvidas
indecisões.
Isto? aquilo?

Queria o poder do decidido
sagrado.
Nada de isto ou aquilo

Queria ter a certeza
clareza.
Isto. Aquilo.

            A contradição presente no nosso tempo faz com que eu deseje aquele paraíso do princípio de tudo...


APESAR DE TUDO, VENCE O AMOR?
11/11/2013

Verdadeiro. Um verdadeiro homem que soube perdoar os atos impensados de sua mulher. Hoje vivem a vida saudável de um casal que amadureceu na dor do amor.

A noite entra pela janela juntamente com ele. Chega enlouquecido de desejo. O desejo veste a mulher no vestido com mesmo tecido que presenteara a ele. O mesmo estampado da camisa que ele usualmente desfila ao passear pela rua em passarela. De sua figura se observa em primeira mão o ar sedutor, o conquistador sempre atento em atrair a mulher.

Os dois se atraem, entregues aos calafrios que perpassam o corpo de forma clara e tracejada em cada centímetro da pele. Pele em contato com outra pele em chamas, voraz, insaciável. E a ânsia despertada faz que movimentos de bocas, de mãos, de braços, passeiem desenfreadamente por todo o lado. Os sons e as palavras se embolam e inundam o ambiente do pequeno quarto como bola de neve descendo em crescente êxtase.

No quarto mais ao fundo da casa, os filhos pequenos dormem o sono profundo e restaurador das travessuras do dia. A mãe, mesmo assim, teme que ruídos alcancem os ouvidos que sonham outros sonhos.

Refreado o instinto do prazer por poucos segundos para o certificar do sono tranquilo das crianças, retomam olhares fumegantes que encaram outros olhares incendiadores. E se jogam um no outro com a força do desejo descompensado. Gemem, se entrelaçam, mãos caminham em extensões montanhosas e pelo verbo em total ascensão, pronto, em profusão.

A noite atravessa a madrugada e o canto naquele cômodo continua no auge musical da raça em exercício de sua capacidade animal. Horas passam em minutos e o balé da entrega e entrega e mais entrega apresenta-se em total orgia e divindade.

Saciados, corpos displicentemente largados ao conforto da cama. Roupas em desalinho jogadas pelo chão e o cheiro entorpecente desfaz a consciência de ambos que entram em outras paragens. Cavalgam em belos cavalos selvagens, soltos, livres, nus e dominantes do porte e direção, e atravessam com velocidade as trilhas dos devaneios. Um ruído estridente avança entre sonho e realidade interrompendo a sequência do trajeto.

O portão range na madrugada absorta em tão diversos mundos. O homem atravessa o corredor de forma pesada, carregando suas bagagens. Aproxima a chave com dificuldade de encontrar o local adequado.

No mesmo instante a janela do quarto se abre e ele, nu em pelo carregando suas roupas e sapato foge do local. Mas não sem antes o homem avistá-lo desaparecendo num corte da noite em claridade desencadeada pela luz do quarto.

O que era a chegada para o sossegado descanso, transforma-se em pesadelo, acordando vizinhos e ao amanhecer, as manchetes já estão expostas em primeira página de jornais sensacionalistas: MARIDO CHEGA DE VIAGEM E DESCOBRE AMANTE EM FUGA PELA JANELA.

Ninguém é poupado da tragédia consequente dos delírios em que se viu envolvida a mulher. Filhos e marido, a própria mulher. A convivência familiar e tudo o mais destruídos pela desvairada estrada do desejo irracional.


Tempo e amor são responsáveis pelo fechamento de feridas profundas, mas que apesar do perdão, ainda eliminam sinais infecciosos nos cantos do coração por toda a vida do homem machista. A vida precisa continuar e quem comanda após os desastres sempre é a chama misericordiosa do amor, que transpõe todas as barreiras.


ENCRUZILHADA
22/10/2013

   Desde pequena diz ter sofrido bulling, até que revela em confissão mais tarde, já adulta, com sombras acompanhantes de insegurança e vitimização.

   Confessa que aqueles acontecimentos lhe marcaram a vida. Vida que sentia fracassada, nada conseguindo seguir, sempre à mercê - paralisada.

   Paralisada. 

   Quando em pequena, nas brincadeiras dos irmãos que floreavam cada vez mais o anedotário do acontecimento de seu nascimento, e lhe diziam que o pai encontrou-a dentro de um caixote de madeira, desses de feira livre, onde é colocado o produto que se vai vender no mercado. Encontrou o caixote bem à beira de uma roda de caminhão, à beira de uma das estradas que pertencem à Bahia. 

   Estrada que na vida vem traçando aos trancos e barrancos. Barrancos cruéis, às vezes inomináveis... O apelido Baiana diziam vinha daquela época vindoura dos primeiros tempos. Criança sabe ser cruel de forma gratuita, sem pensar em consequências!

   Marcas.

   Cicatrizes da infância que na vida adulta foram deixando sequelas. Sentimento de estima diminuído acrescentando pitadas de descrença na capacidade de ser alguém que mereça o respeito de todos. E a construção caduca vai se fazendo pelos tempos e é tal a dimensão da angústia  que corrói a real condição, prevalecendo a visão opaca, míope, do ser menos do que é.

   Vítima. 

   Confessa que o acontecimento lhe marca a vida. Vida sentida fracassada, sem conseguir seguir em frente, paralisada. Todos eram filhos do mesmo pai e da mesma mãe... mas o que fazer para crer nessa verdade que não era dita pelos irmãos. Nas brincadeiras de crianças era a filha bastarda, encontrada entre rodas de caminhão, nas entranhas da Bahia.

   Custa, custa muito para descobrir-se verdadeiramente quem é. Às custas de muito sofrimento, muitas perdas, muita reza e fé para finalmente descobrir eureka! que apenas ela era a única responsável por fazer-se uma pessoa digna de respeito; primeiro por si própria, depois o respeito social. 

   Uma pedra burilada no sofrimento que dá a volta por cima. Finalmente o brilho que se mantinha escondido, clareia o destino dali para a frente, injetando-lhe forças para enfrentar com unhas e dentes o espaço que lhe cabe naquele latifúndio!

CACHORRADA COM FRASES ALHEIAS

03/12/2013

— Puxa, mas que cachorro aquele, hein?

— Qual? Aquele bêbado e seu cão que na noite escura caminham às sonsas pisando em poças d’água?

— Não, estes não. Estes são tão perdidos que pensam estar pisando na lua refletida na poça.

— Então de quem está falando? Do cachorro que há em você ou em mim, com seus lados contraditórios; o do bem e o do mal – os quais vivem brigando para ver qual vence o jogo?

— Você só pode estar me gozando, não é? O cachorro que há em mim é puro do bem; é como o cachorro quente, que me alimenta sem morder.

— Então, abra logo os dentes e me diga que cachorro é este de quem você fala? Por acaso é cachorro de rua, maltrapilho, que se recebe amor, dá em troca?

— Você está louco? Desde quando o cachorro homem não te morderá... Principalmente se lhe fizer favores?

— Bom, pode-se dizer que esta é a diferença fundamental entre os verdadeiros cachorros e os homens.

— Quem disse que cães também não mordem? Eles amam seus donos, mas não os inimigos de seu amigo – portanto, mordidas neles. São bem diferentes dos homens que incapazes de sentir o amor em plena pureza, saem por aí a destilar ódio e amor na convivência com o outro.

— Cara, cansei de sua ladainha, me diga logo de uma vez, de que cachorro está falando?

— Falo do meu companheiro fiel, aquele cachorro que me acompanha ao descanso tranquilo no alto da colina e me permite pensar que aquelas horas de lazer são como eu estivesse num paraíso; sem sentir tédio, apenas a paz serena.

— Você deve estar sonhando, delirando. Cuidado, senão daqui a pouco estará aos latidos em noites de luar!

— Você não entende nada de amizade entre o cão e seu dono!


OBS: frases utilizadas de Laurence J. Peter, provérbio índio americano, M.M. Soriano, Mark Twain, Milan Kundera e Sigmund Freud.

ENCONTRO NA INTERNET   
29/10/2013

   Chego ao lugar que marcamos pela internet. Acredito que seus traços sejam mesmo os descritos por ele no momento de nossa conversa.

   Parece ser um tipo interessante no modo como escreve. Dá ares de romântico, esmiúça a gente lá no fundo do peito, querendo conhecer sentimentos e emoções. Isso me parece diferenciado... Será esperar demais?

   Nossa! Que noite estupenda! A lua enamorada, brilhante, no auge da beleza. Noite estrelada!

   Tão absorta estou em contemplação que ele chega sorrateiro e não me apercebo da presença. Chega manso, jeito firme. Másculo e com uma beleza exageradamente exposta que diz mais que a descrição feita.

   Acordo! E de supetão nos apresentamos, indo direto ao diálogo que a cada momento me deixa intrigada para as novidades que se seguem.

   Entra conversa, sai conversa vamos nos desnovelando e tantas são as semelhanças que o desconhecido torna-se alguém sem segredos. Nos tornamos íntimos, novos encontros.

   Encontros e desencontros. Eis o lema que tal relacionamento destrinchou. Desde os tempos de namoro, mesmo entrosados, bastava algum disse me disse para tudo descambar para discussões e o namoro acabar para sempre.

   Coração e corpo reagem ao saber que ele está por perto! Organismo é movido a sobressaltos. Basta um novo encontro, se entregam com força àquele sentimento que os consome.

   E vão. Terminam uma, duas, três, cinco mil vezes e novamente juntos, encontros amorosos, discussão, disse me disse, término para sempre!

EXPERIÊNCIA COM GATOS
17/11/2013

Me encontro numa situação inusitada, a contar uma história sobre gato a pedido de meu professor. O problema é que gato nunca foi meu forte e as minhas experiências em nada trouxeram de agradável à minha pequena existência. Muitos falam de sua docilidade, da manha, do gostar de carinho, da simples presença que a si se basta; a mim nada disso se apresentou.

         Do que me lembro da remota infância, recordo que em visita a uma prima durante as férias, na casa havia uma gata prenhe que “deu à luz” a quatro gatinhos lindos (mesmo eu não gostando do bichano não é motivo para eu não dizer a verdade!). Eram lindos os tais gatinhos! Minha prima disse que deles não podia cuidar, eram muitas bocas para alimentar. Pediu, então, que eu e os meninos, Odúlia e Jorge, fôssemos o mais longe de casa e os deixasse por lá. Teria que ser bem longe, pois senão poderiam encontrar o caminho de volta. Enquanto explicava, colocou os gatinhos dentro de uma sacola plástica e depositou-a em minhas mãos.

         Andamos bons quarteirões e nos afastamos bastante de casa. Íamos beirando um córrego raso, não tão mal cheiroso como os de hoje em dia, mas desses córregos de periferia onde as pessoas não cuidam por não entenderem seu, lixo por todo o lado. Sinto ter que dizer a verdade! Algo de mau atravessou a minha mente e tencionei lança-los ao córrego. Foi só um breve lapso de pensamentos que marejaram por pouco tempo. Eu era a mais velha do grupo, com onze anos, e achava que comandava a trupe que seguia para tão esquisita missão.

         Aquiescida a vontade maldosa inicial, descemos um trecho até próximo ao córrego e deixamos os filhotes bem à beira da margem. Quanta maldade! Animaizinhos indefesos e soltos no mundo!

         Voltamos a casa fazendo peripécias pelo caminho. A cidade satélite de Taquatinga estava apenas começando a ser povoada e os caminhos eram seguros e tranquilos. Chegando, contamos aonde os deixamos e minha prima começou a troçar de nós:

— Agora eu quero ver o que vai acontecer, pois os gatos têm sete vidas e vão infernizar a de vocês para sempre. E ainda são quatro. Após essa mandinga de minha prima, não consegui tirar da cabeça a maldade que fizera, e teria de pagar toda a minha existência. Deve ser por isso que não sou fã de gato, consciência pesada!

          A adolescência dissipou a paranoia de minha infância e segui a procura de outros gatos. Encontrei um que nominei “gatão” e em nossos momentos amorosos eu repetia “meu gatão”. Ele ficava todo empertigado, com olhar brilhoso e radiante, próprio de um bichano, mas do tipo humano.  E assim ele tornou-se o bichano-homem por quem aceitei ronronar.

          O tempo destrói as introduções amorosas e mais tarde, o gatão deixou de sê-lo; agora preferindo o descanso cômodo de um sofá a me fazer graça sedutora!


GAROTA   
24/09/2013

   Tudo começa no flerte ingênuo de uma garota que mais vive a sonhar ilusões. Ele por seu lado resolve corresponder àquela imponderada obsessão de olhares que ameaçam, intimidam e conseguem tirá-lo do prumo rígido em que se confere. 

   O verde-loiro a cativa em sua meiguice e com jeito tímido produz mais e mais ilusões nos translúcidos olhares e, os desejos vão se tornando transparentes à garota, que espera ser isto o amor em transbordamento. Palavra que aglutina o impensado, a surpresa, a voracidade pelo novo. O sair da rasa cotidianidade às raias do que surgir. O desconhecido, este sim, sempre fascina.

   É a ânsia do encontro, do sentir o aperto no peito enquanto o outro se aproxima, é aceleração das batidas à sofreguidão do olhar. É a consumação do abraço, do beijo, do contato para o completo êxtase do sentir-se apaixonada.

   Mas.

Na hora h
um apito
um pito
no to do mundo
um agito
um grito
AAAAAAAAAAAAAA...

   Eis que acorda assustada com o sonho de amor e tragédia. Entre gritos e encantos, sente no peito um quê desregrado. Gostaria de abrir-se em jasmim e exalar a ternura que sente. Mas a criação regada a conceitos cristãos a massacra: tudo é pecado, até amar sem permissão. Nem em sonho e nem na realidade consegue soltar as amarras que prendem séculos e séculos de ensinamentos punitivos em nome de Deus. E o amor se torna castrado!

   Só relembra o filósofo Sófocles: "Não tenho senão desprezo por um mortal que se acalenta em esperanças vãs." Mas ela se quer vã. Fecha sistematicamente os olhos e se abandona naquele mundo em que não quer sair. Quer atravessar... a época de acalentar sonhos. A isto se permite!

   Felicidade é andar descalço na areia morna, na beira da praia, avistar aquele marzão em sua imensidão. Contemplar as ondas indo e vindo e junto com elas, sentir-se aliviada. Nem em sonhos se torna ao antigo! Um novo mundo se forma em completa liberalidade inconsciente. 



ANDANÇAS NA ESTRADA DA VIDA

Louro vai para a casa da irmã Laura, ela idosa tendo de recebê-lo, pois a família não quer mais saber de suas bebedeiras e falta e responsabilidade. Louro não consegue manter-se nos padrões convencionais exigidos pela irmã, já acostumada a lida simples e tranquila de sua vidinha de viúva, com filhos casados que muito de vez em quando aparecem.

        Decide cair no mundo, ao Deus dará. Sai de casa sem olhar para trás, sem nem despedir da irmã e dos poucos amigos que frequentam a casa. Alguns trocados no bolso, a roupa do corpo, começa a mendigar. Homem bonito, alto, louro de olhos claros, ares europeus.

         Vive apenas o agora, a hora que passa, o dia, noite, meses, anos e caminha pelas estradas sem fim. Na lida de alcançar algum lugar.

A estrada está ardendo de tão quente.  Percebe a penumbra de ar subindo do asfalto e a penetrar-lhe a pele do corpo. Os sapatos gastos não conseguem amenizar a quentura. Encontra pequena mina d’água límpida que forma pequeno lago e se refresca na água fria.

          A tarde caindo, atravessa uns montes. Subida e mais subida até chegar lá no alto e dar com uma linda capela dos tempos antigos. Lê a placa logo à frente – SERRA DA PIEDADE. Quanto rochedo a rodear-lhe, a natureza em volta com seu aspecto rústico, apenas a construção a dar-lhe ar de presença humana e solidão. Não vê ninguém, nem uma alma. Tinha esperança de encontrar mais. A fome começa a arrebatar-lhe o estômago que ronca em desespero.

         Desce e continua com passos largos, gastos e cansados. Chega num trevo e lê a placa indicativa – CAETÉ. A noite ameaça com a escuridão.  A cidadezinha aparece iluminada pelas luzes dos postes. Pessoas chegam em casa após o trabalho e a praça já inicia o vai e vem de jovens com suas risadas, o esconde-esconde da garotada, ar de vida interiorana perpetrando os arredores.

Busca um pedaço da cidade com moradias e vai batendo de porta em porta pedindo por comida. Até que uma senhora prontifica-se a arranjar-lhe sobras. Come com avidez a comida na lata de doces e bebe a água no copo descartável.

Saciado, deixa os vasilhames ao lado do portão. Procura um canto para o sono que dá lampejos de querer assomar-lhe corpo e alma. Quer sair de si a procura do leito necessário ao esforço do dia. A igreja se destaca na paisagem, com imponência dos recortes barrocos a enfeitar a fachada. Arruma um canto adequado para o breve sono de mendigo, mas eis que chega o vigário atento à comunidade que avança para dentro da igreja e ao que se passa próximo. Dirige a palavra ao homem:

— Nada de se arranjar por aqui, trate de procurar outro lugar!

Encontra uma habitação com larga marquise e ali se instala com seus trapos. Entrega-se ao sono, aos sonhos que lhe são permitidos. Encontra a família feliz, os filhos pedem às crianças que beijem e abracem o avô. Recebe os abraços calorosos passando horas agradáveis a conhecer as novidades dos parentes. Entre risos e soluços caminha no remanso leve e de repente acorda assombrado, com um sujeito a chutar-lhe exigindo que se retire do local, pois vai abrir as portas e não quer saber de mendigos por perto.

Junta os trecos de forma ávida e sai pelo entroncamento da cidade. A manhã límpida, céu claro sem resquícios de nuvens. Os veículos e caminhões passam por ele com velocidade atroz. Pouco se implica com o caminhar do dia.

Passa próximo a um posto de gasolina, sedento. Encontra uma mulher de beira de estrada, vestida com extravagância, unhas exageradamente compridas, sujas, cabelos soltos e desarranjados, com bolsinha a tiracolo.

Conversam ligeiramente coisas sem importância e diz:

— Vamos dar uma trepada?

Ela olha para ele de soslaio e sem demonstrar qualquer surpresa e nem dar tempo a pensamentos, responde:

— Hummm! Paga meu almoço?

Após ter matado a fome e a vontade de comer, Louro segue a estrada.


A FELICIDADE NUMA SAPATILHA DE CETIM VERMELHO

A sapatilha de cetim vermelho vivo e brilhante, salpicada de desenhos com vidrilhos e lantejoulas multicoloridas está nas mãos da menina de seis anos, que olha incrédula a beleza do artefato. Nunca pusera nas mãos objeto tão cobiçado e agora fascinada por caber-lhe na medida. Sente-se a própria gata borralheira que se transforma na Cinderela. Maravilhada pelo sapatinho.

Com a mãe foi em casa de amigos. Durante a conversa dos adultos encontra tempo para vasculhar o ambiente desconhecido e interessante. Cheio de novidades, brinquedos de todas as cores e tipos, espaços com móveis de gosto, não a simplicidade dos de sua casa. Entra cômodo sai cômodo, o olhar esmiúça cada detalhe, cada canto; adulta é capaz de lembrar a espaçosa habitação.

A anfitriã serve o café da tarde com mesa farta. Quitutes saborosos. Nada ali a atrai, seu deslumbramento se fixa na pequena sapatilha de cetim vermelho. Insistem para que pare um pouco e tome o café, retira um biscoito e sai comendo satisfeita. Não tem tempo a perder. Aquele paraíso em pouco tempo se dissolverá.

Dito e feito. Ouve o chamado da mãe. Faz pequena birra querendo adiar o momento, a mãe impõe com firmeza e não há como não obedecer. Despedem-se do pessoal e seguem a pé até em casa. O lugar dista nove a dez quarteirões. Chegando em casa se coloca à vontade.

A mãe parte para os afazeres e ela brinca com o brinquedo especial. Trouxe o sapato escondido dentro da roupa. Durante o trajeto com olhinho travesso, imagina o significado do que está posto diante, às escondidas, situações lúdicas do afã de brincar. Será a cigana, colocará a sapatilha e dançará ao som de músicas alegres, em rodopios malabares, envoltos de risada infantil.

Distrai-se tanto no mundo inventado não vê a presença da mãe se adiantando e, em seguida, modificando a expressão facial instantaneamente. É a madrasta, olhar de raiva, dentes cerrados, sobrancelhas exageradamente arqueadas a lhe apertar um dos braços com força. Marcas de unhas enormes a furar-lhe a pele, a reprimenda vem a seguir. Fala ríspida e com voz feroz de leoa: — Onde foi que você arranjou isto, menina? Toma o calçado e sacode bem à frente de seu nariz quase esfregando.

Apavorada não consegue se livrar da mãe. Conta com a voz em fio que trouxera da casa visitada. A mãe crava as unhas no braço: — Coisas dos outros não se mexe; nem que seja uma agulha no palheiro, se não te pertence, não pode pegar sem autorização.

A mãe ainda a lhe apertar o braço. Ela cabisbaixa e envergonhada pela falta, carrega o utensílio e retornam a casa da amiga da mãe. Recepcionada pela dona da casa, a mãe lhe exige a entrega do sapatinho com pedido de desculpas. A mulher diz criança é assim mesmo, não se preocupe tanto e já que gostou lhe dá de presente. Desta vez con-sentimento.

A lição para o resto da vida se repete: quando a filha pequena esconde pequeninos cabides no fundo do bolso do vestido. Retornam à loja e exige da menina o pedido de desculpas ao devolver o bem retirado. “Não se pode pegar coisas dos outros, nem que seja uma agulha no palheiro”.

Vai para casa saltitante, risos soltos, acaricia o cristal nas mãos e imagina as próximas aventuras do faz-de-conta. Apenas uma sapatilha. A outra fora destruída pelo bichano da casa.

PACATO CIDADÃO   
03/09/2013

   Ele seguia o caminho cheio de pedregulhos, aos tropeços. Nem isso conseguia transformar aquela fisionomia distante, gélida. Apenas caminhava sem sentir a imensidão, tanto do céu em seu azul envolto de manchas brancas, quanto da terra que parecia rodar à sua volta.

   Pisava de forma insegura, sem equilíbrio e nem assim mudava o aspecto cadavérico em que se encontrava. Muito tempo sem comer. Nem um sorriso, um leve olhar de surpresa ao que no caminho se vislumbrava.

   Seguia, descalço, pé grosseiro de andanças sem fronteiras dóceis. Maltrapilho, sujo, faminto, a enxergar apenas a estrada a frente, em transe. Em sua solidão ia em busca da liberdade que ousou sem pensar, sem a pressa do relógio, longe de pessoas a lhe exigir posições, às regras de uma sociedade que deixara para trás.

   Não, não quer mais ser constrangido a fazer o que não quer. Não vê alternativas, nem se interessa por esposa e filhos e trabalho deixados para trás.

   Quer ser apenas um cavalo solto, sem rédeas a lhe guiar; olha para a frente e segue um caminho, e apenas segue, sem vínculos a nada e ninguém.

   A casa acordou normalmente. Manfredo aprontou-se para o trabalho seguindo a rotina de sempre e sob a voz autoritária da mulher a lhe exigir pressa, rapidez e decisão. O café rotineiro e sem graça esperava à mesa posta em desmazelo. Antes do trabalho deixava as crianças na escola e buscava-as no horário de almoço. Todos os dias o mesmo trajeto, as mesmas ladainhas, as mesmas conversas lamacentas da mulher, a reclamar, reclamar, reclamar. Aquelas crianças barulhentas, sem regras e limites a rodear a mesa. Restos de comida pelo chão transformavam a cozinha em sujeira e desleixo.

   Manfredo sai de casa com seu uniforme diário, camisa e calça sociais, cabelos à brilhantina, homem sério e comprometido. Carrega consigo a pasta preta já gasta pelo tempo de uso. Chama as crianças, carrega merendeiras  e mochilas. Despede-se da mulher com o usual beijo de despedida, já sem o hálito do desejo. 

   Não compareceu ao trabalho. É o responsável pelos cálculos do serviço contábil da empresa. Não buscou as crianças na escola. A diretora entra em contato com a mãe e a voz rouca da mulher atende sem vontade e de forma abrutalhada. A diretora comunicou o ocorrido, informa que as crianças ainda estão lá a espera do responsável há mais de hora. 

   Manfredo não apareceu no trabalho, não foi buscar as crianças na escola, não apareceu para o almoço.

   Homem responsável Manfredo. Disciplinado, controlado, segue à risca todas as regras: tanto as de casa, como marido dedicado à família, à esposa, aos filhos; quanto as profissionais. Empregado exemplar, nunca dá dor de cabeça aos patrões. Observador do horário, com uma pontualidade fiel aos seus princípios e respeitador da hierarquia vigente. Nunca se opõe a nenhuma autoridade, sempre cabisbaixo demonstrando respeito aos superiores.

   Manfredo não foi visto por ninguém. A família apelou às autoridades competentes. Sumiu misteriosamente, nunca mais se ouviu falar de Manfredo ou se teve notícias de seu paradeiro.



Liberdade é uma calça azul e desbotada. Será?
10/09/2013

            Beirava já os quarenta anos e ainda não tinha se encontrado. Não sabia sequer o que queria da vida; que profissão escolher; se queria ou não casar-se; ia levando a vida naquela subserviência à mãe, mulher de grande força e exigência em todas as áreas quando o assunto era a educação do filho. Exagerou na busca de poupá-lo dos sofrimentos pelos quais ia passando da infância à adolescência, nem percebendo que criara asas a um espírito desinteressado das buscas, das conquistas, da ambição necessária.

            Agora lá está “NEMNEM”, gigante, um adulto inábil, sem a maldade exigida dos tempos de hoje, apenas um menino grande de 40 anos. Uma adulta criança que consome tudo que se bota em casa. Não sobra nenhuma guloseima disponível para outros fregueses. É a parte da família que se expressa em custos.

            NEM estuda... NEM trabalha. Vive desempregado e sob a tutela maternal que se alterna entre os ralhos e a aceitação do tipo que criara. Quando lhe perguntam sobre a sua situação sempre cita o jornalista da famosa rede de TV que diz: “conheço muitos homens interessantes que já passam dos quarenta e ainda não sabem o que querem da vida.” Essa peleja dia a dia dá a noção do que uma educação desmedida por parte da mãe é capaz de fazer. Podendo dar margem aos vagabundos, aos delinquentes, conforme consta da Receita para criar um delinquente, artigo lido no Jornal Ká entre Nós:

" 1 - Comece na infância a dar ao seu filho o que ele quiser. Assim, quando crescer, ele acreditará que o mundo tem obrigação de lhe dar tudo o que ele deseja.

2 - Quando ele disser nomes feios, ache graça. Isso o fará considerar-se interessante.

3 - Nunca lhe dê qualquer orientação religiosa. Espere que chegue aos 21 anos, e "decida por si mesmo".

4 - Apanhe tudo o que ele deixar jogado: livros, sapatos, roupas. Faça tudo para ele, para que aprenda a jogar sobre os outros toda a responsabilidade.

5 - Discuta com frequência na presença dele. Assim não ficará muito chocado quando o lar se desfizer mais tarde.

6 - Dê-lhe todo o dinheiro que ele quiser.

7 - Satisfaça todos os seus desejos de comida, bebida e conforto. Negar pode acarretar frustrações prejudiciais.

8 - Tome partido dele contra vizinhos, professores, policiais. (Todos têm má vontade para com seu filho).

9 - Quando ele se meter em alguma encrenca séria, dê esta desculpa "Nunca consegui dominá-lo"

10 - Prepare-se para uma vida de desgosto. É o seu merecido destino." 

            Eis que a mãe adoece gravemente e parte desta vida para melhor. “NEM NEM” passa os primeiros dias do luto ainda atordoado, revoltado com o que a vida lhe reservou: — Não, isto não está acontecendo comigo, minha mãe não morreu, está apenas no seu descanso e vai voltar. Porque Deus fez isso comigo, por quê? Que culpa eu tenho? Como vou caminhar sem aquela que sempre me orienta e me guia? E chegam os outros dias, sem reação, se consumindo à tristeza pela constatação de que aquela realidade está aberta, em feridas.

            O dinheiro deixado pela mãe se esvaindo à sua comilança desregrada. A casa encontra-se de pernas pro ar, restos de comida pelo chão, lambança a se misturar entre sucos, sorvetes, cremes etc. Ainda não deu conta de sair de casa. Passado mês e ainda o corpo a não querer obedecer para a necessidade de levantar e executar as tarefas básicas à sua sobrevivência.

            Vão chegando contas, débitos a serem pagos na data de vencimento; a eles não interessa o que se passa com ninguém... Contas tens que pagar.  Ele começa forçosamente a abrir os olhos e enxergar a sua sina. Perdeu sua principal referência, o corte do cordão umbilical rompeu-se de forma trágica, de repente, e, não há onde possa se firmar, navega em pensamentos dando voltas sem chegar a lugar algum.
            Somente quando chega o momento crítico onde a necessidade fala mais alto, “NEMNEM” veste sua calça jeans desbotada e descobre que já não há outra saída.

           A calça pode impressionar, de marca, comprada com o suor do rosto da mãe; mas em termos de qualificação profissional, nenhuma marca, nenhum movimento em relação ao futuro foi construído. Não quer retornar à velha e cansativa função de trabalho, o de ajudante de qualquer coisa que renda um trocado, os velhos biscates – ganhos diários para gastos diários sem sobra de dinheiro.


O tempo urge e a vida não espera por ninguém... Por isso CARPE DIEM –aproveita  o dia!


A CONQUISTA SOB A ÓTICA DO GÊNERO
31/08/2013

Caminham pela rua na noite sombria e fria. São Paulo aparenta a sua cotidianidade das noites enevoadas, tendo o chuvisco dado uma pausa acolhedora aos passos. Ela e ele vão lado a lado, conversas triviais de conhecidos até onde o destino reserva para a noite. Figuram entre as pessoas maduras, trinta a quarenta anos, solteiros, já bem definidos na vida financeira.

            Vestidos a caráter para a ocasião, agasalhados, vão observando a pintura que vai se desfazendo a cada passo. A cada um brota o expressar de seus pensamentos:

            — “Como a noite está fria! Sinto os ossos congelarem debaixo desta roupa. Eu deveria ter me agasalhado melhor. Espero que não chova. O chão está tão molhado que as poças de água refletem o brilho da noite. Como o ar está limpo! A cidade e a rua, além de sua escuridão característica, trazem a beleza na luz dos postes iluminados, e parece que aqueles mendigos, alguns de aparência jovem ainda, jeito cambaleante, a custa de bebidas ou outras drogas, não ameaçam chegar perto, mas sinto a figura ameaçadora que imprimem quando nos veem passando.”

            — “A casa de show fica logo ali, apenas mais quatro quarteirões e estaremos lá. Este chão todo molhado vai sujar meu sapato, vai acabar respingando na minha calça, preciso ter cuidado no caminhar e prestar atenção às poças d’água. A noite está tranquila, fresca e agradável, eu gosto desse clima, nada de calor. Nem precisei me agasalhar demasiado. Esses mendigos no caminho enchem a paciência de qualquer um com seus maneirismos de pedintes. Eles que se atrevam a chegar mais perto!”

            — “Vou aproveitar que estamos caminhando lado a lado e roçar minhas mãos em sua pele. Quero sentir desde agora a sensação. Vou fazer isso sem que perceba a minha intenção, discretamente.”

— “Nossa, me desequilibrei na última andada, e senti o roçar de suas mãos nas minhas, preciso ter mais cuidado ao andar e evitar, pois muitas pessoas não gostam que isso aconteça.”

            Chegam ao destino, um dos badalados bares da cidade que oferece ótimos shows, culinária excelente e regada à bebida, à preferência do freguês, eles podem beber tranquilos já que não estão presos à necessidade do automóvel. Sentam-se à mesa paga por clientes exclusivos, que gostam do tipo de apresentação que se inicia.

            O garçom se aproxima de forma educada e pergunta sobre o pedido:

            — Com licença, aqui está o cardápio. Vocês vão querer alguma coisa?

            — Por favor, eu quero um Campari duplo com bastante gelo. Mas um duplo daqueles bem caprichados, hein!

            — Você me traz esta cerveja; apontando com o dedo; e este tira-gosto aqui. Está bom para você?

            Assente com a cabeça e iniciam a conversa ao som estridente da aparelhagem de som que ultrapassa o ritmo que interessa. Põem toda a verborreia em prática buscando atingir seu objetivo: o prazer que a companhia oferece. E o diálogo vai se tornando interessante, com pontos convergentes, outras vezes não, numa animação a ampliar-se com o consumo das bebidas. São sorrisos, risos largos, alegria e descontração num cenário rico em detalhes coloridos e luzes e sombras quando desejadas.

            — “A conversa está ótima, com um papo muito agradável. Acho que será uma noite deliciosa ao embalo da musicalidade. Gostei muito do lugar.”

            — “Está no papo. Acho que conquistei o que eu quero. Com certeza a noite promete ser de sorte.”

            Finalmente, conversa vai, conversa vem, cada um considerando ter atingido o pretendido; de forma atrevida se expõe, pois basta de controle exacerbado.

            — “Será que posso me atrever e falar o que eu penso. Tenho que arriscar, é agora ou nunca.” — Estou a fim de sair com você hoje. Você me atrai e como não temos nada que nos impeça que tal darmos uma esticada a algum lugar apropriado?

            — “Puxa, que susto! Preciso pensar em algo.” — Bom, já que você quer sair comigo primeiro me conquiste, aí quem sabe, o tempo dirá o que pode acontecer. Por enquanto fiquemos com a nossa noite como está, muito agradável.

            A conversa continua... Os dois já não são mais os mesmos!

OBS.: Descubra qual fala é de quem – do homem, da mulher – vamos ver se é boa (bom) em descobertas, adivinha?





MUTAÇÃO
19/08/2013

Sujeito arretado está ali. Baiano porreta de bom, gentil, com um ar submisso às ordens do seu superior. Competente no trabalho e sempre trazendo, como é de praxe entre os brasileiros, aquele jeitinho de conseguir fechar as contas.

            Usufrui o poder com liberalidade e imponência superior, mas um nível abaixo ao almirante mor, para que este saiba que não almeja o seu lugar; muito entrementes gosta de sua posição, responsável pelas contas. Zeloso de suas obrigações está sempre a postos para prestar serviço no que for necessário, inclusive ciceronear visitantes em sua terra natal. Faz de um tudo para agradar aqueles que estão sob sua responsabilidade.

            Como é muito branco; como se sabe, os baianos, em sua maioria têm aquela cor de cravo e canela ou a negritude; ele, branco que nem camarão, vermelho até, e se pega sol então, Virgem Maria; por isso prefere ficar longe desse tipo de situação, preferindo as altas temperaturas do ar condicionado na sala de trabalho. Poderíamos jurar estar em terras europeias de tão congelante. Bom, para quem conhece as altas temperaturas locais dirá que é compreensível.

            Eis que o chefe chega já quebrando a rotina, tirando o sujeito do sério, e isso acontece sempre que aparecem as visitas. O chefe aproveita para tornar o clima mais ameno e começam as brincadeiras. E lá vai! O chefe diz em tom irônico:

— Hoje vamos comer um vermelho, o que você acha? Dirige a pergunta ao visitante que ingenuamente cai como um patinho nas artimanhas que iniciam, e confirma que um vermelho cai bem, pois é um peixe delicioso. E começam a falar do tal peixe, com será, se assado ou refogado etc. E as perguntas começam a beirar a gozação: qual parte do vermelho o convidado prefere; se gosta mais de trás ou da cabeça e assim vai. Enquanto isso o sujeito, tímido do jeito que é, vai mudando de cor... branca, amarelo, avermelhado de raiva, mas se contém...

O chefe continua com sorriso maroto: — Depois na sobremesa podemos comer manga rosa que está no tempo. Você gosta de manga rosa? Do que tem a resposta positiva do convidado sempre receptivo às deliciosas guloseimas baianas. A mudança de cor do sujeito se amplia...

— Antes do vermelho a gente ainda pode saborear um delicioso camarão frito, que tal? Como é que você gosta do camarão? Aí o baiano não se contém mais...


            Aquele baiano arretado de tranquilo desaparece, se transforma; fica com a face completamente avermelhada; se embrutece com as brincadeiras que continuam cada vez mais jocosas; perde as estribeiras com as indiretas do patrão e os visitantes colaborando sem maldade com a intenção. Todas as brincadeiras que sugerem sua cor, o faz enrubescer, torna-se estouvado, ríspido, perde o controle. Por mais que tente ficar sério, descontrola-se, arranja um jeito de fingir, não dar ouvidos ao que se passa ao seu redor, mas quanto mais se enrosca, mais o chefe encontra condição de soltar novas piadas que infiram naquela situação. E eis que surge um sujeito em chamas de tão vermelho, completamente sem controle de si...

CONVERSA FIADA
06/08/2013

Os amigos sempre se encontravam naquele boteco incrementado à bossa nova, lembrança dos tempos idos, num estilo mais burguês, mas com a linda paisagem ainda a se esboçar à frente tal e qual naquela época... Só que as águas de hoje andam poluídas e maltratadas pelo poder público ineficiente no planejamento das cidades. O Rio de Janeiro poderia estar mais lindo não fossem as várias mazelas dos tempos contemporâneos.

Conversa vai, conversa vem, um dos amigos, metido ao intelectualismo e às reflexões existenciais, entre um gole e outro daquela cervejinha geladíssima, solta que andou lendo um artigo que colocava a importância do BOM DIA, SOFRIMENTO!

— É isso mesmo camaradas, não me olhem com esse jeito de que “não estamos acreditando no que estamos ouvindo da boca do Tião”. Estou a falar sério enquanto vocês vêm com essas risadinhas irônicas, próprias de sujeitos como vocês, que vivem a vida sem pensar no que mais os aflige.

— “Tchê!” e o que mais tu pensas de nós? Tu queres explicar melhor estas tuas expressões sobre o que é verdade. Que negócio é este de querer jogar sofrimento em meio às nossas conversas animadas aqui no boteco. Tu estás bem de saúde?

— Gente, olha aqui! Eu só aproveitei a "deixa" de tudo estar numa calmaria para explicar o artigo que li, que no geral diz que devemos trazer o sofrimento para bem perto da gente e vivenciá-lo, pois a fuga não irá resolver as coisas que andam pendentes em nossa vida existencial. Todos nós sofremos uma angústia e no geral, fugimos como o patinho feio, deixando tudo para ou quando der para resolver e se der. Vamos só acumulando problemas em cima de problemas. Vão me dizer que vocês não têm nenhum sofrimento, algo que os corroa e que os impeça de prosseguir em paz?

— Cê tá é pirando mesmo, uai!... Donde já se viu a gente ter sofrimento, isso é coisa desses estudos que cê teima em continuar. Olha que de tanto estudar cê vai ficar meio “cabrunhoso” aqui pra nós, e não vamos entender o porquê desse trem de filosofia na hora da nossa prosa.

— Imaginem... Nós, tranquilos, sem preocupações nesta praia maravilhosa da nossa cidade e você vêm nos molestar com essas suas elucubrações. Calma, não se estresse, relaxe, cara, você está na cidade maravilhosa, que é isso, peixe!

— Não tem jeito com vocês mesmo, hein! Só pensam no prazer momentâneo, nada de discussões sérias. Desisto! Vamos aos goles livres de filosofia...

— Tchê! Quando eu estou triste, pego é meu chimarrão e mais nada me interessa nesta vida. Vou bebendo cada gole e é nisso que sinto o meu prazer. Sofrimento chispa para longe de mim, tchê!

— Tô com o Valdo, nós mineirinhos não temos tempo ruim. Pegamos uma viola, cantamos umas modas da roça, umas cachacinhas maneiras da terra, e vamos pescar com os amigos pra tristeza jogar pra longe. Nada de ficar perguntando “On cô tô? On cô vô?”

— Caramba! Concordo com os dois, Tião. Eu também quero é sossego, praia, malandragem carioca na área, nada de exageros, vamos levar a vida mais tranquila, peixe!


— É, vamos brindar amigos, deixa o sofrimento para outra hora. Um brinde ao Rio de Janeiro, ao carnaval, à malandragem, ao chimarrão do Valdo, as violas do mineirim porreta, aqui do meu lado... Salve também a minha Lisboa querida!


BARULHO INFERNAL 
23/01/2013

   Um barulho irritante teimava em não sair da minha cabeça. Apesar de estar naquele lugar paradisíaco, o meu sonho mais sonhado,um zumbido insistia se fazer presente.

  Era como se fosse o som de uma mosca zumbindo no ouvido vinte e quatro horas sem parar. Isto nunca tinha me acontecido, mas tal zumbido estava se tornando conhecido e merecedor de minha atenção.

   Por mais que me esforçasse, não conseguia deixar de escutá-lo; existia além de mim, eu não tinha controle sobre ele. Acordava, lá estava o zumbido; eu ia dormir, dormia com ele azucrinando os meus pobres ouvidos... sem parar. 

   Seria um sintoma Kafkiano? A situação já estava beirando a tal nível de angústia que eu evocava os absurdos possíveis... Seria pesadelo!... Às vezes até os meus próprios sentidos se negavam a aceitar o que ocorria.

   Tentava dominar aquela ansiedade que surgia sem motivos por causa dos destemperos de se ouvir o que não se quer ouvir. Mas nada daquela situação se esvanecer com pensamentos tranquilizadores.

   Ficar naquele quarto estava se tornando uma tortura para meus ouvidos em frangalhos. Não aguentei mais e pedi socorro para aquela pendenga. E não foi que descobriu-se que a geladeira do quarto estava com mau contato e gemia, gemia, fazendo aquele som maldito, que finalmente foi arrefecido!



SOTAQUE MINEIRO
02/06/2013

        Meu professor me incumbiu de uma coisa por difícil demais de fazer: incorporar Guimarães Rosa, sê-lo em pessoa propriamente dita, na ventura de conseguir um proseado comumente mineiro. Esse meu professor só pode tá é pirando, né mesmo! Donde já se viu alguém, qualquer um que seja, conseguir contar um causo tão bem contado como ele no sotaque mineirinho. 

      Só se eu conseguisse colocar na prática a descoberta que fiz quando lá no meu tempo de criança, ao participar de um círculo de fogo de Cosme e Damião, dum conhecido nosso, vizinho mesmo, que era um espiritista afinado com Alan Kardec e realmente incorporava o menino Cosme. Segundo esse nosso tal vizinho, eu tinha sensibilidade para a incorporação de espíritos e que só faltava eu me desenvolver. Bom, naquela época minha de criança, eu me pelava de medo dos tais espíritos, mesmo o moço dizendo não só por dizer, mas afirmando na maior das certezas que a tal magia só seria usada para o além do bem.

        Num é que se eu conseguisse incorporar o espírito de Guimarães Rosa eu ia ficar por demais de feliz. Sei que essas coisas do querer da gente não acontecem assim só de querer, portanto, vou fazer o melhor que posso ao contar as histórias lá da roça, que como todo mundo sabe são ricas da sabedoria dos homens e mulheres do fazer comum de nossa terra.

        A história de Rancho Fundo vive entremeada aos meus causos da infância, também pudera época de faz de conta, a minha inocência andava montada na imaginação e tudo que contavam por lá eu acreditava como uma verdade que era para ser respeitada, pois assim era contada.

        Fomos visitar Sinhá Florinda; andamos morro abaixo, morro acima, sem parar pra contar as descidas e subidas até chegar naquele fim de mundo, de légua em légua. Na andança eu ia ficando sabendo das histórias do acontecido em casa de Sinhá Florinda. Ela agora já estava muito bem casada, mas no passado peregrinou muito por um tal de Jessé  Mundinho, que era um cabra muito dos bonitos, com uma “graúda membradura” dizia a Sinhá Flor, e ao contar, se via desabrochar em seus olhos o brilho daquela época, “que até por si semblava rir” de tanta querência a pontar no peito.

      Jessé Mundinho foi parar naquelas bandas, lá nos confins de Barão de Cocais, para modo de fincar suas raízes de homem das plantações e das crias de animais. Era bem querido pela vizinhança, mas não tinha sorte com os amores das donzelas que o seu coração dava sinal de palpitar. Diziam que lhe rogaram uma praga quando de menino. Era muito do teimoso, ele encasquetava de fazer uma arte daquelas das crianças que parecem ter o endiabrado no corpo. Não sossegava nem por minuto, sendo capaz de levantar e conseguir por no prumo qualquer cavalo selvagem. Mas de tanta malvadeza nos coices que dava nos bichos até eles amansarem, lhe foi rogado uma praga; a de que num seria feliz com nenhuma gazela e que no fim das contas ia viver noutra vida com o corpo de cavalo e a cabeça de gente; ia ficar cavalgando nas noites escuras e sombrias amedrontando os viageiros noturnos e desavisados.

        Mas Jessé nisso não se fiou e seguiu sua lida de homem sertanejo, valente e ao mesmo tempo, com um certume de romântico que endoideceu Sinhá Flor, na flor de sua mocidade. E o cabra, no seu falar sotaqueado da terra, fazia vibrar o coração daquela moçoila escondida nos espigões das Geraes. Sentia estalar os tições da fogueira em seu coração. 

       Pobre de sinhazinha que enveredou pelos caminhos da ardida paixão por aquele gavião vistoso no auge da grandeza máscula. Ele só queria saber de suas cumeeiras, donde a vista ia e voltava a perder de vista pela lonjura de suas terras. Desdenhou o amor de Sinhá e ela passou a passarinho preso em gaiola, numa tristeza de dar dó, definhando aos poucos até perder o brilho. 

       Enquanto isso, o cabra ia vivendo sem saber que muitos homens lhe tinham ódio, invejavam-no por ter os corações das sinhazinhas do redor, e queriam o seu fim, “não se atreviam a pegá-lo era por sensatez de medo,” ele tinha a força bruta feita a de um cavalo selvagem.

        Montaram cilada para o teimoso do Jessé, destemido que só vendo, “tinha medo de ninguém”, vivia o simples sossego da vida na roça, o que lhe trouxera certo alívio no seu jeito grosseiro e arisco que lhe causava certo mal-estar frente aos outros valentões. Caiu numa emboscada das boas, que nem os protegidos do além conseguem se safar. 

       Foi-se para a outra vida, viver a sina prometida. Diziam que ele vagava lá pelos lados da estrada que levava ao Rancho Fundo, de beira com o rio que ondeava a quinhentos metros da casa de vovó. Eu morria de medo de quando viajava praquelas bandas, e cair a noite, e dar de frente com o cavalo com cara de homem pelo caminho, pois daquela sina ele não escapuliu. 

      Verdade verdadeira.

("  " - retirado de textos de Guimarães Rosa)



SABOR DE LEMBRANÇA
14/05/2013

CROC... CROC... Que crocante esta frutinha! HUM! HUM! HUM! Que delícia o seu adocicado, tão incomum. NHÃ... NHÃ...NHÃ... Não tenho vontade de parar de comer, uma após outra e quanto mais me delicio, mais dá vontade.

TUC... TUC... TUC... Enquanto ele cutuca a árvore para que elas caiam, ZUMM... ZUMMM... pego no ar, como mágica, aquela gota em tons suaves, sutis, indescritíveis, ou do chão. Abro a blusa na cintura e as coloco junto à roupa, aquelas pinturas, cada qual com sua essência de maciez, cheiro, delicadeza, cor... NHÃ... NHÃ... NHÃ...

A casa é como um sítio dentro da barulhenta cidade, só o que se escuta são cantos de pássaros envoltos no verde das copas das árvores, construída num espaço onde estão quatro lotes unidos, muitas árvores frutíferas, horta, e espaço... Em plena Belo Horizonte. É um privilégio de poucos e meus filhos correm por todo o lado em sua infância na casa da avó.

Eu aproveito a época da colheita desta frutinha que embebeda a minha mente, tantas lembranças esta frutinha delicada me traz; seu cheiro inconfundível me traz associações com os melhores perfumes franceses. Não! Perfume é café pequeno perto dela, um perfume indizível; pelo menos para mim.

Esqueço que estou ali; mãe, esposa e caminho ao encontro à cena de quando eu tinha 10 anos e ficava debaixo do pé da árvore, enquanto meu primo catava para nós e ZUM... ZUMM... ZUMMM... lançava em nossas mãos ágeis, como bolinha de tênis; o prêmio, pois naquela época ela era muito disputada. Muita discussão: eu vi primeiro; essa é minha; assim não vale; você roubou de mim; deixa que esta eu pego... Coisas de crianças livres, sem maldade, apenas as travessuras do momento.

Meu primo Almir – Rim la, como gostávamos de chamá-lo ao contrário e que o fazia dar aquele sorriso aberto que eu admirava em segredo. Ele brincalhão vinha com a resposta: Ai cram... Ai cram... Aicram; Ardnas... Ardnas...; Ole cram... Olecram...; Asiram..., Asiram...; Alil... Alil...; eu e meus irmãos nos divertíamos naquele pequeno espaço de terra, um barracão aos fundos e aquela enorme árvore frondosa, com seu tronco e folhas em espetáculo. Meus olhos estão perdidos nesta lembrança...

Meu primo Almir...

            Dos meus tempos de meninice, entrando na adolescência, ele, o primo mais bonito que eu tinha. Eu me orgulhava disso perante as garotas da rua.

            Ele frequentava nossa casa desde que me entendo por gente, e sua presença era uma constante; um riso aberto, divertido, alegre. Minha tia Mercês, que sempre ia na nossa casa aos finais de semana, pois trabalhava e morava no trabalho, no Colégio Sagrado Coração de Jesus, conta hoje em dia que quando o Almir aparecia, bebiam até não querer mais( isso já em outros tempos mais para a frente... ou para trás, as recordações se confundem na minha cabeça!). Depois ele parou de aparecer e só voltou quando eu já estava mocinha.

            Para a idade que eu tinha ele era considerado velho. Mas eu era apaixonada por ele. Que belo moreno! Sempre tão alegre, brincalhão, aquela risada gostosa. Quando ele aparecia com a namorada, eu me mordia de raiva, fazer o quê!

            Acho que quase todas as meninas se apaixonavam por seus primos. Esse foi o meu caso platônico. NHÃ... NHÃ... NHÃ... Como estes jambos estão saborosos, Meu Deus!




VOEI SEM ASAS 
16/04/2013

Conheci Manoel de Barros através da minha amiga Fátima Fonseca. Apaixonei-me por sua poesia que nos envia a nossa singela infância. Na leitura de um de seus livros poéticos, de repente, me vi criança, na roça da minha avó e do vovô. Local onde sempre ia passar as férias; eles eram meus padrinhos e lá eu me sentia livre no mundo. Podia caminhar grandes distâncias a catar lenha para vovó e voltar com um feixe enorme nos ombros, sem sentir medo de nada, a não ser de cobra que só ameaçava se eu entrasse em seu território, o que graças não aconteceu. Lembro-me de que cheguei a pisar em uma cobra de vidro quando ia com vovó visitar um vizinho, que morava a duas léguas de distância. Levei um baita susto com o grito de vovó, mas a sorte foi que cobra de vidro não tem veneno.

Para dizer a verdade eu não me lembro de ter recebido ou dado abraços em meus avós, mas com certeza lá era um lugar em que eu me sentia segura. Tínhamos o hábito de pedir a benção a ambos, beijando-lhes as mãos. Naquela época as crianças tinham um respeito enorme pelos adultos, fossem quais fossem. Vovó, altíssima, magrela, morena, cabelos lisos e longos (que indicavam a descendência índia), com sua voz doce, sabia ser enérgica na medida. Vovô, de estopim curto, não era de muita conversa, nunca dirigia a palavra a nós, crianças, seu apelido dizia tudo: Zé Pimenta, de descendência espanhola. Eram primos primeiros. A história não é nada engraçada, apenas interesses.

            Vovó descendia de uma família com posses. Casou-se muito cedo, aos treze anos de idade, com um tio seu de nome Alfredo. Ainda gostava de brincar de casinha e de bonecas quando se casou. Teve seis filhos deste primeiro casamento. Perdeu o marido ainda jovem. Vovó era sedutora e tinha o “sangue” quente. Depois que perdeu o marido teve uma segunda relação antes de tornar a se casar de novo. Uma pessoa me perguntou se vovó era desfrutável? (em pleno século XXI e se ouve uma pergunta dessas, hein!). Considero que vovó estava à frente do seu tempo; era uma mulher livre, viúva, não devia satisfação a ninguém. Mas provavelmente deve ter havido fofoca, pois se conhece os mexericos de cidade do interior. Dele teve duas filhas. Ele, um negro muito bonito, minha avó se apaixonou. Mas os preconceitos naquela época eram ainda mais exacerbados do que hoje em dia e ela acabou se casando com o meu avô Zé Pimenta.

        Vovô casou-se por interesse, como se diz, ele deu o golpe do baú. Descendia de família pobre. Era mais jovem do que vovó uns doze anos... Por aí se vê que minha avó não era flor que se cheirasse (digo isso no bom sentido!). Tiveram três filhos e incluída aqui estava a minha tia que tinha a pele escura, que vovô criou como se dele fosse. Nunca houve nenhum tipo de rejeição (sic!). Lembrei-me que vovô era preconceituoso com relação à cor da pele, pois quando minha irmã que namorava um negro chegou à casa de uns parentes, ele comentou com meu pai que era um absurdo ela estar namorando o tal sujeito. Então, não sei se a minha tia sofreu algum tipo de discriminação quando jovem. Quando éramos pequenos, ficávamos sem entender como duas tias tinham a cor da pele tão bonita; um moreno tipo “puri” que se diferenciava da cor branquela de meu pai e de sua outra irmã.

           Estou a voar relembrando a minha infância, que segundo o Manoel de Barros deve ser reinventada constantemente. Eu me vi pousando naquela floresta que existia próxima à casa de meus avós, acompanhada de alguns primos. Neste espaço, muitas árvores, que infelizmente eu não saberei dizer o nome, mas que de suas copas altíssimas, caíam flores que a gente podia convertê-las em diversos brinquedos crianceiros. O meu primo era bastante habilidoso, fazia filtro, panelinhas diversas, fogões e assim, ficávamos a brincar o dia todo; apenas com os objetos existentes ali, reinventávamos outros que não tínhamos acesso.

            O riacho que corria a alguns metros da casa era também local onde se voava com os peixes; brincávamos, nadávamos, picávamos as pedras em suas águas e elas iam pulando amarelinhas; fazíamos tempestade de água em cima do outro e as diversões entremeadas a risadas, muitas risadas inocentes. A fantasia fluía durante a estada em casa dos meus avós e eu realmente voava!


FEVEREIRO OU MARÇO... PREFIRO MAIO!
09/04/2013

            Vinte e três de maio de 1955, dia escolhido para o casamento. Poderia ter sido fevereiro ou março, até mesmo abril; mas sou tão apaixonada pelo mês das noivas, que me submeti à grande avalanche de propagandas sobre o tal dia estonteante que toda a mulher sonha um dia viver.

            Nada de magnífico assim; eu, uma simplória ajudante de enfermagem que trabalha e mora num grande hospital geral da cidade das montanhas – a grande Belo Horizonte – recheada com seus morros ondulantes, que às vistas de qualquer apreciador da natureza deixa extasiado pela fotografia embaçada da neblina da manhã a esvoaçar-se no horizonte.

            Mas, aos vinte e três anos, confesso que ainda existe em mim, o ardor do romantismo a rondar meus dias e noites em perspectiva; confesso mais, estar transpirando emoções à flor da pele. Olhar aquele horizonte sempre possui o dom de deixar-me em paz com os meus antepassados (que mais à frente serão nomeados devidamente, quem sabe noutros textos!). Não tenho muito tempo para aproveitar a experiência mágica de exercitar o olhar para a magnífica e estonteante vista. Aos fins de semana, meu namorado, agora nomeado Lindo, apelido que lhe dei logo ao início do namoro e que pegou! Também ninguém era  mais lindo, fala o meu coração enamorado. Bem, continuando o que eu estava contando, ele tem por hábito levar-me às redondezas para apreciar de perto àquelas monstruosas camadas de terra, emolduradas pelo verde da vegetação nativa, ainda presente e, livre das mãos ambiciosas que a decapitariam no futuro. Não só a mata iria desaparecer, como também, aqueles montes, muitos consubstanciados do puro minério de ferro. No futuro se veria a tragédia que a ganância de grupos financeiros e a displicência de governantes iriam deixar de herança aos belo-horizontinos, a tal ponto de se levantar questão sobre se o nome da cidade ainda seria pertinente.

            Aqui estou eu divagando... Bem no caloroso dia de afeto que me aguarda à cerimônia que pudemos encomendar.

       Lindo, meu namorado, também trabalha e vive no próprio hospital – Hospital da Santa Casa – que mais parece uma cidade dentro de outra cidade. Ele surgiu primeiro como doente. Passou a frequentar o corredor onde eram atendidos os pobres cidadãos que não podiam pagar por assistência médica. Ia um dia, outro dia, e mais outro, e retornava à sua casa, mesmo fraco e quase sem sopro de vida, naquela palidez doentia. As senhas eram distribuídas e sobrava gente desassistida. Até que após semana de tentativas para uma consulta, não conseguindo mais uma vez; revoltou-se e prostrou-se ali, dizendo que dali não arredaria até ser atendido; que acabaria morrendo naquele local. O hospital era administrado pelas irmãs de caridade, mas agora nem eu me lembro de qual irmandade, eram rígidas, exigentes e autoritárias: seguiam os critérios estabelecidos ao pé da letra. Ele fincou o pé por ali e não deu outra opção à Irmã Saleza senão conseguir senha extra para o doente arruaceiro e reivindicador. 

         Enfim, atendido, lá ficou internado por seis meses, tratamento que seguia à risca, pois tuberculose não é flor que se cheire. Durante aquele período, já restabelecido da fraqueza com que chegara, ajudava no que podia; cuidava do jardim; lavava os corredores, até que finalmente foi admitido como trabalhador e, agora, estamos prontos para o altar na pequenina e aconchegante capela da Igreja da Santa Efigênia. Lá, nos seus muros, sentávamos para o namoro dos velhos tempos; ou após as sessões de cinema, onde íamos assistir aos muitos filmes seriados que eram comuns à época; ficávamos excitados por esperar a semana passar e descobrir o que mais a trama iria desvendar. Era a opção que tínhamos, nós que éramos pobres, de usufruir desse lazer que trazia aventuras, dramas e emoções aos nossos jovens corações.

            Finalmente o enlace acontece na Igreja de Santa Efigênia, poucos convidados, colegas e amigos angariados pelo tempo de trabalho e sofrimento do dia a dia na vida do hospital. Eles foram os padrinhos e as madrinhas naquela cerimônia e, muitos deles, continuaram nossos amigos na trajetória de vida que corria.

            Meu vestido, muito simples, mas um vestido de noiva apropriado para aquela ocasião: branco, acetinado, mangas compridas, rendas, cintura bem marcada, sandálias brancas de salto alto, típicas da época. Não houve retratista para marcar a data, pois isso era um luxo que não tínhamos como pagar. Depois de casados, vestimos novamente as roupas para umas três fotos básicas e certificamos a data.

            Fomos morar no Santa Teresa. Até me lembro o nome da rua: Salinas; o local era um cortiço, com seus muitos barracões a rodear-lhe os cantos, deixando o meio do terreno para a passagem e a  convivência das crianças.

Os tipos característicos que existiam ali é assunto para outro momento. Ali dá início a nova vida a dois, com toda a sua particularidade e contradição, que se sucederá em capítulos posteriores; em meio à pobreza manifesta em cada barraco, mesclado de grandes novidades e recheado de suspense digno de caserna.


"Sou?!
07/05/2013

Quem sou eu?

Camaleoa

Quando não sou: sou

Quando sou: não sou

Contradição

Este é o meu nome."

   Em setembro de 2005 eu já vislumbrava este meu perfil, agora mais nítido; se é que se pode dizer isso num português correto, de um camaleão fêmeo; sinceramente, prefiro transgredir normas e utilizar o popular mesmo - camaleoa.

   Sou apaixonada por meu grupo  de animais: vindo  da linhagem dos repteis, posso me camuflar de tal forma, a depender  de meu estado de humor e da temperatura, me uno aos diversos aspectos  que a natureza me proporciona. Desde as cores mais vibrantes, do vermelho, verde, amarelo, às tonalidades mais esmaecidas: bege, marrom, terra etc. E como me divirto com as tais transformações; posso ser muitas e posso escolher não ser!

   Escolhi o viver em montanhas, deserto ou entre folhas secas, no chão cru de nossa terra. A minha espécie imiscui entre esses diversos ambientes buscando aquele onde a adaptação permita sintonia com a sua característica. Eu preferencialmente curto quando estou em chão firme, é minha natureza mais premente; mas quando sonho muito, estou lá, no alto, entre os verdes deslumbrantes das vegetações montanhosas. Têm os momentos de dores, tristezas, angústias que chegam sem razão e que necessitam de ambiente adequado; escolho um, tal que o meu sentimento dê vazão, e me destilo nas areias quentes durante o dia, e à noite, me solto no embalo de baixas temperaturas – é assim o deserto.

   Dizem que sou animal solitário e não demando companhia. Devo então ser um espécime raro de meu grupo: gosto sim de companhias que me complementem, onde posso perscrutar mais intensamente as semelhanças e diferenças, e ficar maravilhada com os diversos tipos.

   Quanto ao acasalamento, também discordo dos de minha espécie, que só procuram as fêmeas quando é momento da cópula – não; gosto do companheirismo, do amor entre folhas outonais, de correr à beira de rio, de fantasiar estar nas estrelas, de ver as cores das areias e lembrar-me de Van Gogh – animais também têm conhecimentos que estão longe do alcance humano. E é com este domínio que corro atrás do meu camaleão, como animal em que me traduzo – leão rasteiro – venho, como leoa voraz, agressiva, intensa.

   Tenho uma resistência de gigante; na minha pequenez e fragilidade, adquiri habilidades que vão da resistência pela rusticidade de minha pele seca, apropriada aos ambientes áridos, à capacidade de ficar muito tempo concentrada ao que virá. De muito interessante, com o meu olhar trezentos e sessenta graus dou conta do que se passa ao derredor. A minha língua alcança distância que difere do meu tamanho à cata de alimentos aos quais me delicio. Tais habilidades suprimem minhas débeis fragilidades: sou lenta e necessito estar atenta.

    Adoro o sol, o sol que faz bem a todos, com sua luz irradiante e que esquenta os ambientes nos quais preciso ambientar-me. Sou, portanto, arisca e curiosa, me diferencio em camuflagens com tal agilidade, a depender de meu estado psicológico e das necessidades locais – sou camaleoa, tais como as minhas contradições.



O PRÉDIO DE DOZE APARTAMENTOS
24/03/2013

               

O desenrolar dos fatos se deu quando o casal decidiu casar. “Quem casa, quer casa!”. De procura em procura, descobriu o pequeno apartamento, uma joia a poucos minutos do centro por um preço que conseguiam financiar por muitos, muitos longos anos.

Quando o casal recebeu o apartamento já vazio, levou susto: a cozinha impregnada de gordura nos azulejos com crostas antigas de fritura, paredes sem pintura há muito, manchas por todo o lado, carpete grudento e muita poeira. Quando fez a limpeza necessária, deu-se o casório e foi morar em um dos doze apartamentos do edifício.

O casal se transformou em síndico do condomínio e aprendeu a conviver com a diferença ali existente, inclusive a sua própria, de ar neurótico: o rapaz era obsessivo e de estilo machista, a moça era exigente de sua independência como mulher, mas reclamava contribuir nas despesas de casa. Brigas homéricas entre marido e mulher. Entre lençóis e travesseiros. Mas continuavam casados.

Como se sabe, em todo lugar existe pessoas diferentes. No prédio de doze apartamentos isso se encaixava como uma luva. Tantas diferenças que, para quem é síndico, torna-se necessário administrar com sabedoria. A questão é que, às vezes, os problemas persistem. De observação em observação, o casal aprendeu negociar de forma específica, a depender do estilo de cada um dos moradores.

Quando o casal saía para trabalhar respirava o aroma perfumado ao descer a escadaria. Com o tempo descobriu o porquê. Um dos vizinhos dissera que a moça chamada por todos (in off) de coroa por beirar os quarenta anos, morava com os pais idosos desde a construção do edifício. Alinhada, ótimo emprego, bom salário, a moça ao descer a escadaria deixava o perfume no ar. Ela era mulher independente e exuberante saía aos sábados à noite. Nada de conversa fiada, no máximo um cumprimento formal aos encontros no sobe-desce.

Sempre que o casal descia para o trabalho, trocava olhar e riso e nada comentava. A discrição é fator fundamental nessa função e na convivência entre pessoas. Já dentro do carro, comentava:

— A coroa já desceu! — Disse o rapaz. A mulher fez que sim com a cabeça.

Em outra situação, o casal de síndico colocou um aviso na portaria: “FAVOR NÃO BATER O PORTÃO – PERIGO QUEBRA DE VIDRO”. Quando chegou à noite, o casal recebeu a visita de um morador que a esposa tinha problema de mudez, mas entendia com perfeição.  Ele chegou reclamando:

— Sei que o aviso colocado lá fora é pra mim, — disse entre nervoso e voz alterada.

O casal de síndico sem entender:

— Como assim pra você? É um aviso para todos moradores do prédio. Não é intencional a ninguém. — O homem escutou sem dizer nada, e saiu mal humorado. O sujeito tinha estopim curto, e provavelmente era paranoico. A esposa ao contrário era dócil e risonha, somente quando encasquetava, emitia sons exigindo ser escutada. Não tinham filhos.

Noutro apartamento tinha o rapaz que morava sozinho, recebia amigos, era sempre muito discreto e educado. A vizinha contou, ele é “gay”. Nunca deu um pingo de amolação, a não ser quando informou ao casal sobre o morador abaixo dele, que ficava batendo a vassoura no teto, e ele não entendia por quê.

No mesmo dia, coincidentemente, o morador chegou com uma braveza de dar medo, reclamando do barulho vindo do apartamento acima e que atrapalhava seu descanso. Repentinamente apontou o revólver “trinta e oito” na cara do casal e ficou balançando-o bem no nariz, dizendo, vou tomar as providências. Esse morador era divorciado, e a atual companheira grávida gostava de uma fofoca. O casal pediu que se acalmasse pois existe outra forma de resolver problema, o diálogo.

Assim descobriu que daquele sujeito o preferível era manter distância. Alertou ao moço do andar de cima que evitasse barulho altas horas, e este argumentou, trabalho o dia todo e a noite cuido dos afazeres e do jantar. O que fazer?

O casal de síndico entendia o nervosismo do morador que tinha uma arma. Mas não justificaria sair atirando em todo mundo que irrita a gente. No apartamento acima do seu, nunca utilizou do expediente de cutucar o teto, mesmo tendo como vizinhos uma família com quatro filhos. Bolinha de gude a pinicar, bola, patinete, barulhos crianceiros. O casal compreendia a dificuldade dos pais de, naquele cubículo de cinquenta e seis metros quadrados, evitar as brincadeiras dos filhos. Nessa família, a esposa, um pouco mais velha do que o marido, saía para trabalhar, enquanto o marido preferia a vida doméstica, cuidar dos quatro filhos, preparar a comida, lavar roupa. Seu defeito era espancar a esposa quando a coisa ficava feia. O bairro inteiro sabia da situação, pois a mulher gritava em alto e bom som:

— Aqui tem um homem que bate em mulher! — As crianças choravam e a discussão corria noite adentro. Triste e desolador. No outro dia era como se nada houvesse acontecido, estavam em paz.

Tinha de tudo. O casal acabara de descobrir. O que viria pela frente?

Descobriram que a vizinha ao apartamento do rapaz que recebia amigos tinha um segredo, segredo este nunca observado pelo casal. Ela tinha por hábito convidar homens que passassem abaixo de sua janela para uma tarde diferenciada. Gostava do entregador de gás, do moço da conta de luz, do encanador, ... Foi então que o casal observou o abre e fecha do portão nos fins de semana.

Um dia essa vizinha foi solicitar ajuda, pois não conseguia trocar uma lâmpada queimada. O síndico foi fazer a troca, quando terminou olhou para trás e viu a vizinha vestida em camisola com as pernas cruzadas na cama observando-o. Ele pegou a escada e saiu rapidamente.

Outra história aconteceu, a do morador recém-casado vivendo a pouco tempo ali. O casal de síndico se surpreendeu ao descer a escadaria e ver o homem completamente sem roupa abrir o portão e ganhar a rua. O pobre homem tinha problemas mentais e estava sem uso de medicação, não fazia mal a ninguém, apenas vivia o mundo paralelo até que um dia se mudou.

Outro morador era alcoolista. Pela manhã, todos os dias, antes do trabalho, necessitava beber para diminuir os tremores. Como ele consegue dirigir, se perguntava o casal.

Em outro apartamento, a mulher fez do local uma pequena confecção. Costurava sem parar dia e noite para sobrevivência. Separada, desempregada, o ex-marido não contribuía em nada e ainda ia sempre lá tirar sarro da cara dela, exigindo algum dinheiro que ela não tinha, pois vivia em débito com o condomínio.

Noutro, um casal com dois filhos, em que a mulher era bastante estranha, às vezes cumprimentava, outras vezes não. Uma vizinha explicou, ela tem epilepsia e humor instável.

Outro apartamento, com casal, filho e sogra. A mulher recebia o salário e ajudava o marido desempregado que vivia de biscates e tentativas de negócios que não vingavam.

Sobre o décimo segundo morador do prédio, o casal preferia nem tocar no assunto, não conversava sobre ele nem na intimidade do lar, pois era muito pano pra manga.

O casal aprendeu a se moldar de acordo com o sobe e desce do edifício.





TEMPO CONTADO
18/06/2012

   Marc repassa as páginas bem devagar, numa leitura constrita e atenciosa sobre a vida daquele homem admirável, e, ao mesmo tempo, uma incógnita. Aquela biografia relatada através de cartas enviadas ao irmão, tão cheias de angústia, que demonstram uma ânsia de viver, expressa nas linhas escritas a lápis, trazendo-lhe questionamentos estupefatos acerca de nossa finitude.

   Há tempos é um apaixonado pelo pintor expressionista Vincent Van Gogh. Na leitura das cartas entre este e o irmão Théo, Marc vai desvendando a vida de seu ídolo, experimentando uma catarse inexplicável, uma infinidade de dúvidas a todo o instante, emocionado pela intensa autenticidade da escrita que vai dominando-o e, ao mesmo tempo, sentindo semelhante angústia, como a apresentada pelo pintor; como a que o corroe.

   Os dois irmãos se correspondiam desde a juventude e em mais de seiscentas cartas pode-se hoje conhecer a dor daquele homem martirizado. Tais cartas, organizadas em ordem cronológica dão a coerência e a sensação de, no ato da leitura, se pressentir o encaminhar dos fatos, como se vivenciados no aqui e agora. Isto cria uma tensão ainda mais forte em Marc, que chega a conjeturar que Van Gogh sabe a verdade... Que a sua morte está próxima! 

   O que se passa na mente de Van Gogh pode ser abstraído da leitura feita com cuidado e de forma incondicional, ao se colocar no lugar de  quem redige. Marc o faz; passa a vivenciar a sensibilidade e a fragilidade daquele sujeito em busca de si mesmo.

   Van Gogh busca a independência pessoal e financeira através de uma profissão e, desde as primeiras tentativas da adolescência, até passar por diversas etapas, vai cada vez mais ampliando a sua dor, a dor de não ter a clareza do seu verdadeiro projeto.

   Inicia trabalhando com um tio, em loja de material de pintura, onde começa a esboçar seus desenhos sem nenhum tipo de orientação, passando a ter a noção sobre as cores, os pincéis, as telas, como se ordena o mundo das artes. Entretanto, no trabalho burocrático a que foi designado, começam aflorar dificuldades de ordem concreta e, Van Gogh passa a desempenhar as tarefas de forma desleixada, o que dificulta sua continuidade naquele trabalho. É despedido.

   Théo e a família correm ao seu socorro, ajudando-o nas despesas. Van Gogh, em nova tentativa, busca na religião, seguindo agora o pai, um pastor fervoroso, um caminho onde encontre harmonia. O pai consegue que ele vá trabalhar com assuntos dessa área; mas ele, logo, logo, não aceita ser direcionado e age de forma autônoma, considerando que o seu jeito de ver as coisas seja o correto. Mais uma desilusão! Dá-se mal também nesta empreitada.

   Seu irmão, Théo, atua como seu conselheiro. É o único a quem Van Gogh escuta. Ele já tinha enviado alguns trabalhos feitos em carvão e, Théo vislumbra nos trabalhos do irmão mais velho, certo domínio de formas, que apesar de ainda primitivas, traziam algo diferenciado e o incentiva nesta nova etapa.

   Théo passa a financiar-lhe a vida dentro de suas possibilidades, enviando determinada quantia que possibilite a compra de materiais e a sobrevivência. Van Gogh tem uma vida miserável, mas é feliz; parece ter encontrado sua verdadeira vocação, seu papel nesta vida.

   A descoberta o impulsiona e, com sede de pintar, não reclama. Faz cursos para entender melhor a dimensão do humano no desenho, pois inicialmente tem mais desenvoltura com a natureza; conhece diversos pintores; aprende a lidar com as cores em suas diversas nuances.

   Trabalha convulsiva e intensivamente, dia após dia, e em pouco mais de 10 anos, numa efervescência criativa, eis mais de seiscentas verdadeiras obras de arte que somente após a sua morte valeriam uma fortuna. Marc fica maravilhado por estar vivenciando tamanha descoberta e identificando a força criadora que se expande a cada dia de forma voraz naquele homem.

   No amor Van Gogh não é feliz. Apaixona-se pela filha de sua senhoria que não lhe aceita a corte, o mesmo acontecendo com uma prima viúva. Vive martirizado pelas rejeições sofridas, frustrado com a sua falta de jeito no amor. É um homem rústico, apesar de instruído e conhecedor dos clássicos. Marc, a cada envolvimento na história, corporifica tais dores, como se suas fossem.

   Van Gogh, à noite, tem o hábito de frequentar um café noturno de Paris, conhece uma mulher viciada em bebidas, grávida; resolve cuidar dela no afã de ter uma família. Mas, a tal mulher o despreza pela pobreza ao derredor e o abandona. Os aspectos de sua sanidade passam por altos e baixos a partir das frustrações amorosas e Marc sofre junto com ele.

   Conhece muitos pintores de época que seriam famosos um dia. Aproxima-se mais intimamente de Paul Gauguin, com quem divide a moradia por algum tempo, até a derradeira discussão entre ambos.

   Marc, apesar dos mais de cem anos depois, a cada leitura de uma carta e tendo o conhecimento da data, mais e mais se angustia; sofre com a proximidade da morte do pintor Van Gogh, que nos últimos períodos de sua vida deixa transparente o que aquela existência malograda lhe acarretou, surgem os comportamentos mais agressivos, chegando ao extremo do corte da própria orelha.

   Tais acontecimentos, que vivenciados por Marc como se verdadeiros fossem naquele instante, se faz muitas perguntas sobre a morte e o morrer, tomando para si aquela angústia, a angústia de quem está ciente da chegada do fim, que culmina com o suicídio de Van Gogh, aos trinta e sete anos.

   Uma tristeza enorme, misto de angústia por vivenciar a iminente morte do pintor, tão perto de si, como algo que simplesmente é, nada se pode fazer... Sem saber que ele próprio está com os seus dias contados.





A HISTÓRIA DA MENINA
20/10/2012

Estava a menina a caminho da casa da tia Carmita, uma distância entre dois bairros. Caminhava pelos trilhos, pois somente por eles conseguiria encontrar o local correto. Acostumada às andanças da meninice, sozinha, com seu jeito e pensamento incólumes, sem manchas de maldade e sujeira. Achava que podia andar à solta no mundo sem nenhum problema.

Já fizera o trajeto diversas vezes e naquele dia não foi diferente. Apenas ia ao destino que decidido estava. Era interessante caminhar por trilhos, andava a pé pela falta do dinheiro da condução; mas gostava da aventura, e ia observadora do ambiente ao seu redor.

Tinha hora que era muito divertido andar nos trilhos, principalmente quando lá embaixo passava um rio ou algum precipício. Era um divertimento ameaçador, desafiante, pois se enxergava entre as madeiras todo o vão entre os espaços; qualquer erro na pisada entre uma tábua e outra poderia se tornar um acidente devastador e sem volta. Tinha vez que a tonteira por olhar muito tempo assustava, mas atrevida, ia assim mesmo, coração na mão, tremor nas pernas, enfrentava a ponte de trilhos à sua frente com medo e coragem.

Em certos trechos podia relaxar e expressar sua destreza andando sobre os trilhos por longos períodos sem cair. O trem custava a passar e quando acontecia, corria para as laterais e ficava a observar os diversos vagões, deixando a imaginação correr trilhos.

Depois de duas horas de caminhada chegara ao Bairro Santa Inês; os primos vinham recebê-la com euforia, tomavam um café caprichado, e podiam brincar por um bom tempo, que não podia ser longo, tinha que voltar antes de escurecer, já que o matagal, à noite, amedrontava qualquer cristão. A família da tia era simples e não havia como ajudá-la no trajeto. Tinha que enfrentar a linha férrea.

O retorno foi como a ida até certo trecho. Quando chegara a um local mais ermo, apareceram alguns moleques que esbravejaram, assustando-a. Começaram, em seguida, a lhe jogar pedras. Ela ali desamparada, recuada, insegura de seguir.

De repente, eis que surge uma moça de cabelos longos e negros, vestida de branco e, numa fala mansa e suave pede aos garotos que a deixem em paz. Que alívio; pude seguir o caminho, pois um anjo surgiu de repente e me salvou daqueles demônios. Nunca mais andei a pé, sozinha, por aqueles trilhos. A minha inocência tinha se apagado.



AS DESVENTURAS CONTINUAM...
20/11/2012
É verdade! Em BH já não se respira liberdade.

Eis o meu MEA CULPA. Eu aqui preocupada com as desventuras de moças de classe média à solta no Malleta enquanto o povo sem moradia vive aquela violência – a do batalhão estelar de soldados armados até os dentes, com suas armas pesadas e cães farejadores, todos os dias.

Minha amiga me puxou a orelha; ela, ativista que é das causas dos sem tetos, dos sofrimentos de mulheres e crianças sem a proteção do “Estado”; tem razão. Ela que participa junto com a comunidade nas reivindicações por políticas públicas na habitação, o que têm sido em vão, têm sofrido horrores nas mãos dos tais homens que cuidam da nossa segurança (continua o sic!).

O investimento em moradias a custo popular não faz parte de políticas públicas; o que parece bem incoerente, tendo em vista a necessidade. A contradição da política mineira é realmente de causar enjoos aos belo-horizontinos que têm sangue na veia.

A violência em BH corre solta perante aquele povo sem direitos até hoje, em pleno século XXI e nada é feito – ou faz-se para inglês ver – o que dá no mesmo. Nada é veiculado e parece que aquele povo que reivindica dignidade é um povo inexistente, sem corpo, sem alma, sem os direitos rezados na jovem Constituição de 1998, que por um momento me remeteu aos ditames do escritor Joaquim Manuel de Macedo, que em 1885, no seu livro A Carteira de Meu Tio, diz:

“_ Eis aí, pois, a santa mártir, meu sobrinho: quando ela nasceu, um povo inteiro saudou-a, como a fonte inesgotável de toda sua felicidade... pobre mártir! Não a deixaram nunca fazer o bem que pode: apunhalaram-na, apunhalam-na ainda hoje todos os dias, e entretanto cobrem-se com o seu nome, e fingem amá-la, os mesmos sacrílegos que a desrespeitam, que a ferem, que a pisam aos pés!...”. 

Nossa! Como o autor continua atual, já que ele falava da Constituição de 1824, não é? Está tudo como dantes no Castelo de Abrantes! BH tem sido palco de desrespeito e violência nas ocupações, nas periferias, vilas e favelas sem que se noticie coisa alguma. 

Eu me pergunto: Tiradentes não está revirando-se no túmulo com o tamanho do desrespeito à democracia pela qual morreu enforcado? É apenas mais um capítulo do poder de autoridade?



Escultura LIBERDADE!  Artista JUliana Chagas



AS DESVENTURAS DE MOÇAS DE FAMÍLIA
 NO MALLETA *
10/11/2012

            Antes fosse um conto, mas o registro desta alegoria aconteceu em pleno Malleta do século XXI. Para você que não conhece as famosas histórias de lá, cabe a mim retratá-las do pouco que me vem à mente. O Edifício Malleta é tradicional nas histórias belo-horizontinas, lugar de encontro de antigos intelectuais e estudantes mineiros; guarda, ainda, resquícios de bares interessantes e alternativos. Eu mesma já usufruí bastante das boas culinárias ofertadas, nos anos 70, na Cantina do Lucas. Mas a façanha de hoje não é minha, vejam só!

Tudo começou com a aventura de três moças à solta no Malleta, em busca do gastar o tempo em prosa e bebidas até altas horas. Animadas no prosear mineiro, em que, mesmo entre as mais novinhas, ainda encontram tempo e disposição para o dedilhar de prosa. Ainda bem que as mulheres de hoje têm a liberdade de ir e vir para onde querem, a qualquer horário e sem a companhia de nenhum macho. Mas são mulheres e, de repente, se assustam com a confusão armada à frente, olhos estatelados sem entender o que estava acontecendo.

Deparam-se com, como saídos de um filme de guerra, um batalhão estelar de soldados, armados até os dentes; armas pesadas, enormes cães farejadores. Chegam sem cerimônia, sem um mínimo de delicadeza que a obrigação impõe; ríspidos, põem os cães para farejar. Um dos soldados empurra a pequena mesa que adorna o lugar onde as moças estão, com a bota pesada, numa aspereza própria da aprendida nos quartéis.

As moças, amedrontadas com o processo de busca de não sei o que, pois nada lhes fora informado, tratam de aproveitar a extrema confusão, pedem a conta e saem do local considerando inacreditável aquilo a que acabaram de assistir, já que não tiveram acesso (ou apenas o tiveram através dos livros de história) à dolorosa vivência de tempos idos.

Até chegarem a um lugar seguro, corações batendo acintosamente, não querendo calar, tamanho medo orquestrado em local público, como se tivessem alguma culpa no cartório.

Têm-se notícias que as velhinhas que moram no edifício também sofreram com a tal aparição repentina daqueles homens que cuidam da nossa segurança (sic). Nada de democrático se viu por ali, estava estatuída a verdadeira linha de ação – em plena madrugada de dez de novembro. As senhoras ficaram assustadas; os cabelos brancos já presenciaram cenas semelhantes nos anos 70, mas agora? Em BH já não se respira liberdade?

*Publicado no Jornal mineiro O TEMPO, em 20/11/2012, pág. 17.


RETRATO DA VIDA
11/11/2012
DIOLINDA – distrito miúdo de Pau de Anjo, no sertão pernambucano. Os cidadãos amorosos de sua pátria; construída com o suor de cada habitante ali presente e seus antepassados, vivem comodamente o remanso dos dias naquele pedaço de terra.

Acostumados à mesmice dos dias, a praça sempre cheia de antigos moradores em sua aposentadoria sem atividades; a criançada a se esbaldar na liberdade da rua sem calçamento, na terra em carne viva; as mulheres na lida diária, sempre dando conta das novidades brejeiras que surgem no pequeno recanto. Como a chegada daqueles dois conterrâneos, que está dando pano pra manga no “cocorocar” das velhas alcoviteiras.

Na casa de comadre Dionísia, a novidade que espreita é a chegada de Diógenes e Diana, primos consanguíneos que chegaram de Fortaleza, onde tinham ido para os estudos. Dona Dionísia não estava gostando nada, nada, de ver o filho chegar trazendo a prima para hospedar em sua casa. Os parentes dela, já falecidos, faziam parte da história de causos local. A mãe; mulher exuberante, para a visão acostumada de mulheres comuns, assombrava os sonhos de muito galego. Digna apenas do herói que conseguiu destruir-lhe as defesas e possuir seu cabaço. Quente, perfumada, conquistava não somente pelo ar sedutor, mas pela comida, capaz de aflorar o desejo através de suas alquimias culinárias. Na cama, amante que se saciava com o uivar de seu prazer, em tons crescentes, roucos de desejo, em agradecida performance do ato amoroso. O pai; homem apimentado pelo amor alucinante da mulher sabia lhe proporcionar o céu em vida. Ambos conheceram o amor em suas diversas dimensões. Mas era de conhecimento público e notório e isso incomodava a Dona Dionísia.

A comadre não era flor que se cheirasse! Tentou de tudo para conquistar o herói antes da mãe de Diana, não conseguira. Restou-lhe o ódio a corroer-lhe os ossos, dia após dia; agora, pressente o que está por vir.

Eu, sentado na minha velha cadeira de balanço, revisitando a vida da comunidade com meus olhos acesos, nos ângulos em que a visão pode alcançar. A pequenina aldeia não passa de uma grande e larga ruela, o comércio ao redor e as poucas casas adornando o restante. Nada do que acontece é perdido de vista. Posso caminhar em largas andanças com o olhar e bisbilhotar a vida como ela é.

É disso que quero falar! Não é novidade que os moradores tenham o nome começado com “di” por aqui, como eu, Dileuso. Tradição passada de pai para filho em respeito ao nome da cidade – Diolinda, inaugurada assim pela junção do nome do herói desbravador e sua amada. E à noite sempre se têm histórias para contar, como a famosa tradição de Diolinda: o padre que virou lobisomem... Verdade pura!

E naquela noite com sua linguagem rumorosa dos sertões, entra atrevidamente naquele lugarejo movido a lamparinas, nos breus que consomem a escuridão. O som ataviado que acossa o anoitecer da vila toma ares conhecidos. Os uivos chegam cada vez mais fortes dominando a madrugada.

Na sequência vai, noite após noite, a característica sinfonia a marulhar os ouvidos. Os sons vindos da casa de comadre Dionísia já não deixam dúvidas de que o passado chegou assombrando o presente e o futuro!


       
O AMANHÃ DE GODOFREDO 
04/11/2012

        Godofredo sai de seu lugarejo em busca de melhores tempos. Carregando a velha mala de papelão de sua pobre mãe que acabara de atravessar a porta definitiva, deixando-o sozinho e os deuses. Naquele sertão apodrecido de dores, seca, poeira, sem sopro de outras vidas, vai Godofredo... Insista numa vida melhor!

        O rapaz sai caminhando por aquele mundão a perder de vista; no cerrado de Grande Sertão Veredas, que por mais que o tempo passe continua com suas características peculiares. Muitas léguas como andarilho de lugar nenhum, chega Godofredo numa bifurcação para entrar na cidadela que vislumbra lá na frente. Uma ventania vem de repente com força descomunal, ele mal conseguindo manter-se de pé, vai como um embriagado, tentando encontrar o caminho a tato.

        São alguns dos minutos tenebrosos da nova jornada que confundem a mente por se apresentar numa situação jamais experimentada. Continua desorientado, vira, revira, cai ao chão, levanta, tropeça em pedras no meio do caminho, buracos, muita, muita poeira embaçante... Até que lhe cai bem ao rosto sofrido uma folha de papel, suja, meio enlameada, bastante destruída pelo clamor dos ventos soturnos dali.

       A folha protegeu-lhe o rosto num momento em que uma forte rajada torna a sua estabilidade corporal ainda mais desajeitada. Descoordenado, faz da folha uma proteção tênue e assim consegue ver um pequeno arremedo de muro à sua frente e esconde-se por detrás deste. Pega a folha e com seu medíocre conhecimento, faz a leitura, o que lhe exige grande esforço.
      Lê: “Escreva seu sonho nesta folha, faça da folha um aviãozinho e o arremesse, ele te levará ao país de seu sonho.”

      Godofredo achando tudo muito estranho, sem entender como pudera o tal aviso saber que ele anda sem rumo? Procura o toco de lápis no bolso, começa a escrever avidamente o que vai aparecendo em sua mente crédula de sonhos e fantasias. A escrita não sai tão rápida quanto os pensamentos... Vai letra a letra, desenhando no papel; as palavras estão soltas, ainda sem significado, toma posse delas e constrói a esperança através do seu desejo...

     Finalmente termina de escrever. Mesmo naquela vida de carências, o pai tinha lhe dedicado bons momentos de alegria infantil, juntos ficavam a construir brinquedos, pipas, aviõezinhos de todo tipo. As lembranças vinham, surgiam naquele momento em que o passado traz no bojo a esperança. O avião de papel pronto para alçar voo, a mão segura firme o objeto e com o braço faz o movimento de decolagem... O avião segue o caminho ao bel prazer do vento diáfano e constrangedor.

     A noite caindo, Godofredo exausto pela tempestade de vento, vê suas forças esvaírem pouco a pouco, desmaia de cansaço ali mesmo. Faz de sua mala um travesseiro e se entrega.

      Godofredo, bem apanhado, com garbosa vestimenta. O orgulho lhe vem de forma doce, pois alcançou o que sempre contara à mãe. Sente que ela está ali, observando sua conquista, o que propiciará novas chances de sucesso em sua vida profissional. É homem feito, construiu-se sozinho após a tragédia familiar que assomou a vida dos pais. Encontrou pessoas em que pôde confiar e auxiliaram na caminhada de metas e estratégias para o alcance de seu objetivo – O grande sonho!

       Um homem se constrói em seus sonhos e no âmago de mãos amigas, bem o dizia Chico Xavier e Godofredo se dispõe aos tais desafios para o alcance do alvo, tendo a contribuição de outros que acreditaram em seu potencial.

      Nada mais tinha daquele garoto da roça, construiu-se com dignidade, respeito e a humildade própria que a mãe ensinara. A coragem no trajeto trazia-lhe seu pai; homem forte do sertão, chamado Ramiro, que nem personagem de Guimarães Rosa; sempre pronto para a lida e o cuidado do pedaço de terra, nunca tendo tempo ruim que o esmorecesse.

       Aquele homem de uniforme das Forças da Aeronáutica, pronto a receber seu diploma de aviador, condecoração de honra. O comandante orgulhoso pelo filho pródigo que encontrou, e ainda mais feliz por sabê-lo escolhido da única filha. A felicidade está completa para aquela família construída pelos contornos que a realidade é capaz de modelar.

      A doce namorada se aconchega em seu ombro másculo, pronta para juntos formarem um casal que promete o amor verdadeiro, a individualidade para a realização do sonho de ambos, a construção de uma relação estruturada e segura. Godofredo ouve a chamada de seu nome para o recebimento do prêmio que demonstra toda a trajetória de um homem em sua glória.

      Caminha solenemente para o local, agradece a todos os superiores, lê o juramento ético como aviador. Na finalização do evento alça voo no avião bélico, numa demonstração à comunidade. Ei-lo, garboso em seu gesto, com domínio natural lança-se aos céus, apaixonado pela profissão escolhida. Nos contornos da revoada elabora voos rasantes dignos de herói – Seu momento chegou esplendorosamente e do alto sente a liberdade tão desejada dos pássaros.

      Godofredo acorda sacudido pelos bêbados que vivem no local e foge dali assustado... Lembrando do sonho e dos caminhos a trilhar...

   

O CASO DO FILHO ÚNICO
24/10/2012

             Marcelo desde criança fora raquítico, amarelado, sempre necessitando de cuidados devido à saúde frágil, ocasionada pelos excessos de sua mãe – superprotetora e autoritária. Tudo estava sempre perfeito se assim ela o delineasse. Tanto o pai quanto o filho viviam algemados às vontades daquela mulher que nunca se saciava, eterna insatisfeita.

        Na vida afora Marcelo fora adquirindo sintomas: dormia mal, noites com insônia; dificuldades respiratórias, a asma ocasionando-lhe emoções a flor da pele; psoríase a cobrir-lhe o corpo fazendo com que as coceiras se transformassem em algo comum no seu cotidiano; tiques expressivos e certa compulsão na alimentação.

        A mãe sempre exigia dos dois homens de sua vida atenção máxima e continuada, seguida de uma sequência de carinhos que a deixasse suprida e canalizasse sua angústia. Marcelo acostumou-se com os exageros de filho único. A mãe, todas as noites, com seus beijos, desejava-o bom sono.

         O rapaz cobrava da mãe o tratamento diferenciado sempre que ia para a cama – a mãe não podia deixar de lhe dar o costumeiro beijinho de boa noite. Quando tal não ocorria, sofria imensamente as consequências: acessos de asma seguidos de forte insônia, que exigiam muitas vezes, a obrigação de sair a qualquer hora da noite em busca de ajuda médica.

         Assim passou a infância e a adolescência; com uma carência difícil de ser suprida pelos excessos recebidos. Exigia sempre mais e a cada vez que se frustrava nova recaída e visita hospitalar. Acostumou-se a este estilo neurótico.

        Com a mãe sempre pronta a suprir-lhe as necessidades, de tanto ser sufocado, transforma-se num jovem introspectivo, com uma compulsão exagerada no consumo de bolos, guloseimas, massas. Associou tal comportamento ao ato da escrita. O que de certa forma evitou o pior – a escrita trazia-lhe a catarse daquela dor desconhecida de si próprio – o que possibilitara retratar sua história em livro; no entanto, o consumo daquele tipo de alimentação iria trazer consequências futuras; como o diabetes, por exemplo.

        Nas suas relações amorosas, Marcelo buscava uma parceira que lhe suprisse as necessidades, tal como a mãe. A última e doce namorada estava sempre pronta a ofertar-lhe seus carinhos. Quando brigavam e ela se rebelava, o jovem ameaçava crises de asma. Não buscara ajuda psicológica nos anos que se passaram e percebia-se no rapaz bloqueios em suas potencialidades.


          Agora, idoso; com os sintomas cristalizados, um arsenal de doenças crônicas. No baile, onde se comemora a sua chegada aos “enta”, juntamente com os velhos pais e sua esposa, Marcelo dá um “chilique” exigindo de todos os presentes – ATENÇÃO!



FIXAÇÃO QUE ASSOMBRA
24/10/2012

            Yolanda é uma jovem mulher, muito bonita, olho de gato, cabelo longo e negro, uma pele cor de jambo, com um perfume natural que lhe cai bem devido ao viço. Ingênua e crédula na bondade humana, sedutora e charmosa na expressão da feminilidade.

        Casada há pouco tempo com o funcionário público modelo. Sempre circunspecto, sério, cumpridor de ordens, bom chefe de família. Vivem bem as circunstâncias da vida marital, supridas as necessidades básicas com zelo e cuidado. O marido costuma ausentar-se por períodos, devido às obrigações do trabalho, que lhe exigem viagens constantes.

        Yolanda, uma clássica dona de casa, sem projetos de vida pessoais, dependente do marido. No período que se encontra sozinha, a maior parte do tempo fica entregue ao ócio e a atividade doméstica. Com disponibilidade, sempre que pode, toma o ônibus e vai à cidade apreciar as vitrines das lojas de seu agrado.

        Numa dessas idas, o vizinho abonado do lado esquerdo, oferece-lhe uma carona providencial, já maquinando transformar aquela situação em algo prazeroso. Ela aceita o convite e no trajeto conversam temas variados; ele trata de usar a sedutora arte do triângulo amoroso, conhecedor dos desejos femininos e dos lances que envolvem as relações.

        O vizinho torna-se um agradável aliado de seus passeios, sempre disponível e envolvente. Aguarda a hora propícia para o bote, pois segundo a regra “não existe aquela que não caia numa cantada”.

Yolanda envolve-se de tal maneira que a presença do moço deixa-a insegura e frívola nas atitudes; ele dá as cartadas em seguida. Flui o momento de paixão, a imensidão de sentimentos à flor da pele, o êxtase da entrega. Yolanda deixa-se levar pelas emoções, razão para quê? Vive o momento da explosão hormonal, que a desfalece a ponto de deixar-se a si mesma.

Esse manancial de sentimentos descobertos na névoa de um terceiro aflora em Yolanda um lado desconhecido, um lado lábil, imaturo, que apenas quer mais, mais, mais, numa invasão arrebatadora que a domina. Ela se entrega. Os encontros se tornam frequentes, quentes... Quer experimentar novas aventuras e desvairadamente anseia por novos testes, novos parceiros.

Assim, de forma compulsiva, utiliza o seu potencial sedutor na atração de novos atores do seu paranoico jogo amoroso: o padeiro da esquina; o leiteiro; o carteiro, o homem comum do boteco; o dono da mercearia, numa ávida busca da satisfação carnal.

As fantasias e desejos sexuais aflorando, ela a não conter-se, ainda sedenta, o que lhe traz em troca novos aspectos destes lances, os quais ainda não tinha experimentado: sofrimento, angústia, vazio.

Na contradição irremediável em que se transformou sua vida, Yolanda é arrebatada por uma depressão que a imobiliza por algum tempo... Num momento de lucidez encontra força para uma atitude final – envenena-se e morre!



ERA UMA VEZ...
18/09/2012

O nosso paraíso perfeito, nosso Shangrilá... Fernando de Noronha!
Era uma vez: Shangrilá. Não consigo pensar em outro lugar que não Shangrilá como o conhecido mundo perfeito, sem ódio, nem tristeza; só alegria, paz e amor... As diferenças são respeitadas e, tanto homens, animais e até mesmo insetos convivem harmoniosamente.

Neste lugar, nada de envelhecimento, morte, dor... Reina a paz do paraíso perfeito! E lá convivem os namorados, os mosquitos Geraldo e Joana, que estão numa fase de lua de mel na relação, após o enamoramento que vem dando à vivência dos dois, significados bastante interessantes, fazendo-os flutuarem no ar.

Mas Geraldo, apesar de amar Joana com fervor e, querer dedicar-lhe todo o tempo que tem numa vida a dois, de forma esplendorosa; lá no fundo, têm suas ânsias sobre o que ainda não conhece e gostaria de se atrever a desvendar: o mundo fora daquele lugar.

Nada comenta com Joana; “mosquitas”, tal qual mulheres, normalmente querem influenciar o sujeito a desistir de aventuras. Sonham com a vida a dois em perfeita paz e confraternização, junto daqueles que amam. Inclusive, ela anda muito entusiasmada, pois ficaram de se encontrar, neste dia, as dezessete e trinta para providenciarem detalhes do enlace que já está se aproximando.

Geraldo se prepara para o encontro, feliz e sentindo a vida por realizar-se; ainda assim, não deixa de ser, como se diz, bolinado pela estranha ideia da existência de outra realidade fora dali. Quer conhecer o que supõe existir além daquele horizonte. Quer arriscar-se a uma última experimentação, sua última aventura de solteiro...

Lá vai ele, arisco em seu voo. Ainda tem algum tempo disponível até o encontro marcado. Afinal, quem não arrisca, não petisca... Ele pensa com seus botões.

O que não sabe é que além daqueles portões do reino encantado, existe uma realidade por demais traiçoeira. Outro mundo, onde as presenças de miséria, fome, multidões em sua carência máxima vivem numa comunidade, num sol escaldante de mais de 40 graus. O que mais têm lá são mosquitos! Aquela gente local vive sempre emparelhada, com instrumentos diferenciados para destruir essa praga que ronda os alimentos, enfeiam a cidadela, trazem doenças e incomodam de forma extrema.

E o que era para ser uma aventura emocionante, uma verdadeira despedida de solteiro; de repente, traz a Geraldo uma espantosa fatalidade. Geraldo cai num pega mosca e acaba faiscado, tibum no chão! Agora enfrenta a possibilidade da morte... Algo que sequer tinha imaginado possível. Está agonizante, dores por todo o corpo, uma das asas chamuscada pela energia que emanou do pega mosca.

É tanto inseto que a gente dali nem se ocupa em observar se os mosquitos morrem ou não... O que dá chance a Geraldo, ofegante, com poucas forças, mas que volta a rondar sua realidade e a pensar no seu amor, Joana, que lá está, esperando-o.

 Busca dentro de si toda a energia que lhe resta para, em seguida, tentar um voo. E o faz, ainda cambaleante, num voo rasante, uma das asas a deixá-lo desequilibrado, consegue escapar por um triz... E, por poucos segundos a mais, estaria sem um fio de vida, se não fosse já estar em Shangrilá... Restaura-se instantaneamente; naquele mundo onde não existem tragédias. Escapara por pouco. Consegue chegar ao encontro marcado em cima da pinta, sabedor que sua realidade vale a pena ser vivida!

Joana lhe espera ardente de paixão!


O CASO DO AMOR JUVENIL
03/06/06

            Marina, garota ainda, se apaixona. Final de tarde! Festa na casa de amigos. As festas iniciam cedo para também cedo acabar.
 Nada a comemorar, festas em casas de família são assim: oportunidade de encontro dos amigos e; encontro com o príncipe, porque afinal, qual moça não acredita nele.
            A festa transcorre animada. Gente interessante, papo descontraído. A novidade veio dar a praia, de relance, ao virar o rosto e encontrar um olhar negro, sombrio. Alto, esbelto, o rapaz mexe com ela e nos olhares, Marina sente arrepios. Encabulada, tímida, se recupera da situação. Músicas. Ah!  Festa dançante, costumeira!
            Convida a moça para a dança. Aos poucos, trocam respostas às perguntas de “Como se chama? Estuda? Idade?...”. Trêmula ela; ele, jeito matreiro, conquistador. Ela vê o deus do Olimpo... Lindo, lindo e alto.
            Final de festa! Moça de família tem hora para estar em casa. Pais rígidos, não toleram desobediência. Marina segue ordens. O rapaz leva-a até o portão. Um leve beijo transforma em novo encontro.
            Entra em casa, mal sabendo que a história deixaria marcas profundas em sua alma adolescente. Lembra-se do beijo inocente. Há tempos não sentia o calafrio, aquela sensação deliciosa. Apenas com o primeiro namorado, após o primeiro e doce beijo simples e inocente, toque de lábios. Não aprendera a beijar!
            Começa o namoro. As coisas demoram a acontecer. Na primeira semana, leves beijos e, somente algum tempo depois, ele criara coragem para ensiná-la a beijar. Aprendera de verdade! Beijo de língua! Complicado inicialmente, mas torna-se exímia no quesito.
            Relacionamento se estendendo. Conhece os pais do namorado. Filho único de família estranha, mas nada que assombrasse. Na verdade, fora adotado pelos padrinhos. Tem família numerosa e os pais cederam-no, visando oferecer-lhe melhor chance na vida. Regalias. Filho único, se sabe! Os comportamentos imaturos serão percebidos. Ela, fantasiosa, queria mesmo era ser feliz para sempre!
            Namoro de verdade era na casa dos pais. Marina conhece as primeiras ardências do amor. Troca de carinhos, o líquido libidinoso a escorre-lhe entre as pernas. As sensações crescentes, tomando conta.
               Vai buscá-la na escola. Têm tempo, caminham devagar. Conversam sobre “virgindade”. Em certo ponto da conversa; provocativa, inventa que não é virgem. Dizem que à palavra dada não se volta atrás. Pudesse voltava. Maldita hora que age de forma ingênua e tola. Quer parecer diferente!
            Ele agora sob domínio da expectativa, insiste levá-la a lugares cada vez mais íntimos: "Se não é virgem, qual problema? E, se o for – prove!". Passa a viver angustiada! Virgindade valor sagrado. A mãe ensinara sexo é pecado. Enquanto isso, ele, forçando a barra. Quer a certeza!
            A primeira vez que saem, Marina sente forte dor no peito, dentre muitas sensações, as quais não consegue expressar; completamente trêmula e indecisa sobre o que está para acontecer.
            Primeiro de muitos encontros. Carícias! Cada vez mais familiarizados com a nudez dos corpos; mas respeito ao sinal de não ultrapassagem frente a tal virgindade.
A vida passando, os dois contando ano de namoro. Cada vez mais intimidade. Ao invés de saudável, a relação torna-se doentia. O ciúme terrível passa a ocupar situações de conflito.
            As amigas a alertam quanto aos comportamentos estranhos do namorado, pois proibira a convivência com elas.  Marina conta-lhes planos de casamento; mas uma exigência – ela deixar os estudos e o trabalho, cuidará da casa, do marido – apenas o trabalho doméstico. As amigas aconselham... Marina, cega de amor, não ouve!
            O rapaz costuma buscá-la de carro no término das aulas. E, se acontece de brigarem no caminho, altera-se excessivamente; num repente é tomado por uma ira, aperta o pé no acelerador, faz Marina gelar. Certa vez joga o carro num barranco em alta velocidade, trazendo risco de morte a ambos. Quando ele expressa tais comportamentos, Marina custa a crer no que vê: "Será a mesma pessoa que namoro?". Tais comportamentos se tornando frequentes, a moça começa a enxergar outra realidade e, se sente ameaçada, naquele amor que se transforma em medo!
            No encontro íntimo decisivo, o rapaz força a barra para introduzir seu sexo. Marina percebe a intenção e empurra-o; tarde demais: sangue na cama! Chora a perda da virgindade sem penetração; o rompimento selado; sem penumbra de felicidade.
Ele, com os movimentos da moça supõe uma reação anormal, age de forma irracional; tapa-lhe o rosto com o travesseiro, sufoca-a. Ela agita na cama, não consegue desvencilhar-se. Sem ar, tem a ideia de fingir-se desfalecida. Funciona! Vicente retira o travesseiro e Marina, ágil, levanta-se assustada. Vicente, com frieza, justifica a intenção.
            O corte está feito. O amor de Marina – misturado à raiva, rancor, culpa (não escutara a mãe!), à angústia.
Chega o fim – último encontro. Marina rompe, diz não mais amá-lo. Vicente, transtornado, ameaça a namorada, ataca dizendo que contará a todos que não é virgem. Marina reúne forças; diz que fará o mesmo: contará que ele não foi homem suficiente para fazê-la mulher. A sua arma! Homens têm pavor de serem conhecidos por sua incompetência no amor. Sua arma! Vicente não conseguira levá-la ao auge, lhe proporcionar o prazer; se tornara definitivamente uma mulher. Sem o prazer do orgasmo. Sem o clímax.
Outro dia, e a leveza transpira na pele de Marina. Leve e livre; ao mesmo tempo, apreensiva, paranoica, seu segredo revelado, a vizinhança a par de sua intimidade. Convive com a incerteza!
O fim de semana transcorre tranquilo. No dia seguinte, interrompem as aulas para informar a ela que o pai do namorado veio avisar estar o rapaz hospitalizado. Feriu-se a  si mesmo, ao quebrar o vidro da porta aos socos. A moça visita-o, encontra-o com a mão ensanguentada, médicos atendendo-o. Abaixo da cama, um balde pela metade em sangue.
O rapaz hospitalizado por rompimento deliberado de veias e artérias. Marina conhece nova chantagem! E pela segunda vez, reconsidera e reata o namoro – não é hora para discussão. Aquele homem torna-se o diabo e, continua a persegui-la!
Mas o elã estava perdido! Rompem definitivamente! Vicente continua a perseguição! Marina sem privacidade! O tempo! O tempo passa e o medo a rondar sua existência devido escolhas impensadas. Marina não cede mais às chantagens. Vicente desaparece.
            Passa a moça desconfiada, todos os olhares a conhecer sua verdade. Anda de cabeça baixa, tolhida ainda mais em sua índole insegura. Homens tornam-se seus inimigos! Pagariam pelo mal que Vicente a fez! Num pacto consigo mesma – passa a usar das armas de sedução para proteger-se dos homens. Eles são as vítimas! Objetos de desejo!
Marina lida na vida delineada por tais estratagemas. Até que um dia... lá no fundo... renasce a esperança de encontrar alguém especial!




ATO FALHO NO VELÓRIO
04/08/2012

             Foi convidada pelas amigas a ir a um velório de um conhecido de uma delas. O fato foi considerado trágico e todos que o conheciam estavam inconformados com o acontecido.

            O rapaz muito jovem, nos seus dezessete anos, saiu com um grupo de colegas para banharem-se num rio e não se sabe como, o tal rapaz afogou-se, apesar de saber nadar muito bem.

            Uma das amigas era a recente namorada do rapaz. Pouco mais de mês de namoro, ambos da mesma idade e, naquele momento, todas as amigas se viram na obrigação de fazer-lhe companhia.

            Durante o velório, que naquela época era comum fazê-lo em casa, lotado de gente e em cada grupo, o comentário era sobre como tinha ocorrido a tal catástrofe. Muitas versões se ouvia ao passar próximo aos ditos grupos; parecendo a tal história do telefone sem fio.

            Muitos olhares se dirigiam a mais recente viúva, a tal namorada, que passou também a receber os cumprimentos de todos, sendo considerada da família.

            A tal moça sentia-se constrangida com a situação. Mal mal tinham se dado as mãos durante o namoro, namoro naqueles anos e, já estava ali, rodeada por uma porção de desconhecidos, com a obrigação de sentir-se desconsolada pelo desaparecimento súbito do namorado.

            Os ritos tradicionais aconteciam. Os familiares recebendo os cumprimentos das pessoas que chegavam, inclusive indicavam para a tal moça dizendo ser a namorada do rapaz.

            Em todo grupinho tem sempre aquela que se diferencia; neste grupinho de amigas tinha aquela que não têm papas na língua; e se expressou, comentando que existe um ditado que diz: “Quando a moça perde um namorado por afogamento está predestinada a ficar solteira para sempre, pois não consegue arranjar outros namorados”. Vá jogar praga lá na China!

            A moça, coitada, que já estava numa posição de mal estar frente àquela situação ficou com a tal revelação a corroer-lhe os pensamentos.

            O tal grupinho de amigas foi o único que deixou para cumprimentar após diminuir a confusão de passantes ao redor da família.

            Chegou a vez delas. Cada uma cumprimenta a mãe do rapaz e diz um daqueles ditos tradicionais à situação: “meus pêsames”; “meus sentimentos”; “minhas condolências; ...”.


                Quando chega a hora da amiga que foi convidada pelas outras para o tal do velório, ela, embasbacada com todo o acontecer de coisas naquele evento, e cuidando-se, preparando-se mentalmente sobre o que dizer, confunde-se toda e solta: “minhas felicitações”...




SOLTEIRICE
31/03/05

Êta vida besta, Meu Deus!”, Drumond está certo em seu poema. A mesmice está instalada em toda parte. O cotidiano carcomido e insistente não cessa de se fazer presente.

            Estela nos seus amadurecidos anos vive a acostumar-se com os planos, sempre tão costumeiros e parecidos no seu dia a dia. Tinha sonhado um mundo tão diferente no ardor da florescência; eis agora, uma dona, sozinha, sem ninguém a chamar de seu.

            Tem a quem culpar: o pai, extremamente rígido, um policial honesto, mas que se considerava acima do bem e do mal. Todos os pretendentes de Estela não estavam no grau estimado e exigido por ele.

            Estela foi no carrear dos anos, experimentando novas relações, mas o desagrado de seu pai eliminando mais um interessado.

            Eis que apareceu o Silvino, baiano arretado de bonito, este a puxou pelo coração de forma demasiada, não o deixaria escapar, mesmo o pai teria que respeitar seu desejo. Durante a apresentação, após o cumprimento, o pai tratou de conhecer pormenores da vida do sujeito. Estela, com uma raiva interna a não caber dentro de si, contida, aguardou o correr dos acontecimentos.

            O Silvino participou ativamente da conversa, com a sagacidade de todo o baiano, envolvente. Respondeu a todas as perguntas, tinha trabalho fixo e bom ordenado e acataria todas as regras determinadas pela autoridade do pai da moça.

            O moço se despediu e Estela, mais uma vez, aguardou a decisão do pai e seus comuns pontos de vista sobre seus pretendentes. O pai relatou, então, que não tinha ido com a cara do sujeito: “os baianos não são de confiança, são um povo malandro, não gostam de trabalhar, se dão bem é com a vida mansa. Casamento com baiano não dá futuro a moça nenhuma. Não acreditei em nada que ele me disse; esse moço, aqui em casa não será bem vindo”.

Estela, apesar de querer afrontar o pai e pontuar seus desejos; não o fez. Aquele homem, seu pai, estava acima dela de forma categórica. Nunca ousou ir além, permitiu que os simples preconceitos de seu pai vingassem. Restou-lhe a resignação. Deixou de levar novos pretendentes, depois do Silvino não arranjou mais ninguém: “se ninguém está à altura de meu pai, não levo mais ninguém”.

            Até hoje, passados muitos anos da morte do pai, Estela, ainda guarda mágoa. No seu rancor que dura desde a juventude e que não achou meios de deixar escapar, ainda culpa o pai por não ter se casado.


O FLERTE
10/01/08
             Você se lembra daquelas janelas basculantes no fundo da sala comprida? Era de lá que a sonhadora moça ficava a observar se o príncipe encantado tinha chegado à lanchonete, que ficava no andar de baixo, numa construção em frente.

            Na lanchonete se encontravam para o flerte, naquele romance ingênuo de tempos conhecidos de todos nós.

            A moçoila sentira que o tal moço era especial da primeira vez que botou os olhos nele; ele, com seu jeito cavalheiro diferenciava-se dos outros rapazes. Pelo menos era o que pensara e ousara desejar.

            Os dois, naquela história do flerte, sem avanços, a deliciarem- se, da primeira marca – a do olhar!

            Tudo ocorreu  ipsis literis assim:

O príncipe encantado saindo da lanchonete e a jovem sonhadora chegando; os olhares se encontrando rapidamente. Momento intenso. Em questão de segundos, apenas o caminhar dos olhares, a frase definitiva já a sair-lhe dos pensamentos – "vou me casar com este homem."

            O tal moço não a enxergara; não a tinha percebido, mas a danada, misto de sedução e ingenuidade, tratara de encontrar um jeito de isso acontecer.

            Pela janela do basculante descobrira a que horas ele ia para o lanche da tarde, todos os dias.

Com o olhar de lince, a que nada escapa, quando o via, corria para o esperado momento – o da conquista.  Aos poucos, como todo príncipe que se preza, ele foi descobrindo naqueles olhares insistentes, ao mesmo tempo cautelosos, a sonhadora moça.

            Ela encasquetara em querer descobrir mais sobre ele: tinham um amigo em comum, e em momento propício, enchera o rapaz de perguntas, de forma insistente: "Onde ele trabalhava? O que fazia? Como se chamava?..."

O amigo, desconcertado com o exagerado interesse, não teve outra opção – deu-lhe as respostas e, em outra ocasião, apresentou-os. No toque das mãos, um incômodo inexplicável. Algo além do comum e corriqueiro; algo incomensurável, como uma segunda marca!

            Os flertes continuaram, e a conquista, mais dirigida por ela, seguiu a toda. Não sabia mais o que fazer para mudar a rota.

            Mas.

Como dizem, quando os destinos têm que se cruzar, nada há que se fazer. Coincidentemente, a jovem, em férias do trabalho, num fim de tarde na cidade, dá de cara com o tal sujeito de seus sonhos bem à frente, como se aguardasse alguém.

Imediatamente, não se fez de rogada, passa rente a ele e se faz percebida. Alcança o intento, ele segue-a com o olhar, reconhecendo-a. Desaparece em instantes, mas, certeira do que desejara.

            Segue o fluxo dos tempos; os flertes na lanchonete; os dois sem a coragem necessária para o algo mais.

            Como não acreditar em destino, não acreditar que o caminho está traçado – tanto para o bem quanto para o mal.

            No caso, o caminho parece ter sido para o bem, se presume. Agora, além dos contínuos flertes, conversavam amenidades.

            Longo tempo vivendo os tais lances da conquista e saboreando o prazer de ser percebido pelo outro.

            Hoje, a mãe conta a tal história para os filhos, que morrem de rir do jeito romântico dos tempos passados.

            Quem é o marido?... É ele mesmo, o rapaz do flerte na lanchonete. Amor à primeira vista???



TEMPO DE PÁSCOA
04/08/2012
            
     A Páscoa estava prestes a chegar e somente eu me encontrava sem namorado.

      A apenas duas semanas daquela data festiva, eu tinha que mancomunar um plano para ganhar um ovo de Páscoa.

      Tempos de juventude, asas da imaginação, o que não faltam são estripulias a se fazer com o coração alheio.

      Pensei, pensei, pensei muito e maquiavelicamente, arquitetei um plano. No meu pensamento, eu tinha certeza que ganharia um grande, um enorme ovo de Páscoa – não aceitava que fosse pequeno, não!

       As amigas zombavam de mim por ser a única que não ganharia um ovo na ocasião. Desdenhosamente falei que iria ganhar o maior ovo de Páscoa que elas já viram. Fui à luta!

       Parti para o ataque ao planejado. Eu tinha um admirador, um rapaz que desejava namorar-me há tempos. Eu ficava apenas na defensiva, pois ele não me atraia a tanto.

       Comecei a espalhar, a poucos dias da Páscoa, que tive um sonho e nele, o meu admirador, tinha me dado um enorme, um grande e bonito ovo de Páscoa e eu estava completamente feliz, radiante com o tal presente.

        Contei a apenas três pessoas que sabia mais próximas a ele e aguardei a tão esperada data. E não é que deu certo!

        Chega o dia da Páscoa! Sou chamada ao portão pelo rapaz e recebo de presente o mais belo ovo de Páscoa que já ganhei na minha vida!

        Passo o dia alegremente, saboreando cada pedaço do doce chocolate, e não ofereci nenhum pedaço ao tal moço que me cortejava.


                                               
VELÓRIO ÀS AVESSAS
15/03/05
Jazia em seu túmulo, preso àquela madeira retangular, sem espaço. Ela olhava para ele e, pensava se aproximava mais, lhe tocava, ou sei lá o que devesse fazer, mas continuou ali, não conseguindo chegar mais perto, imaginando como ele devia estar frio.

O velório, lotado de gente, que aglomerava em frente ao seu caixão para as últimas despedidas. Ela parecia esquecida do mundo, no meio daquele tumulto, só com seus pensamentos; e ele, que jazia ali, tomara parte definitiva deles: “Meu Deus! Que desperdício, um homem desses e aí, sem serventia nenhuma, isso não está certo, hei de fazer alguma coisa”.

            Ela achou que seu pensamento tinha a força, o dom de lhe devolver a vida. Esforçou-se ao máximo, não aceitando em hipótese nenhuma que ele tivesse morrido, que tivesse chegado a sua hora: “Vou usar meus poderes com certeza, isso não vai ficar assim”.

Achando que tinha poderes, ali estava, ordenava-o a se levantar, porque afinal de contas, eles ainda não tinham vivido a cena que lhes pertencia e, que até àquele momento, tinha sido adiada para ocasião mais propícia.

            Continuava a implorar que se levantasse; que tivesse pena dela; que ainda não fosse embora, não antes de viver uma história que idealizou como digna de romance. Ele ali; não movia uma palha!

             Várias passagens se misturavam em sua cabeça, lembrando-se das oportunidades perdidas. Sentiu raiva de si mesma, questionando-se do porque não aceitou os olhares, as propostas, pois se dependesse dele, já teriam se deitado há muito, mulherengo que era; enrabichava fácil por um rabo de saia. Tinha atributos suficientes, além de outros atrativos que eram vangloriados por ele: só descobertos entre quatro paredes, mas não houve tempo.

            Ela já se revoltava de nada ter acontecido. Começava a sentir raiva daquele sujeito que não se dignava a mexer um milímetro que fosse: “Se ele saísse dali, deitado naquele caixão e o levassem para o túmulo definitivo, não ia deixá-lo descansar em paz, não ia lhe dar sossego”, ela afirmava, no seu pretenso poder de conseguir que ele retornasse à vida: “Quem era ele para pensar que ia embora assim, de forma tão fácil; tinha um preço a pagar, é devedor desta alma feminina”.

            Há! O tempo. Quem pode contra ele. Chegou a hora derradeira! A das despedidas, dos chororôs por todo o canto. Os homens encarregados de levar o caixão se aproximaram, não havia mais tempo. Meu Deus! Lá se foram todos: o caixão e seus acompanhantes. Ela preferiu não fazer parte daquele teatro.

            “Sim; é um teatro, com certeza o encontro amanhã. Ele está só ludicamente brincando de cão e gato. Não é possível que ele, que já experimentara seus abraços; que vivia intensamente – não, ainda não está na hora de despedir-se”.  Ela foi-se embora.

Nos primeiros dias não sossegou. O pensamento que perpassava sobre aquele homem continuava a ter muita vida: “Ele há de ter sete vidas”, ela o sabia. E teria que sobrar uma para viver com ela.

Até hoje não dá sossego para o tal homem, que não lhe sai do pensamento. Continua sem cair na real, na esperança de algo se concretizar, do tão sonhado encontro, do tão sonhado beijo; momentos não experimentados.

Teimosa; ainda pensa que na sua realidade tudo é possível e, até imagina que foi ele quem ligou no meio da noite. Sua fantasia é tão intensa que mescla a realidade e sonhos. Ela tem a nítida certeza que foi ele quem enviou uma mensagem, apesar de aparecer um número real, ao qual não quis nem checar.

Este homem morreu para a vida terrena, mas em seus pensamentos vive ainda mais intensamente que antes. Com a vantagem – Vive somente para ela. Como o desejou! 


O VELÓRIO DE VOVÔ
12/01/2008

            Lembro-me do caixão no meio da nossa sala de estar. Uma sala humilde, com os móveis recostados ao canto para ser possível acomodar, além do defunto em seu caixão, as pessoas que chegavam para o velório.

            O caixão também era característico das condições da família, muito simples, madeira fina e frágil.

            Eu olhava aquela imagem à minha volta, meio sem entender o significado do que se passava. Aquele entra e sai de gente, minha mãe e outras pessoas aos prantos.

            Este foi o meu primeiro contato com a morte. No meio da sala, vovô parecia apenas dormir um sono profundo, merecedor pelo cansaço de seus oitenta e tantos anos de vida. Estava calmo, leve, parecia que sonhava.

            Achei estranho seu semblante; já que o tipo característico de vovô era outro. Vovô era meio ranzinza, sempre de mau humor, cara fechada e brava. Nunca vi vovô sorrir, rir com graça.

            Ele estava ali, postado frente àquelas pessoas. Pensei que se ele pudesse escolher, mandaria aquela cambada ir cuidar da própria vida e deixá-lo sossegado em seu canto.

            Conheci o triste destino de todos nós aos meus dez anos de vida. Muita rezação, velas acesas, aquele cheiro forte de flores do campo – flor de defunto, vim a saber tempos mais tarde.

            Tal acontecimento se prolongou por algumas horas, para mim parecia que tinha durado o dia todo. O clima carregado de tristeza era visível, mesmo para uma criança que não entendia a fundo o significado de tudo aquilo.

            Ficava a observar cada instante daquele ritual, ritual estranho mesmo! Uma pessoa em sono profundo e outras velando-a ao redor. As pessoas comentavam sobre a morte de vovô: fora atropelado, numa dessas rodovias, por um desses caminhões em alta velocidade.

            Chegou a hora do cortejo até o cemitério. O caixão foi levado para dentro de um carro grande e preto, seguido pelas ruas por outros carros até a chegada ao cemitério.

            Esquisito mesmo foi ver os coveiros descerem o caixão num buraco fundo feito na terra. Todo mundo jogando terra em vovô, cheguei a pensar que podia sufocá-lo, mas até minha mãe fazia este gesto de forma tão natural, que as crianças fizeram o mesmo. Em instantes tudo tinha se acabado. Ao derredor, apenas muitas cruzes, as pessoas se afastando do local.

            Aquela sala de minha casa ficou com aquela marca. Não conseguia ver aquele espaço como algo salutar e alegre. A morte permeou ali por muitos e muitos anos da minha meninice.



ANÔNIMOS
14/10/08

    O que aconteceu com o homem do carrinho?
      
  O que será que aquele homem está fazendo todos os dias, todas as manhãs, no mesmo horário, na cabine de telefone público?

   Primeiro vou explicar a causa de minha curiosidade. Têm, no mínimo, uns dois meses que passei a ir para o trabalho de metrô. E até chegar à estação, lá se vão bons oito quarteirões bem andados. A prática está me trazendo bons dividendos: economia, uma boa caminhada para diminuir o estresse (já que ando bastante sedentária e com os problemas cotidianos da vida: filhos, trabalho, desejos, realidade, opções, finanças) etc.

   Mas vamos aos fatos. Verificava que todos os dias, próximo à estação, do outro lado da calçada, o homem do carrinho lá estava todas as manhãs. Às vezes, sentado num tamborete, provavelmente devido à idade. Às vezes, andava próximo ao carrinho, cheio de guloseimas, muitas ali de sol a sol, esperando os potenciais compradores.

  Porém, de tempos pra cá, o homem e seu carrinho desapareceram. O que terá acontecido? Será que está doente?... Morreu?... Cansou-se daquela lida?... Vá saber!

  Estranho mesmo é o homem da cabine telefônica. Todos os dias, naquele horário da manhã, está ele em frente à cabine, de olho no celular e na cabine. Parece economizar ligando dali, as chamadas recebidas; ou quem sabe, pode estar tramando algo, contratando serviços, coisas mais leves, na conquista. Pode ser todas ou nenhuma. Aparentemente anda muito arrumadinho, parece perfeccionista, sapatinho engraxadinho, tudo no lugar, do tipo mauricinho. O que tanto faz este homem na cabine telefônica?

 Mas eu quis mesmo é saber a fundo, o que tinha acontecido com o homem do carrinho. Resolvi perguntar para o segurança da estação – pensei que se ele estava todos os dias ali, com certeza, saberia o paradeiro ou o acontecido com o homem.

  Enganei-me, o guarda que cuida da segurança local estranhou a minha pergunta. Disse nunca ter observado um velhinho naquele local. Agradeci e percebi que nem sempre detalhes da vida cotidiana chamam a atenção de outros.

 Fiquei também um pouco decepcionada, será que aquele velhinho não tinha importância nenhuma? Era um trabalhador, agradava aos que paravam para comprar suas guloseimas e por outros nunca fora notado!

 Não desisti e perguntei também, num outro dia, para a moça que vende guloseimas, só que dentro da estação. Ela não sabia quem era e nunca o tinha visto. É, somos realmente anônimos neste mundo.

  Finalmente, há duas semanas (isso após um ano e meio), ao sair da estação do metrô, deparei-me com o homem e seu carrinho de guloseimas. Não aguentei de curiosidade e disse-lhe que andava sumido, o que tinha acontecido? Ele respondeu que esteve muito doente, mas que já se encontrava restabelecido.

 Fiquei feliz com seu retorno ao trabalho, mas não comprei nada que oferecia no seu carrinho de doces!


A LOUCA DE PRETO
21/03/2008

            Lá vai ela, beirando o muro das casas. Anda sempre assim, recostada às paredes, com olhar atento e espantado, como se fugisse de algo ou alguém.

            Quem olha para ela vê uma mulher entre molambos e sempre vestida com um capote preto, muito pesado. Suja, exala um mau cheiro ardente. O cabelo sarará, encarapitado e completamente encharcado de piolhos.

            Quando dizem para ela tirar o casaco preto, ela se encolhe nele, como se protegendo. Não tem o hábito de conversar com ninguém, solta uns grunhidos, mas entende o que lhe dizem.

            Sempre à espreita, como se algo catastrófico fosse ocorrer. Está sempre preparada para o que virá!

            Toda a cidade se acostumou com a louca de preto. É assim que a chamam. Na cidadezinha ninguém conhece sua história, nem de onde vem.

            Um dia chegou, foi ficando. Pede comida, alguns dão; às vezes, recorre ao lixo, remexe até encontrar o que comer.

            Gosta de ficar mais afastada dos outros. Quando alguém tenta se aproximar; foge e, se esconde dentro do casaco preto, solta uns gritos para assustar aos  desavisados.

            O mais estranho acontece com as crianças. Nada ameaça fazer, não se comprime e até pode-se observar um sorriso querendo esboçar naquele rosto indecifrável.

            "O que ela tem a dizer? Do que tem medo? Foge de que ou quem? Por quê?" Perguntas que permeiam os estrangeiros que chegam à cidade, estranhando aquela figura.

            Para a gente do povoado ela não é mais estranha. Ninguém se incomoda com ela e quando aparece um mais curioso, ela trata de escapulir e se esconder.

            A garotada faz festa com ela; costuma fazer parte das brincadeiras dos pequenos, mas sempre acabam zoando dela, que no final sai grunhindo, sem maltratar nenhum moleque.

            Têm momentos em que fica parada no mesmo lugar, como que paralisada. Nestes momentos pode-se observar que tem um belo rosto por detrás de toda aquela sujeira.

            Até suas atitudes e maneiras, logo após esses transes, demonstram que ela teve uma educação esmerada. Gestos delicados e pouco apropriados de uma louca. Mas quando cai em si, sai feito louca grudada aos muros, até conseguir se perceber segura.

            A louca de preto foge para a escuridão que fez seu porto.



MUNDO DA LUA
04/01/08

      Geni limpa o banheiro da casa da patroa. Usa suas forças na retirada dos limos nos cantos. Limpeza pesada e ingrata! Faz a limpeza com os detergentes que procuram eliminar de forma rápida a sujeira acumulada, mas deixam sequelas no organismo das pessoas.

   A quem olhasse para ela naquele exato momento, diria estar ela em transe. Compenetrada em seus pensamentos, parecendo estar fora da realidade. Em outro mundo, como se diz.

   "Como minha vida mudou desde que cheguei a esta cidade grande. Quantos sonhos de criança, de mocinha, se evaporaram. Cá estou eu: com filhos e neto. Aos trinta anos de idade, maltratada pela vida, saúde fraca e, agora, responsável por outras três vidas.

   Como o tempo passa depressa. Recordo de mim ainda criança, a correr pelas ruas empoeiradas de minha cidadezinha do interior, ou, a fazer troças com os garotos que me desejavam a todo custo.

   Nunca soube explicar essa explosão dentro de mim. Aos onze anos já me aninhava com algum garoto, num esconderijo.  Só ouvia:  _ Geni! Geni! Geni! Eram os meninos a me gritar. Eu, menina, a correr junto com a turma, a fazer peraltices e sentir o gosto bom nos encontros às escondidas.

   Já aos treze, "Mainha" vendo que eu não tinha juízo, botou-me no trem pra capital. Fui morar com uns tios e trabalhar em casa de família. Tia morava numa favela junto com a família. Eu, vim morar numa casa de madame, no quarto de empregada, minúsculo e, nos fins de semana ia passear na favela.

   Lá conheci aquele safado do Nestor, todo fogoso, que vinha pro meu lado botando banca. Eu me apaixonei pelo danado, danado de bonito aquele negrão. Ele vivia vagabundeando pela favela, fazendo biscates aqui e ali, porque não gostava do tal do estudo. Nisso éramos bem parecidos, nunca fui de entender muito dos números e das letras, sei o suficiente pra vidinha que levo.

   Aos poucos fomos nos embolando, até que não entendi bem porquê não sangrei naquele mês, já que isso acontecia todos os meses. Passaram-se dois meses e eu sem entender direito... Como conversar sobre isso com alguém? Eu não tinha amigas; as garotas da favela, logo, logo, me trataram como uma intrusa e não se aproximavam. Também, eu era a negra mais bonita do lugar! Corpo feito, sabia seduzir qualquer caboclo que me interessasse. As garotas ficaram enciumadas, já que ainda tinham aparência de criança.

   Na casa da patroa comecei a sentir enjoos e fazer vômitos ao cozinhar, coisa que nunca tinha me acontecido. Eu estava mole na faxina da casa; sonolenta; contava as horas para ir para o quarto. Nunca fui de pensar muito no que me acontecia; vivia a vida como ela se apresentasse.

   A patroa estranhou o meu mal estar frequente antes de mim. Eu já estava me sentindo gorda, com a barriga dura. Foi aí que ela perguntou se eu não estava grávida. Levei o maior susto! Sem acreditar naquilo que me acontecia. Mas, pelos sintomas que fui relatando a ela, concluiu que eu estava mesmo esperando um bebê. Um bebê? Eu???

   Contei pro Nestor e ele tratou de cair fora dizendo que o filho não era dele, que o problema era só meu. A barriga só crescendo até que a tia percebeu. Nasceu uma criança sadia, com aqueles olhos grandes a me perguntar quem eu era. No registro constou só o meu nome.

   Não sei como consegui criar essa menina e a outra, que nasceu dois anos mais tarde. Sem pais. Eu que mal compreendia a vida, agora com mais duas gurias para sustentar.

   Nunca entendi bem o que a palavra "mãe" significa, apenas sei que cuidei daquelas criaturinhas que não pediram para nascer. Agora ouço: _Vó! Vó! vó! É meu netinho gritando, querendo alguma coisa, todo sapeca em sua meninice. Faço suas vontades, não sei dizer não! Mais uma boca pra alimentar e..."

   Geni assusta com a voz da patroa que lhe fala: _ Agiliza Geni, agiliza, que você vai chegar tarde em casa!

   Geni retorna aos afazeres que a hora já tardava.






ORQUÍDEA
08/07/07

   Chega todo franzino carregando a mala enorme. Trouxe tudo que tinha: algumas roupas gastas e simples; um chinelo; a escova de dente e um pente. Veio para nunca mais voltar. Sempre quisera ser alguém e não poderia perder tal oportunidade.

   Na casa da prima ia ajudar nos afazeres domésticos, mas se esforçaria para estudar, estudar e assim, começar uma vida independente, sem o comando de ninguém.

   Morava na roça, cidadezinha de interior, sem futuro, só a roça a atingir a vista, juntamente com a mata a perder de vista. Transporte, não tinha; se quisesse tinha que caminhar muitas léguas à pé. Raquítico que era, não conseguia nem pegar um corpo devido a lida desde a tenra idade. Agora, deixou a família, foi pra cidade grande realizar seu sonho de pequeno. Era ambicioso, queria ser alguém importante.

   O seu cotidiano iria confirmar que o futuro seria difícil. A prima era do tipo de pessoa que gosta de sugar do outro tudo o que pode. Não tinha direito a nada, pois vivia de favor. Ai dele se a contrariasse, enviava-o de volta para a roça. E assim vão seus dias... Suas noites. Muito trabalho doméstico... Sem descanso. Não reclamava, vislumbrava-se no olhar uma certa tristeza.

   Chegou o tempo da escola, início de ano, muitos planos. Com seus doze anos, ainda criança, mal podia aproveitar o tempo como as outras crianças da rua. Elas lá fora brincando, correndo, em algazarras. Ele com as tarefas de todo dia. A prima permitia brincadeiras por pequeno período. Quando a brincadeira estava no auge, era chamado para as obrigações. Resignado e conhecendo suas limitações obedecia de cabeça baixa, ia lavar os vasilhames; cuidar da casa; lavar a roupa.

   Três anos se passaram e ele seguia com sua rotina. Escola, afazeres, ordens a cumprir e finalmente, à noite, exausto, ia pra cama. Mesmo assim, ainda encontrava forças para sonhar e se deixava embalar pelo sono, pelo sono.

   Aos dezessete conseguiu um trabalho em casa de um colecionador de orquídeas. Aprenderia o ofício de tal forma que não interferisse nos estudos e ainda, ia ter um quartinho só seu para morar. Visitava a prima nos finais de semana e então, tinha que trabalhar dobrado: limpeza por fazer; roupas pra lavar... Continuou a visitá-la por mais algum tempo e depois sumiu sem dar satisfação. 

   Mudou-se definitivamente para o tal quartinho e o cultivo das orquídeas tomava agora o seu tempo, além dos estudos. Ficara livre da prima, que em sua raiva neurótica, xingou mundos e fundos por ele não reconhecer o quanto o tinha ajudado. Não se pode mesmo confiar nos parentes!

   A vida seguiu seu rumo. No trato com as orquídeas aprendeu muito. Plantas resistentes, mas ao mesmo tempo delicadas e muitos cuidados são necessários para as mais belas flores encantarem em perfeição e durabilidade.

   Tornou-se adulto. Conseguiu um emprego melhor e preferiu alugar um cômodo, vislumbrando sua independência. Conseguiu se livrar da prima, agora tinha se livrado do dono das orquídeas. Todos tinham sido utilitários para o alcance de sua liberdade.

   Parecia não aprofundar nos sentimentos e lidava com tudo de forma superficial. Não tinha vocação para a reflexão sobre as pessoas que passaram por sua vida e a contribuição feita.

   Seguiu seu caminho. Tinha guardado dentro de si uma insegurança básica, que se constituía em um sentimento de inferioridade. Como defesa lutava contra os abusos de poder, contra os fortes que oprimiam os fracos. Característica que se foi exacerbando até que se encaixou como uma luva em seu novo papel.

   Engajou-se na militância. Aprovado pelos companheiros, viu-se no papel de líder, onde comandava. Considerou-se poderoso, mas não chegou a aprofundar o valor do coletivo, disto servindo-se apenas para o alcance de projetos pessoais.

    Foi nesse espaço que se locupletou; fizera amigos, aprendera a usar seu charme pessoal na sedução das companheiras, assimilou um discurso político a contento. Afinal, merecia ser amado e isto servia aos seus propósitos.

   Vivia o auge do  seu momento político e cada vez mais, assomava-lhe certa prepotência no uso do poder. Considerando-se poderoso, onde nada ou ninguém era percebido. Bastava-se.

   Emocionalmente aparentava certa tranquilidade, não necessitava buscar em seu íntimo angústias. Não as tinha. Acostumara-se ao seu padrão de viver.

   Aos poucos foi sendo marcado por atos que deixaram visíveis seu aspecto medíocre, vaidoso e muitas vezes, metia os pés pelas mãos, já mostrando certo desconcerto. Até que politicamente ficara marcado por seus atos. Todas as suas habilidades pessoais assomadas ao descontrole e desequilíbrio emocional não puderam contribuir para a construção daquele menino que quisera especial.

O tempo passou. Na busca de suas conquistas, ele só não deixou de fazer uma única coisa que lhe dava prazer: cultivar e cuidar das orquídeas... Na vida independente que sonhara.

   Sentiu-se um vencedor!




SEGREDO NA GAVETA
10/01/08

   A chefa chegou mal-humorada, sequer levantou os olhos, passando pelos funcionários sem cumprimentar. Eles levantaram rapidamente o olhar ao vê-la, sem saber se deviam ou não desejar-lhe o tradicional "Bom Dia!". Entreolharam-se e cada qual tratou de iniciar o dia de trabalho sem emitir qualquer som.

   O silêncio era frequente nestes dias e pairava na sala comprida um mal estar indefinido. Ao fundo, duas janelas basculantes próximas à mesa da chefa. Em tais dias, ninguém chegava perto a não ser que solicitado.

   À frente de sua mesa, mais cinco ou seis mesas, uniformemente organizadas, uma ao lado da outra, funcionários burocratas. Cada um tinha em seu poder, uma máquina datilográfica, outra de calcular e muitos, muitos carimbos.

   Os carimbos da chefa, os com o nome dela, sempre restavam trancafiados em suas gavetas; guardados a sete chaves e só utilizados sob sua vigilância.

   Não só carimbos eram escondidos nas gavetas. Gavetas sempre bem fechadas que guardavam o "conhecimento" da chefa.

   Noutros dias, sem mais nem menos, a chefa chegava toda feliz, alegre, cumprimentando a todos. Nesta euforia até abria a guarda e se permitia contar alguns segredos. Era um clima de amizade que assustava aos funcionários e o dia até passava leve e rápido.

   Dia após dia era assim naquela sala de uma repartição pública dos anos setenta. Nunca se sabia como a chefa iria chegar: bem ou mal-humorada! Todos aprenderam a se adaptar aos seus achaques diários. Faziam o que era solicitado, sem questionamentos.

   A chefa repassava os textos manuscritos por ela para a devida datilografia. Não permitia que os próprios funcionários elaborassem seus textos. Funcionários medíocres, copistas, que não se desenvolviam pela sua insegurança.

   Todos percebiam que ela tinha pavor de perder aquele lugar; lugar que lhe dava status, respeito, poder de mando e a fazia sentir-se alguém.

   Mulata; complexos aparentes; casamento complicado com um sujeito branco, desempregado; filho com dificuldades emocionais. Eis o que era de conhecimento e observação dos funcionários.

   Em época de férias era um sufoco. Quem a substituísse ficava perdido, pois não deixava instruções. Trancava as gavetas e levava as chaves consigo. Mesmo assim, o tempo transcorria com maior calma, sem os comuns sobressaltos do início ao fim do expediente.

   Os funcionários ficavam sem entender o que tanto a chefa guardava naquelas gavetas que durante as suas férias não fazia falta nenhuma. A rotina corria tranquila por vinte e cinco dias úteis.

   E assim, ano após ano, tudo igual no castelo de Abrantes.

   Até que um dia! A chefa chegou numa manhã muito bem humorada, e no outro dia, e no outro. Os funcionários sem entender aquela mudança. Pressentiam "chumbo grosso" pela frente.

   O tempo transcorrendo, todos com uma interrogação, sem respostas; até que a chefa contou que tinha se separado do marido que a explorava, mas que ela, no fundo, se considerava dependente.

   Sua insegurança foi diminuindo, mas pouco se sentiu a mudança dada à cultura dos tempos.

   O futuro chegou trazendo-lhe possibilidade de fugir daquela angústia que ainda lhe restava - aposentou-se. Conseguiu abrir as gavetas e entregar as chaves.

   Não repassou o conhecimento; ainda não conseguira tanto.




                                         ECO
04/01/08

   Tinha herdado da mãe aquele jeito esquisito. Quem olhasse para ela não imaginaria o que se passava verdadeiramente.

   O relacionamento com as pessoas era difícil, mas no dia a dia eram quase imperceptíveis suas esquisitices.

   Preferia o canto solitário, não era de falar muito de si. Conversava trivialidades, o suficiente para não assustar aos incautos. Aprendera a se controlar, mas tinha pouca paciência com os que considerava "lerdos".

   Mania de falar sozinha não tinha. Nos tempos livres se encontrava nos livros; a eles, sim, considerava amigos, pois não estavam a lhe exigir respostas. Ao contrário, extraía algo que não tinha e que também não o sabia definir.

   As tendências natas ao desânimo, à tristeza e à preguiça expressavam-se. Sem mais, nem menos, esse sentimento e atitudes surgiam do nada a lhe confundir a vida.

   Em outro dia era como se nada lhe houvesse acontecido. Levantava animada, determinada a cumprir suas resoluções diárias. Força buscava não se sabe onde. Uma urgência de viver tomava-lhe por completo e sentia tudo poder resolver. Todos os projetos dariam certo.

   Neste momento, percebia-se perfeita e em tudo que colocasse a mão, viraria ouro. Pensava ter um dom divino para resolver problemas.

   Camuflava uma autossuficiência que afugentava as pessoas, tamanha era a segurança transmitida. Mas era medrosa, se esforçava para ninguém o perceber.

   Sozinha, a máscara caia e sofrendo, sofrendo, deixava-se desmanchar em seu solitário ninho.

   Sua casa, seu tesouro. Os segredos encobertos podiam ali aflorar e encontrar guarita. Seu reinado estava protegido entre aquelas paredes. Precisava de pouco ali para sentir-se feliz.

   Pela arrumação da casa se conhece a dona; mas não convidava ninguém para frequentá-la. Queria preservar o ambiente da falsidade existente nas pessoas.

   Sente falta da mãe. Ela a protegia. Sua perda a tornou ainda mais distante e revoltada com as fatalidades da vida. Amava a mãe verdadeiramente e a roubaram de seu convívio.

   Sono inquieto, muitos pesadelos; na maioria a mãe retorna para cuidar dela. Aí, começa a chorar de alegria e a gritar por ela: "Mamãe! Mamãe! Mamãe! Não me deixe sozinha!".

   Grita forte, ninguém escuta. Apenas um eco...



SONHOS E ARTES
16/02/06
   
   Há muito pretendera começar a escrever. Sempre fizera planos para todos os projetos; somente este - o de escrever - era sempre adiado. Achava que não daria conta do riscado. Fora uma aluna regular, com dificuldades na escrita, erros ortográficos, frases mal elaboradas, pobre conteúdo, com notas medíocres em Língua Portuguesa. Paradoxalmente; tinha ânsia de se tornar uma escritora e poder expressar sua angústia através das palavras.

   Conhecia suas limitações. Sabia-se uma artesã das palavras, longe de comparações com os verdadeiros poetas... Mas, não é de sonhos que se vai 
construindo a vida?

   Isabel nos seus cinquenta anos de idade, tinha passado etapas de sua vida existencial, profissional e pessoal com tranquilidade, sem grandes alardes. Mas era uma insatisfeita. Sentia uma falta. Sempre à procura, considerou que através dos textos pudesse, senão encontrá-la, utilizar-se da tal catarse na expressão de sentimentos.

   Para tal propósito sempre existia um dificultador. Algo que a fazia emperrar na tentativa e que exigiria dela uma grande energia, um grande esforço.

   Esboçou os primeiros textos. Engatinhando no uso da imaginação e fantasia; escrevendo textos com características em que se misturavam realidade e ficção, considerando que daria um ritmo interessante; e a quem lesse, vontade de seguir até o final.

   Esbarrou na visão conceitual do marido. Homem realizado, racional, que ao lê-los; considerou-os inadequados para vir a público. A censura era grande e apelava para as considerações sociais: "O que diriam a respeito?". Isso, para ele, tinha mais importância do que os sentimentos gerados por cada palavra, frase, cada trecho criado pela mulher, por Isabel.

   Ela, ao contrário, enxergava textos carregados de sensualidade, de sofreguidão pela vida, que retratavam os anseios... Pusera toda a magia na construção e não conseguia analisar pelo ângulo do companheiro.

   Passou a refletir sobre o seu papel naquela relação - seria de submissão, resignação, respeito... Insatisfeita consigo mesma por aceitar uma derrota da primeira vez: "Por que ele agia de tal forma? O que ela fizera de grave? Por que tinha que sujeitar-se àquela situação?".

   Perguntas que tinham respostas - respostas complexas; anos de sujeição da mulher; do patriarcado enraizado nas entranhas de seus homens, que por mais que se esforçassem, continuavam a emitir ponto de vista preconceituoso.

   Isabel ia, deixando a vida ir levando-a; afinal, não conseguia viver sem aquele homem, apesar de não entender sua visão de mundo. Não exigiu  seus direitos.

   Ninguém é perfeito!




GOZO DA VIDA
março/2005
   
   Lá estava ela no guichê de entrega de resultados de exames. A recepcionista, sempre muito educada, dizendo tudo conforme o protocolo de qualidade dos laboratórios: deu-lhe as boas vindas e em que poderia estar atendendo. Solicitou seus exames, deu nome completo. A funcionária procurou em meio a vários outros, provavelmente, descritos em ordem alfabética, até encontrar.

   Entregou-a. Estava ansiosa. Queria saber o que tinha no envelope. Não aguentou e ali mesmo, sentou-se numa das cadeiras da sala de espera, foi retirando o grampo do lacre; que deveria ser aberto apenas pelo médico que os solicitara e não por uma enxerida, bisbilhoteira, que nada entendia sobre o assunto. Abriu!

   Ia imaginando mil coisas: "Será que estou com alguma doença? Incurável? Será câncer? Leucemia?", conceitos que permeavam a realidade à sua volta.

   Ao se deparar com os resultados, que no seu senso comum, alguns aquém e outros além do desejável; observados os valores de referência; começou, de novo, com conjeturas a respeito: "parece que tenho algo grave", observando a inscrição abaixo que dizia "exame repetido e confirmado". Ficou apreensiva: "O que é isso, Meu Deus! Será que é tão grave assim? Será que tenho pouco tempo de vida? O que fazer?". 

   Guardou os exames na bolsa e saiu com a cabeça em parafusos. Viveu a angústia de esperar o dia, a hora, a consulta com o médico de confiança. Enquanto isso ia tentando descobrir o diagnóstico, o prognóstico... Sendo ambos, terríveis!

   A sua finitude passara a permear seus pensamentos, o que fizera, o que deixara de fazer até àquele instante de sua vida. Porque será que só quando vemos resultados palpáveis em nossas mãos; ou escutando-os dos ditos médicos é que caímos na real - de que somos mortais e sujeitos a perder a vida a qualquer instante?

   O pensamento dela voava... Atordoava.

   Voltava no tempo e relembrava a doença fatal da irmã; lembrava-se dos conselhos que lhe dera: "Porque você não aproveita o seu tempo e escreve sobre o que lhe está acontecendo?"; a irmã respondia em tom de revolta: "Escrever sobre o quê? Eu lá tenho ânimo pra isso". Ela achava um desperdício. Um momento especial para a reflexão sobre a vida, os desejos, escrever para e sobre as pessoas queridas, a possibilidade de deixar registrado tais angústias e por aí.

   O dilema, agora, era o dela: "Tenho uma doença grave, pouco tempo de vida e o que fazer para deixar registrada toda a angústia presente, martirizante e que me agoniza?". Percebeu que falar é fácil. Difícil é a vivência da própria dor.

   Continuava a pensar na irmã, as situações que se assemelhavam: "Como teria sido para ela a dor de tais momentos finais?". Quão doloroso é dar-se conta de que se está só! Sentir a vida se esvaindo entre os dedos e nada podendo fazer. Seus pensamentos iam longe, transformados em redemoinhos, varrendo toda a sua vida a procura de significados. "Falaria para a família ou não?" Para quem apelar se nem mesmo acreditava em Deus.

  Pensou o que fazer de concreto: "Escrever o que sinto, escrever um diário, um livro, a biografia, quem sabe!". Dúvidas! Nesse momento chegou a pensar que sua vida daria uma boa história, os acontecimentos tinham sido únicos, numa narrativa que beirava do romântico ao cômico, até chegar ao trágico daqueles dias contados.

   Os dias que antecedem à consulta são vividos com pensamentos que vão e vêm sobre seu estado atual, sobre as atitudes a tomar quanto à escrita, contar ou não contar à família, sofrer sozinha. Guardou para si.

   Apenas o que vê é o caos. Presa aos pensamentos, paralisada nas ações e ao mesmo tempo, fazendo-se de forte, buscando a altivez necessária. Chega o dia da consulta.

   Na sala de espera a hora se dispersa. Nervosa e ansiosa, chega a sua hora. Esforça-se a dar conta de si, remexendo na cadeira, a esperar a voz que balança o berço. Diz para si que sabe o diagnóstico e o prognóstico. Os minutos transcorrem em séculos. Com o coração em disparate, procura estar atenta ao que o médico está prestes a dizer. O coração salta pela boca. Vem bomba!

   O médico lê os exames, diz que os resultados estão bons, alguns itens precisam melhorar, mas não interferem. Nada que deva preocupá-la. Farão exames de controle daqui a seis meses.

   Ela sai do consultório. Respiração ainda ofegante, que aos poucos, vai voltando ao normal, num misto de decepção e otimismo. Atravessa a rua já se sentindo leve. Espera o ônibus. Observa as pessoas, na rua, num vai e vem confuso. Segue para a sua vidinha de sempre, num cotidiano sem surpresas. Mais uma vez, adiando a vontade de escrever; mais uma vez, a vida escapulindo.



LIÇÃO DE DONA COTINHA

10/01/2008
   
   Conheci Dona Cotinha depois que ficou viúva. Mulher da roça, pouco estudo, sábia em sua vivência.

   Contou-me sua história de vida, do tempo em que a mulher casava sem amor; porque a família assim o tinha definido ou por sofrer horrores nas mãos do pai, seu carrasco, e, tentar reduzir a dor daquele destino. Ledo engano. Isto acontecera com ela. Casou-se muito nova e bobinha. Aquele homem aproveitou-se de seu mando e a fez escrava de seus desejos.

   Contou-me suas lembranças, marcadas a ferro e fogo. Por exemplo, quando o marido aposentou-se e não lhe disse nada, passando a ficar constantemente em casa. Criou coragem e um dia perguntou pra ele se tinha se aposentado. Ele apenas respondeu que sim. Ela apenas disse "tá bom!".

   Sujeitou-se a diversas humilhações; ao ponto de, com filhos ainda pequenos, ter de encarar aquele homem com duas, três amantes. Chegou a levar uma delas em sua casa e exigir que cozinhasse para ambos. E após o almoço, os dois contaram que aquela mulher, a tal fulana que comia de sua comida, era uma das tais amantes; com o objetivo de mostrar para ela que era uma boba.

   Segundo Dona Cotinha, a ela, cabia o silêncio por respeito aos filhos. O marido, ele, descaradamente, falava de suas aventuras. Suportou. Dependia dele, nunca tinha trabalhado fora, sempre fora uma simples dona de casa, domesticada!

   A crise entre marido e mulher chegou a tal ponto que ele cruelmente jogou-lhe que "ela não era mulher para ele". Saiu de casa. Não se separaram oficialmente, o marido continuou a ser o provedor daquela família.

   Os filhos cresceram e cada qual foi viver sua história; mas Dona Cotinha fazia questão de frisar que suas filhas eram muito boas para ela; já os filhos meio largados, deixavam-na sozinha... Gostava deles assim mesmo! Enfatizando que nunca tinha reclamado um "a" do pai deles, pois os filhos devem respeito ao pai.

   O marido de Dona Cotinha voltou ao lar depois que problemas graves de saúde começaram a povoar sua vida. Pediu perdão a ela; "_ Perdoei, fazer o quê?", disse, dando de ombros. Concluiu com seus botões "Eu é que não preciso pedir perdão a ninguém, não dou motivos". No final, o marido reconheceu que só podia contar mesmo é com a família.

   Dona Cotinha seguiu sua vida sem tornar a se casar. Na ponta de seus saltos altos, disse: "Homem dá muito trabalho e os que se encontra por aí, querem é uma doméstica para cozinhar, lavar e passar. Eu quero alguém que cuide de mim!".

   Continuando nossa conversa, disse toda coquete, que apesar das poucas letras, procurava saber das coisas, pois não se pode ficar boba "nesse mundo de Meu Deus". "Sou esperta, com meus sessenta e nove anos de idade não fico parada esperando as coisas acontecerem. No meu canto, crio galinha, porco, cuido da horta, dou o meu jeito".

   Com a venda dos produtos e com sua aposentadoria minguada, Dona Cotinha vive a vida sempre ativa, não é de ficar parada, não!

   Foi com jeito sapeca que ela se despediu de mim... Que eu saiba envelhecer como  Dona Cotinha!




O MUNDO PERFEITO
2008

  ADEUS era um deus rei de um lugar tido por ele como perfeito e de tudo fazia para que funcionasse o mais perfeitamente possível. Afinal, tinha um nome a zelar, rivais de plantão, interessados em sua derrota e, além disso: tinha um ego pra lá de grande.

   Para conseguir tal trunfo, contava com a ajuda de fieis escudeiros. Alguns fidelíssimos, mas três se superavam, se sobressaiam em relação aos demais - assessorando-o nos pontos mais nevrálgicos e importantes para o êxito daquele controle do reino... Perfeito.

   Anions era o mais puxa-saco. De tudo fazia para que o reino tivesse bastantes recursos, porque assim, poderiam aplicar na infraestrutura local, mais que os outros reis de outros reinos. Era o pai de projetos mirabolantes e todos com a exigência de darem certo, pois produtividade e desempenho eram a obsessão.

  Nada mais natural se isso não fosse à custa dos pobres operários. Para conseguir o que queria, retirava direitos dos trabalhadores que a vida inteira se dedicaram à construção da cidade; pois o que interessava era ter como investir, mesmo que à custa do sofrimento da ralé. Tal ralé, para ele, insignificante. 

   Era de uma frieza emocional acentuada e ao observador mais arguto esta característica poderia ser considerada exacerbada. Além da frieza, tinha um lado feminino à flor da pele, mas o lado mais perverso... da inveja, do egoísmo, da ambição a todo custo para a conquista do seu projeto. Capaz de fingir com maestria, aos mais incautos  passava a impressão de bom coração.

   Esqueci-me de mencionar que os tais escudeiros tinham um defeito que os impossibilitava de exercer a verdade no que ela tem de ética. O que valia era a verdade necessária ao alcance de um conjunto de procedimentos... Não interessava nada mais.

   Tinho era outro. Bajulador e com um jeito tímido. Gordinho, atarracado, vivia apertado em suas vestimentas. Seu negócio era fazer a política. Política de polichinelo. Fazia arranjos, conversava com caciques, conseguia embromar as bases com facilidade - conseguindo até eleger um filho, que nunca tinha sido político, mas que vivia no cambalacho. 

   Fama de guloso, um dos pecados capitais que mais o excitava. Uma de suas características era a lealdade ao programa do partido a todo custo, sem levar em consideração qualquer ideal de vida melhor aos concidadãos. Mesmo com tais predicados, entrava eleição, saia eleição, continuava no poder - a própria base pisoteada sempre apostava no filho da aldeia, base das cidadezinhas locais da qual era conterrâneo. 

   Conseguia emprego para alguns, o que possibilitava, pela ingenuidade daquele povo, o voto de confiança. O mundo continuava perfeito para ele e seus objetivos e se orgulhava da sua habilidade. Volta e meia, corria atrás de conchavos políticos, pois as eleições estavam sempre próximas e todo cuidado era pouco para se manter por cima.

   O terceiro escudeiro fiel era uma mulher - o que não poderia deixar de ser - pois a mulher poderosa ou que pensa que o é pode ser mais feroz nas situações de poder. Andrógena era seu nome. Tinha o aspecto contraditório. Seu lado feminino era recalcado e, por vezes, assumia características do macho - a capacidade fálica lhe assentava com excelência. 

   Cuidava com zelo do marketing de todo o reino e nada era publicado sem o seu crivo. Não permitia que a aparência de ADEUS e a perfeição do reino fossem desvirtuadas pela mídia. 

   Era uma mentora política que fortalecia o perfil psicológico do rei - fragilizado em alguns aspectos devido imaturidade latente. Cuidava de tudo com unhas e dentes e ai de quem ousasse interferir no desenvolvimento daquele projeto político em andamento.

   Com tais escudeiros no controle das áreas estratégicas do reino, ADEUS podia se esbaldar. Gostava da farra, mulheres bonitas, vivia nas revistas de fofoca, com as beldades de plantão. Sabia utilizar seu lado sedutor com facilidade e aproveitava para usufruir desses prazeres oferecidos aos montes aos poderosos.

   Contavam-se muitas histórias sobre os meandros da sua vida pessoal, o que permeava certo mal-estar, mas sempre censurado na mídia. Tinha certo apelo macunaímico, o estilo arraigado à flor da pele, da herança dos primeiros tempos...

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