— Shadow, Meg, Simba, encontro vocês um dia, preciso voltar para casa!
A espontaneidade juvenil.
Ela despovoa a figura romanceada que, afinal, desaparece da mente.
Nenhum padre é santo, isso todo cristão sabe bem, mas, por essas e outras, não custa apelar para o sagrado. Isso mesmo que um dos vigários resolveu fazer, arranjar maneira de angariar pra sua paróquia a relíquia desejada, e foi então que disse aos fiéis vocês merecem a tentativa original de ver em sua região a ostentosa imagem, de verdadeiro gosto estético.
Desenho Ju Martins |
— Vou pro salão.
“QUADRILHA
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
Carlos Drummond de Andrade”
"CORPO-PALAVRA
O que me agrada em teu corpo é o sexo.
O que me agrada em teu sexo é a boca.
O que me agrada em tua boca é a língua.
O que me agrada em tua língua é a palavra.
Julio Cortázar"
Entre uma garfada e outra, após mastigar, já emenda novo assunto e eu continuo calado e sem emitir palavra, nem sequer um Ah! É mesmo! Nossa! “Fico tão voltado para os meus mergulhos interiores que nem me lembro de que convivo com uma pessoa e ela merece obter uma resposta. Já esqueci o desgraçado lema de inda a pouco.” Não respondo nada, cauteloso, com medo de mais uma vez ela venha com decisões que sempre solta de esguelha para que eu não perca a diplomacia. Eis que Lindi dá uma paradinha, termina a mastigação, limpa os lábios e prepara para falar:
E da plumagem final da ave o traçado ganha novos cortes e aparecem delicadas pernas que suavizam o ar em movimento até que em um voo delirante ao mundo interior, vê a figura de menina no corpo de mulher, ainda na formação que o tempo exige. A jovem figura de uma bailarina acena finalmente em sua cabeça e pode então delinear o que seu instinto artístico tencionava.
(Texto criado com base no desenho do Juarez Machado)
Que susto.
De repente uma garra grotesca, unhas e dedos encapsulados de terra se movem numa ligeireza agarrando-se a uma das grades. A pele ressequida, com sulcos profundos e imundos da terra barracenta. Lamacenta. Questão de segundos. Das grades do muro. Grosseira e suja de terra.
Susto repentino com o movimento rápido, como se aquela garra quisesse atacar. Fizemos um movimento de corpo. Balé. Rodopio espantado. Nos defendendo como por instinto, e com olhares aterrorizados, viramos para dentro. Dentro. dentro...
Nós dois estávamos a caminho do posto de saúde, do serviço de saúde pública, SUS, rezando para conseguir senha para o atendimento. SUS. É tão complicado ser atendido por tal serviço que mesmo acordando muito cedo ainda não conseguimos sequer um atendimento. Não. SUADOS. Não adianta argumentações pela necessidade ou urgência, acabaram-se as senhas, as poucas senhas para o dia designado para a região, somente na próxima semana. próxima semana. nova tentativa. SUSRUPIADOS. Opta-se por esperar até a semana que vem, ainda dá tempo de esperar. SUSPIROS. O serviço privado é o olho da cara. Nem classe média aguenta. Exploração. Comércio. Negócio. Espera. Assim, volta-se ao SUS. os sintomas vão se ampliando devido à ineficiência de um serviço prioritário. SUS gênero.
Estávamos certos de que as coisas mudariam, afinal, anda-se falando tanto. Demagogia falante. Propaganda. Marketing. Médicos prontos às solicitações, até de Cuba vieram. Como não conseguir ser atendido imediatamente à chegada. Essa ladainha ainda falta muito para ser solucionada. Talvez mais 500 anos. Terra Brazilis.
... dentro. o jardineiro exausto e ofegante busca com uma das mãos a grade do muro. Com a mão encharcada de terra. O movimento de sua mão junto ao muro é tão imprevisível que numa fração de segundos nos retira a tranquilidade. Que susto. Ele busca o descanso até retornar a arrumação do jardim da casa, enquanto passamos pela calçada.
Se o jardineiro cair doente ali, no aqui e agora, conseguirá atendimento SUS? SUSREAL!!!
A maioria de nós ficou abobada com a resposta imediata do sujeito que andava sem trava na língua. Ficou tão empolgado com sua descrição! Com certeza a presença de Margot lhe afrouxou os feixes sempre tão perfeitos na expressão dos sentimentos. Frente a frente com a mulher que ele pretendeu assustar para em seguida conquistar. “Qual mulher não vacila pelo sujeito sincero e espontâneo, pronto a demonstrar sua voracidade em torno do beijo amoroso, cena que atravessa séculos e séculos nas histórias de amor e paixão... Eu ainda beijo essa mulher!”, pensou ele astucioso.
A tentativa de ser transparente ao exprimir sobre o ato de beijar supunha ele, iria captar o desejo, mesmo raso, no coração e mente da mulher que lhe tirava o eixo.
Olhou-a direto nos olhos, provocativo. Ela não teve como escapar de olhar tão convencedor do que pretendia dizer. Ao mesmo tempo ambos com o rosto em fogueira, disfarçando gestos, tentando escapar de olhares curiosos. Tanto Afonso, quanto Margot tinham jeito tímido por trás da couraça de confiança que dedilhavam nas palavras. Ele, traído, de certo, por tremores na emissão de fonemas, querendo arredondar palavras, se atrapalhando em atos falhos, seguidos de explicação que só serve para o velado revelar-se.
Eu e a turma tratamos de nos dispersar, cada qual a caminho de sua área de trabalho sem dar atenção ao que se passava a fundo com aqueles dois.
Afonso entra para o escritório com raiva do seu jeito impulsivo que sempre dá as caras à sua revelia. “Droga, será que falei demais?", batia na mesa com socos. "Não, não tô arrependido não! Eu devia é ter falado pausado, com menos emoção... Que diabo! Mania que tenho de abrir a cancela e agir sem pensar!" , as mãos vermelhas, "não, não falei demais! Tenho certeza!”
Relembra a última ocasião que ficou cara a cara com Margot. Tão próximos, e ao mesmo tempo tão distantes, ele a sentir o hálito perfumado “porque não te beijei menina, por quê? Nós dois sozinhos ali. Ai! Essa timidez que me mata e interfere nos meus sentidos e desejos.”
“O que será que se passa com a Margot? Queria ter asas, voar, descobrir..." por instantes caminha pelos devaneios e voa veloz para o canto da Margot.
"Margot chega à sala numa ânsia desastrosa, querendo colocar o coração pela boca, com as batidas atrevidas e sem ritmo. Sente-se zonza, abana-se com as mãos em forma de leque, tenta afagar o peito que teima mal respirar. Suspira! Inspira! Expira!
De repente Margot, frenética, começa a escrever, tentando compor em palavras tudo o que de forma escandalosa é perceptível em si. A mão desliza autônoma no papel, não obtém controle dos diversos sentimentos e emoções pelos quais se vê tomada.
Viaja, transita a nau dos alucinados, deixando os dedos escorrerem sobre aquele mar indomável. Tudo é angústia numa sensação inicial, e desemboca em seguida, a transitar na paz serena das linhas preenchidas pelo espírito brincalhão, arteiro, em sintonia com o remanso confortador da escritura apaixonada."
Dois toques na porta e ele cai de paraquedas na realidade. Margot pede licença para entrar e mostrar os índices financeiros que lhe solicitara. Observa a bela figura da mulher profissional que caminha elegante até uma cadeira. Ela começa a dissecar gráficos e análises. Nem em sombra Afonso conseguiu arrebatá-la para junto de si, dos seus desejos mais profundos.
A tarde transita em calmaria. Apenas Afonso, apenas ele, remou mar revolto.
Tum plec tum bem
Eu vi um garotinho
Tum plec tum bem
Fazendo uma bolinha
Tum plec tum bem
Bolinha de sabão (2x)
Eu fiquei a olhar eu pedi para ver
Quando ele me chamou
E pediu pra com ele ficar
Foi então que eu vi como era bom
Brincar com bolinha de sabão
Ser criança é bom agora vou passar
A fazer bolinha de ilusão!” Orlan Divo
O rapaz se extasia, tal como o vento prazeroso, ao admirar envolto no desconhecido a mulher que aparece sempre as cinco da tarde na praça da cidade. O olhar cada vez mais astucioso. Largara o sentido em nau distraída e ao léu. Cogitou possuir mais que a carne da mulher, o que vem transcrito no seu olhar, no sorriso, no caminhar pensativo sobre a grama seca que verdejante e brilhante parecia no contraste com fim de tarde e persegue aquele corpo a desfilar. Imagina o toque daquelas mãos a caminhar por sua pele. Mãos acariciadoras e leves, que ao toque do tecido imaginava ser o seu corpo desenhado pelo carinho.
Seria dele para sempre. Teria o amor daquela mulher com ares de menina que cada vez mais invade seus pensamentos, um amor somente dele, a mais ninguém permitido. O cérebro comandava as ações autômato, traçara estratégia para possuí-la, e desde então, não mais tinha sono, não mais trabalhava com tranquilidade,passou a ser uma máquina de calcular, a medir e elaborar o esquema diabólico que aos poucos tomava forma em desenhos dimensionais, ainda ficcionais, mas resvalando de forma insana à prática.
Planos, metas, ações... a moça do vestido esvoaçante a comandar seu destino que de repente deixara de ser tosco pelo objetivo claro, ameaçador e desejante, ao ponto de transformar o sujeito em traste ambulante, obcecado de intenções.
Noite escura, inundada de vapores fétidos, céu grotesco e fosco surgiam ao seu olhar sem traço de humanidade. Desaparecera o sujeito compenetrado, que dosava ações ao traço do óbvio. Um olhar amedrontador toma posse daquele rosto em sucessivas visões fantasmagóricas de poder absoluto.
Põe o lenço envolto de substâncias delirantes e a moça sucumbe nos seus braços. Completa-se naquele movimento. A mulher em sua posse definitiva, sem recusas. Caminha sôfrego para o veículo e com gestos delicados a coloca ali, uma princesa prestes a receber o beijo do amado e acordar do sonho.
Ei-lo príncipe, transformado pela bondade ungida na esperança de aceitação pela amada que desconhecia seu amor. Observa os contornos suaves da boca rosada e devagar deixa seu lábio pender-se ao dela e acorde do sonho e vivam a vida que planejara.
O toque forte e grosseiro na porta chamando-o para se levantar traz João de volta ao mundo real, o mundo de solfejos comuns, para mais um dia de trabalho ardente em sol a pino.
Direlene sempre ocupadíssima, ativista implacável, nunca lhe sobra tempo. Reuniões, greves, passeatas, discussões, liderança. Tenta diletantemente, a todo custo, fazer deste mundo um mundo possível. E se ocupa o tempo todo, todo o tempo; não por obrigação, mas por gosto, como amadora do mundo. De um mundo que se quer justo e melhor.
Marciana sempre ocupadíssima, ativista nos sonhos, nunca lhe sobra tempo. Revela-se como é, sente, pensa e age. Atreve-se a escrever poemas e prosa; a tocar o violão; cantar; dançar e devanear. Invoca Júpiter e pede pela Terra e homens melhores e solidariedade entre pessoas.
Eis os dilemas de Direlene e Marciana. As contradições do mundo. A arte e o fazer. O fazer e a arte. Duas mulheres vivendo as transformações do corpo, da mente, da vida. Dialéticas questões. Mesa de bar. Mulheres em desejo de construção da liberdade feminina. Donas do próprio corpo. Amigas que não potencializam o tempo para se encontrar e se distrair. Duas sessentonas.
Antes do aparecimento de Adão e Eva, o mundo vivia sua época áurea de poder absoluto, completamente nas mãos de deuses e habitado pela estirpe gloriosa dos descendentes. Por todo o lado, poderes sobrenaturais emanados em sintonia com a necessidade. Nada utilizado além do necessário, o que dinamizava aquela harmonia holística.
Desde pequena diz ter sofrido bulling, até que revela em confissão mais tarde, já adulta, com sombras acompanhantes de insegurança e vitimização.
Confessa que aqueles acontecimentos lhe marcaram a vida. Vida que sentia fracassada, nada conseguindo seguir, sempre à mercê - paralisada.
Paralisada.
Quando em pequena, nas brincadeiras dos irmãos que floreavam cada vez mais o anedotário do acontecimento de seu nascimento, e lhe diziam que o pai encontrou-a dentro de um caixote de madeira, desses de feira livre, onde é colocado o produto que se vai vender no mercado. Encontrou o caixote bem à beira de uma roda de caminhão, à beira de uma das estradas que pertencem à Bahia.
Estrada que na vida vem traçando aos trancos e barrancos. Barrancos cruéis, às vezes inomináveis... O apelido Baiana diziam vinha daquela época vindoura dos primeiros tempos. Criança sabe ser cruel de forma gratuita, sem pensar em consequências!
Marcas.
Cicatrizes da infância que na vida adulta foram deixando sequelas. Sentimento de estima diminuído acrescentando pitadas de descrença na capacidade de ser alguém que mereça o respeito de todos. E a construção caduca vai se fazendo pelos tempos e é tal a dimensão da angústia que corrói a real condição, prevalecendo a visão opaca, míope, do ser menos do que é.
Vítima.
Confessa que o acontecimento lhe marca a vida. Vida sentida fracassada, sem conseguir seguir em frente, paralisada. Todos eram filhos do mesmo pai e da mesma mãe... mas o que fazer para crer nessa verdade que não era dita pelos irmãos. Nas brincadeiras de crianças era a filha bastarda, encontrada entre rodas de caminhão, nas entranhas da Bahia.
Custa, custa muito para descobrir-se verdadeiramente quem é. Às custas de muito sofrimento, muitas perdas, muita reza e fé para finalmente descobrir eureka! que apenas ela era a única responsável por fazer-se uma pessoa digna de respeito; primeiro por si própria, depois o respeito social.
Uma pedra burilada no sofrimento que dá a volta por cima. Finalmente o brilho que se mantinha escondido, clareia o destino dali para a frente, injetando-lhe forças para enfrentar com unhas e dentes o espaço que lhe cabe naquele latifúndio!
Parece ser um tipo interessante no modo como escreve. Dá ares de romântico, esmiúça a gente lá no fundo do peito, querendo conhecer sentimentos e emoções. Isso me parece diferenciado... Será esperar demais?
Nossa! Que noite estupenda! A lua enamorada, brilhante, no auge da beleza. Noite estrelada!
Tão absorta estou em contemplação que ele chega sorrateiro e não me apercebo da presença. Chega manso, jeito firme. Másculo e com uma beleza exageradamente exposta que diz mais que a descrição feita.
Acordo! E de supetão nos apresentamos, indo direto ao diálogo que a cada momento me deixa intrigada para as novidades que se seguem.
Entra conversa, sai conversa vamos nos desnovelando e tantas são as semelhanças que o desconhecido torna-se alguém sem segredos. Nos tornamos íntimos, novos encontros.
Encontros e desencontros. Eis o lema que tal relacionamento destrinchou. Desde os tempos de namoro, mesmo entrosados, bastava algum disse me disse para tudo descambar para discussões e o namoro acabar para sempre.
Coração e corpo reagem ao saber que ele está por perto! Organismo é movido a sobressaltos. Basta um novo encontro, se entregam com força àquele sentimento que os consome.
E vão. Terminam uma, duas, três, cinco mil vezes e novamente juntos, encontros amorosos, discussão, disse me disse, término para sempre!
O verde-loiro a cativa em sua meiguice e com jeito tímido produz mais e mais ilusões nos translúcidos olhares e, os desejos vão se tornando transparentes à garota, que espera ser isto o amor em transbordamento. Palavra que aglutina o impensado, a surpresa, a voracidade pelo novo. O sair da rasa cotidianidade às raias do que surgir. O desconhecido, este sim, sempre fascina.
É a ânsia do encontro, do sentir o aperto no peito enquanto o outro se aproxima, é aceleração das batidas à sofreguidão do olhar. É a consumação do abraço, do beijo, do contato para o completo êxtase do sentir-se apaixonada.
Mas.
Na hora h
um apito
um pito
no to do mundo
um agito
um grito
AAAAAAAAAAAAAA...
Eis que acorda assustada com o sonho de amor e tragédia. Entre gritos e encantos, sente no peito um quê desregrado. Gostaria de abrir-se em jasmim e exalar a ternura que sente. Mas a criação regada a conceitos cristãos a massacra: tudo é pecado, até amar sem permissão. Nem em sonho e nem na realidade consegue soltar as amarras que prendem séculos e séculos de ensinamentos punitivos em nome de Deus. E o amor se torna castrado!
Só relembra o filósofo Sófocles: "Não tenho senão desprezo por um mortal que se acalenta em esperanças vãs." Mas ela se quer vã. Fecha sistematicamente os olhos e se abandona naquele mundo em que não quer sair. Quer atravessar... a época de acalentar sonhos. A isto se permite!
Felicidade é andar descalço na areia morna, na beira da praia, avistar aquele marzão em sua imensidão. Contemplar as ondas indo e vindo e junto com elas, sentir-se aliviada. Nem em sonhos se torna ao antigo! Um novo mundo se forma em completa liberalidade inconsciente.
Pisava de forma insegura, sem equilíbrio e nem assim mudava o aspecto cadavérico em que se encontrava. Muito tempo sem comer. Nem um sorriso, um leve olhar de surpresa ao que no caminho se vislumbrava.
Seguia, descalço, pé grosseiro de andanças sem fronteiras dóceis. Maltrapilho, sujo, faminto, a enxergar apenas a estrada a frente, em transe. Em sua solidão ia em busca da liberdade que ousou sem pensar, sem a pressa do relógio, longe de pessoas a lhe exigir posições, às regras de uma sociedade que deixara para trás.
Não, não quer mais ser constrangido a fazer o que não quer. Não vê alternativas, nem se interessa por esposa e filhos e trabalho deixados para trás.
Quer ser apenas um cavalo solto, sem rédeas a lhe guiar; olha para a frente e segue um caminho, e apenas segue, sem vínculos a nada e ninguém.
A casa acordou normalmente. Manfredo aprontou-se para o trabalho seguindo a rotina de sempre e sob a voz autoritária da mulher a lhe exigir pressa, rapidez e decisão. O café rotineiro e sem graça esperava à mesa posta em desmazelo. Antes do trabalho deixava as crianças na escola e buscava-as no horário de almoço. Todos os dias o mesmo trajeto, as mesmas ladainhas, as mesmas conversas lamacentas da mulher, a reclamar, reclamar, reclamar. Aquelas crianças barulhentas, sem regras e limites a rodear a mesa. Restos de comida pelo chão transformavam a cozinha em sujeira e desleixo.
Manfredo sai de casa com seu uniforme diário, camisa e calça sociais, cabelos à brilhantina, homem sério e comprometido. Carrega consigo a pasta preta já gasta pelo tempo de uso. Chama as crianças, carrega merendeiras e mochilas. Despede-se da mulher com o usual beijo de despedida, já sem o hálito do desejo.
Não compareceu ao trabalho. É o responsável pelos cálculos do serviço contábil da empresa. Não buscou as crianças na escola. A diretora entra em contato com a mãe e a voz rouca da mulher atende sem vontade e de forma abrutalhada. A diretora comunicou o ocorrido, informa que as crianças ainda estão lá a espera do responsável há mais de hora.
Manfredo não apareceu no trabalho, não foi buscar as crianças na escola, não apareceu para o almoço.
Homem responsável Manfredo. Disciplinado, controlado, segue à risca todas as regras: tanto as de casa, como marido dedicado à família, à esposa, aos filhos; quanto as profissionais. Empregado exemplar, nunca dá dor de cabeça aos patrões. Observador do horário, com uma pontualidade fiel aos seus princípios e respeitador da hierarquia vigente. Nunca se opõe a nenhuma autoridade, sempre cabisbaixo demonstrando respeito aos superiores.
Manfredo não foi visto por ninguém. A família apelou às autoridades competentes. Sumiu misteriosamente, nunca mais se ouviu falar de Manfredo ou se teve notícias de seu paradeiro.
Seria um sintoma Kafkiano? A situação já estava beirando a tal nível de angústia que eu evocava os absurdos possíveis... Seria pesadelo!... Às vezes até os meus próprios sentidos se negavam a aceitar o que ocorria.
Tentava dominar aquela ansiedade que surgia sem motivos por causa dos destemperos de se ouvir o que não se quer ouvir. Mas nada daquela situação se esvanecer com pensamentos tranquilizadores.
Ficar naquele quarto estava se tornando uma tortura para meus ouvidos em frangalhos. Não aguentei mais e pedi socorro para aquela pendenga. E não foi que descobriu-se que a geladeira do quarto estava com mau contato e gemia, gemia, fazendo aquele som maldito, que finalmente foi arrefecido!
SOTAQUE MINEIRO
Estou a voar relembrando a minha infância, que segundo o Manoel de Barros deve ser reinventada constantemente. Eu me vi pousando naquela floresta que existia próxima à casa de meus avós, acompanhada de alguns primos. Neste espaço, muitas árvores, que infelizmente eu não saberei dizer o nome, mas que de suas copas altíssimas, caíam flores que a gente podia convertê-las em diversos brinquedos crianceiros. O meu primo era bastante habilidoso, fazia filtro, panelinhas diversas, fogões e assim, ficávamos a brincar o dia todo; apenas com os objetos existentes ali, reinventávamos outros que não tínhamos acesso.
O desenrolar dos fatos se deu quando o casal decidiu casar. “Quem casa, quer casa!”. De procura em procura, descobriu o pequeno apartamento, uma joia a poucos minutos do centro por um preço que conseguiam financiar por muitos, muitos longos anos.
Quando o casal recebeu
o apartamento já vazio, levou susto: a cozinha impregnada de gordura nos
azulejos com crostas antigas de fritura, paredes sem pintura há muito, manchas
por todo o lado, carpete grudento e muita poeira. Quando fez a limpeza
necessária, deu-se o casório e foi morar em um dos doze apartamentos do
edifício.
O casal se transformou
em síndico do condomínio e aprendeu a conviver com a diferença ali existente,
inclusive a sua própria, de ar neurótico: o rapaz era obsessivo e de estilo
machista, a moça era exigente de sua independência como mulher, mas reclamava
contribuir nas despesas de casa. Brigas homéricas entre marido e mulher. Entre
lençóis e travesseiros. Mas continuavam casados.
Como se sabe, em todo
lugar existe pessoas diferentes. No prédio de doze apartamentos isso se
encaixava como uma luva. Tantas diferenças que, para quem é síndico, torna-se
necessário administrar com sabedoria. A questão é que, às vezes, os problemas
persistem. De observação em observação, o casal aprendeu negociar de forma
específica, a depender do estilo de cada um dos moradores.
Quando o casal saía
para trabalhar respirava o aroma perfumado ao descer a escadaria. Com o tempo
descobriu o porquê. Um dos vizinhos dissera que a moça chamada por todos (in
off) de coroa por beirar os quarenta anos, morava com os pais idosos desde a
construção do edifício. Alinhada, ótimo emprego, bom salário, a moça ao descer
a escadaria deixava o perfume no ar. Ela era mulher independente e exuberante
saía aos sábados à noite. Nada de conversa fiada, no máximo um cumprimento
formal aos encontros no sobe-desce.
Sempre que o casal
descia para o trabalho, trocava olhar e riso e nada comentava. A discrição é
fator fundamental nessa função e na convivência entre pessoas. Já dentro do
carro, comentava:
— A coroa já desceu! — Disse
o rapaz. A mulher fez que sim com a cabeça.
Em outra situação, o
casal de síndico colocou um aviso na portaria: “FAVOR NÃO BATER O PORTÃO –
PERIGO QUEBRA DE VIDRO”. Quando chegou à noite, o casal recebeu a visita de um morador
que a esposa tinha problema de mudez, mas entendia com perfeição. Ele chegou reclamando:
— Sei que o aviso colocado
lá fora é pra mim, — disse entre nervoso e voz alterada.
O casal de síndico sem
entender:
— Como assim pra você?
É um aviso para todos moradores do prédio. Não é intencional a ninguém. — O
homem escutou sem dizer nada, e saiu mal humorado. O sujeito tinha estopim
curto, e provavelmente era paranoico. A esposa ao contrário era dócil e risonha,
somente quando encasquetava, emitia sons exigindo ser escutada. Não tinham
filhos.
Noutro apartamento tinha
o rapaz que morava sozinho, recebia amigos, era sempre muito discreto e
educado. A vizinha contou, ele é “gay”. Nunca deu um pingo de amolação, a não
ser quando informou ao casal sobre o morador abaixo dele, que ficava batendo a
vassoura no teto, e ele não entendia por quê.
No mesmo dia,
coincidentemente, o morador chegou com uma braveza de dar medo, reclamando do barulho
vindo do apartamento acima e que atrapalhava seu descanso. Repentinamente
apontou o revólver “trinta e oito” na cara do casal e ficou balançando-o bem no
nariz, dizendo, vou tomar as providências. Esse morador era divorciado, e a
atual companheira grávida gostava de uma fofoca. O casal pediu que se acalmasse
pois existe outra forma de resolver problema, o diálogo.
Assim descobriu que daquele
sujeito o preferível era manter distância. Alertou ao moço do andar de cima que
evitasse barulho altas horas, e este argumentou, trabalho o dia todo e a noite cuido
dos afazeres e do jantar. O que fazer?
O casal de síndico
entendia o nervosismo do morador que tinha uma arma. Mas não justificaria sair
atirando em todo mundo que irrita a gente. No apartamento acima do seu, nunca
utilizou do expediente de cutucar o teto, mesmo tendo como vizinhos uma família
com quatro filhos. Bolinha de gude a pinicar, bola, patinete, barulhos crianceiros.
O casal compreendia a dificuldade dos pais de, naquele cubículo de cinquenta e
seis metros quadrados, evitar as brincadeiras dos filhos. Nessa família, a
esposa, um pouco mais velha do que o marido, saía para trabalhar, enquanto o
marido preferia a vida doméstica, cuidar dos quatro filhos, preparar a comida,
lavar roupa. Seu defeito era espancar a esposa quando a coisa ficava feia. O bairro
inteiro sabia da situação, pois a mulher gritava em alto e bom som:
— Aqui tem um homem que
bate em mulher! — As crianças choravam e a discussão corria noite adentro. Triste
e desolador. No outro dia era como se nada houvesse acontecido, estavam em paz.
Tinha de tudo. O casal
acabara de descobrir. O que viria pela frente?
Descobriram que a
vizinha ao apartamento do rapaz que recebia amigos tinha um segredo, segredo
este nunca observado pelo casal. Ela tinha por hábito convidar homens que
passassem abaixo de sua janela para uma tarde diferenciada. Gostava do
entregador de gás, do moço da conta de luz, do encanador, ... Foi então que o
casal observou o abre e fecha do portão nos fins de semana.
Um dia essa vizinha foi
solicitar ajuda, pois não conseguia trocar uma lâmpada queimada. O síndico foi
fazer a troca, quando terminou olhou para trás e viu a vizinha vestida em camisola
com as pernas cruzadas na cama observando-o. Ele pegou a escada e saiu rapidamente.
Outra história
aconteceu, a do morador recém-casado vivendo a pouco tempo ali. O casal de
síndico se surpreendeu ao descer a escadaria e ver o homem completamente sem
roupa abrir o portão e ganhar a rua. O pobre homem tinha problemas mentais e
estava sem uso de medicação, não fazia mal a ninguém, apenas vivia o mundo
paralelo até que um dia se mudou.
Outro morador era
alcoolista. Pela manhã, todos os dias, antes do trabalho, necessitava beber
para diminuir os tremores. Como ele consegue dirigir, se perguntava o casal.
Em outro apartamento, a
mulher fez do local uma pequena confecção. Costurava sem parar dia e noite para
sobrevivência. Separada, desempregada, o ex-marido não contribuía em nada e
ainda ia sempre lá tirar sarro da cara dela, exigindo algum dinheiro que ela não
tinha, pois vivia em débito com o condomínio.
Noutro, um casal com
dois filhos, em que a mulher era bastante estranha, às vezes cumprimentava,
outras vezes não. Uma vizinha explicou, ela tem epilepsia e humor instável.
Outro apartamento, com casal,
filho e sogra. A mulher recebia o salário e ajudava o marido desempregado que vivia
de biscates e tentativas de negócios que não vingavam.
Sobre o décimo segundo
morador do prédio, o casal preferia nem tocar no assunto, não conversava sobre
ele nem na intimidade do lar, pois era muito pano pra manga.
O casal aprendeu a se moldar de acordo com o sobe e desce do edifício.
Os dois irmãos se correspondiam desde a juventude e em mais de seiscentas cartas pode-se hoje conhecer a dor daquele homem martirizado. Tais cartas, organizadas em ordem cronológica dão a coerência e a sensação de, no ato da leitura, se pressentir o encaminhar dos fatos, como se vivenciados no aqui e agora. Isto cria uma tensão ainda mais forte em Marc, que chega a conjeturar que Van Gogh sabe a verdade... Que a sua morte está próxima!
O que se passa na mente de Van Gogh pode ser abstraído da leitura feita com cuidado e de forma incondicional, ao se colocar no lugar de quem redige. Marc o faz; passa a vivenciar a sensibilidade e a fragilidade daquele sujeito em busca de si mesmo.
Van Gogh busca a independência pessoal e financeira através de uma profissão e, desde as primeiras tentativas da adolescência, até passar por diversas etapas, vai cada vez mais ampliando a sua dor, a dor de não ter a clareza do seu verdadeiro projeto.
Inicia trabalhando com um tio, em loja de material de pintura, onde começa a esboçar seus desenhos sem nenhum tipo de orientação, passando a ter a noção sobre as cores, os pincéis, as telas, como se ordena o mundo das artes. Entretanto, no trabalho burocrático a que foi designado, começam aflorar dificuldades de ordem concreta e, Van Gogh passa a desempenhar as tarefas de forma desleixada, o que dificulta sua continuidade naquele trabalho. É despedido.
Théo e a família correm ao seu socorro, ajudando-o nas despesas. Van Gogh, em nova tentativa, busca na religião, seguindo agora o pai, um pastor fervoroso, um caminho onde encontre harmonia. O pai consegue que ele vá trabalhar com assuntos dessa área; mas ele, logo, logo, não aceita ser direcionado e age de forma autônoma, considerando que o seu jeito de ver as coisas seja o correto. Mais uma desilusão! Dá-se mal também nesta empreitada.
Seu irmão, Théo, atua como seu conselheiro. É o único a quem Van Gogh escuta. Ele já tinha enviado alguns trabalhos feitos em carvão e, Théo vislumbra nos trabalhos do irmão mais velho, certo domínio de formas, que apesar de ainda primitivas, traziam algo diferenciado e o incentiva nesta nova etapa.
Théo passa a financiar-lhe a vida dentro de suas possibilidades, enviando determinada quantia que possibilite a compra de materiais e a sobrevivência. Van Gogh tem uma vida miserável, mas é feliz; parece ter encontrado sua verdadeira vocação, seu papel nesta vida.
A descoberta o impulsiona e, com sede de pintar, não reclama. Faz cursos para entender melhor a dimensão do humano no desenho, pois inicialmente tem mais desenvoltura com a natureza; conhece diversos pintores; aprende a lidar com as cores em suas diversas nuances.
Trabalha convulsiva e intensivamente, dia após dia, e em pouco mais de 10 anos, numa efervescência criativa, eis mais de seiscentas verdadeiras obras de arte que somente após a sua morte valeriam uma fortuna. Marc fica maravilhado por estar vivenciando tamanha descoberta e identificando a força criadora que se expande a cada dia de forma voraz naquele homem.
No amor Van Gogh não é feliz. Apaixona-se pela filha de sua senhoria que não lhe aceita a corte, o mesmo acontecendo com uma prima viúva. Vive martirizado pelas rejeições sofridas, frustrado com a sua falta de jeito no amor. É um homem rústico, apesar de instruído e conhecedor dos clássicos. Marc, a cada envolvimento na história, corporifica tais dores, como se suas fossem.
Van Gogh, à noite, tem o hábito de frequentar um café noturno de Paris, conhece uma mulher viciada em bebidas, grávida; resolve cuidar dela no afã de ter uma família. Mas, a tal mulher o despreza pela pobreza ao derredor e o abandona. Os aspectos de sua sanidade passam por altos e baixos a partir das frustrações amorosas e Marc sofre junto com ele.
Conhece muitos pintores de época que seriam famosos um dia. Aproxima-se mais intimamente de Paul Gauguin, com quem divide a moradia por algum tempo, até a derradeira discussão entre ambos.
Marc, apesar dos mais de cem anos depois, a cada leitura de uma carta e tendo o conhecimento da data, mais e mais se angustia; sofre com a proximidade da morte do pintor Van Gogh, que nos últimos períodos de sua vida deixa transparente o que aquela existência malograda lhe acarretou, surgem os comportamentos mais agressivos, chegando ao extremo do corte da própria orelha.
Tais acontecimentos, que vivenciados por Marc como se verdadeiros fossem naquele instante, se faz muitas perguntas sobre a morte e o morrer, tomando para si aquela angústia, a angústia de quem está ciente da chegada do fim, que culmina com o suicídio de Van Gogh, aos trinta e sete anos.
Uma tristeza enorme, misto de angústia por vivenciar a iminente morte do pintor, tão perto de si, como algo que simplesmente é, nada se pode fazer... Sem saber que ele próprio está com os seus dias contados.
O nosso paraíso perfeito, nosso Shangrilá... Fernando de Noronha! |
TEMPO DE PÁSCOA
A LOUCA DE PRETO
MUNDO DA LUA
Não sei como consegui criar essa menina e a outra, que nasceu dois anos mais tarde. Sem pais. Eu que mal compreendia a vida, agora com mais duas gurias para sustentar.
Nunca entendi bem o que a palavra "mãe" significa, apenas sei que cuidei daquelas criaturinhas que não pediram para nascer. Agora ouço: _Vó! Vó! vó! É meu netinho gritando, querendo alguma coisa, todo sapeca em sua meninice. Faço suas vontades, não sei dizer não! Mais uma boca pra alimentar e..."
Geni assusta com a voz da patroa que lhe fala: _ Agiliza Geni, agiliza, que você vai chegar tarde em casa!
Geni retorna aos afazeres que a hora já tardava.
Na casa da prima ia ajudar nos afazeres domésticos, mas se esforçaria para estudar, estudar e assim, começar uma vida independente, sem o comando de ninguém.
Morava na roça, cidadezinha de interior, sem futuro, só a roça a atingir a vista, juntamente com a mata a perder de vista. Transporte, não tinha; se quisesse tinha que caminhar muitas léguas à pé. Raquítico que era, não conseguia nem pegar um corpo devido a lida desde a tenra idade. Agora, deixou a família, foi pra cidade grande realizar seu sonho de pequeno. Era ambicioso, queria ser alguém importante.
O seu cotidiano iria confirmar que o futuro seria difícil. A prima era do tipo de pessoa que gosta de sugar do outro tudo o que pode. Não tinha direito a nada, pois vivia de favor. Ai dele se a contrariasse, enviava-o de volta para a roça. E assim vão seus dias... Suas noites. Muito trabalho doméstico... Sem descanso. Não reclamava, vislumbrava-se no olhar uma certa tristeza.
Chegou o tempo da escola, início de ano, muitos planos. Com seus doze anos, ainda criança, mal podia aproveitar o tempo como as outras crianças da rua. Elas lá fora brincando, correndo, em algazarras. Ele com as tarefas de todo dia. A prima permitia brincadeiras por pequeno período. Quando a brincadeira estava no auge, era chamado para as obrigações. Resignado e conhecendo suas limitações obedecia de cabeça baixa, ia lavar os vasilhames; cuidar da casa; lavar a roupa.
Três anos se passaram e ele seguia com sua rotina. Escola, afazeres, ordens a cumprir e finalmente, à noite, exausto, ia pra cama. Mesmo assim, ainda encontrava forças para sonhar e se deixava embalar pelo sono, pelo sono.
Aos dezessete conseguiu um trabalho em casa de um colecionador de orquídeas. Aprenderia o ofício de tal forma que não interferisse nos estudos e ainda, ia ter um quartinho só seu para morar. Visitava a prima nos finais de semana e então, tinha que trabalhar dobrado: limpeza por fazer; roupas pra lavar... Continuou a visitá-la por mais algum tempo e depois sumiu sem dar satisfação.
Mudou-se definitivamente para o tal quartinho e o cultivo das orquídeas tomava agora o seu tempo, além dos estudos. Ficara livre da prima, que em sua raiva neurótica, xingou mundos e fundos por ele não reconhecer o quanto o tinha ajudado. Não se pode mesmo confiar nos parentes!
A vida seguiu seu rumo. No trato com as orquídeas aprendeu muito. Plantas resistentes, mas ao mesmo tempo delicadas e muitos cuidados são necessários para as mais belas flores encantarem em perfeição e durabilidade.
Tornou-se adulto. Conseguiu um emprego melhor e preferiu alugar um cômodo, vislumbrando sua independência. Conseguiu se livrar da prima, agora tinha se livrado do dono das orquídeas. Todos tinham sido utilitários para o alcance de sua liberdade.
Parecia não aprofundar nos sentimentos e lidava com tudo de forma superficial. Não tinha vocação para a reflexão sobre as pessoas que passaram por sua vida e a contribuição feita.
Seguiu seu caminho. Tinha guardado dentro de si uma insegurança básica, que se constituía em um sentimento de inferioridade. Como defesa lutava contra os abusos de poder, contra os fortes que oprimiam os fracos. Característica que se foi exacerbando até que se encaixou como uma luva em seu novo papel.
Engajou-se na militância. Aprovado pelos companheiros, viu-se no papel de líder, onde comandava. Considerou-se poderoso, mas não chegou a aprofundar o valor do coletivo, disto servindo-se apenas para o alcance de projetos pessoais.
Foi nesse espaço que se locupletou; fizera amigos, aprendera a usar seu charme pessoal na sedução das companheiras, assimilou um discurso político a contento. Afinal, merecia ser amado e isto servia aos seus propósitos.
Vivia o auge do seu momento político e cada vez mais, assomava-lhe certa prepotência no uso do poder. Considerando-se poderoso, onde nada ou ninguém era percebido. Bastava-se.
Emocionalmente aparentava certa tranquilidade, não necessitava buscar em seu íntimo angústias. Não as tinha. Acostumara-se ao seu padrão de viver.
Aos poucos foi sendo marcado por atos que deixaram visíveis seu aspecto medíocre, vaidoso e muitas vezes, metia os pés pelas mãos, já mostrando certo desconcerto. Até que politicamente ficara marcado por seus atos. Todas as suas habilidades pessoais assomadas ao descontrole e desequilíbrio emocional não puderam contribuir para a construção daquele menino que quisera especial.
O tempo passou. Na busca de suas conquistas, ele só não deixou de fazer uma única coisa que lhe dava prazer: cultivar e cuidar das orquídeas... Na vida independente que sonhara.
Sentiu-se um vencedor!
SEGREDO NA GAVETA
Conhecia suas limitações. Sabia-se uma artesã das palavras, longe de comparações com os verdadeiros poetas... Mas, não é de sonhos que se vai
construindo a vida?
Isabel nos seus cinquenta anos de idade, tinha passado etapas de sua vida existencial, profissional e pessoal com tranquilidade, sem grandes alardes. Mas era uma insatisfeita. Sentia uma falta. Sempre à procura, considerou que através dos textos pudesse, senão encontrá-la, utilizar-se da tal catarse na expressão de sentimentos.
Para tal propósito sempre existia um dificultador. Algo que a fazia emperrar na tentativa e que exigiria dela uma grande energia, um grande esforço.
Esboçou os primeiros textos. Engatinhando no uso da imaginação e fantasia; escrevendo textos com características em que se misturavam realidade e ficção, considerando que daria um ritmo interessante; e a quem lesse, vontade de seguir até o final.
Esbarrou na visão conceitual do marido. Homem realizado, racional, que ao lê-los; considerou-os inadequados para vir a público. A censura era grande e apelava para as considerações sociais: "O que diriam a respeito?". Isso, para ele, tinha mais importância do que os sentimentos gerados por cada palavra, frase, cada trecho criado pela mulher, por Isabel.
Ela, ao contrário, enxergava textos carregados de sensualidade, de sofreguidão pela vida, que retratavam os anseios... Pusera toda a magia na construção e não conseguia analisar pelo ângulo do companheiro.
Passou a refletir sobre o seu papel naquela relação - seria de submissão, resignação, respeito... Insatisfeita consigo mesma por aceitar uma derrota da primeira vez: "Por que ele agia de tal forma? O que ela fizera de grave? Por que tinha que sujeitar-se àquela situação?".
Perguntas que tinham respostas - respostas complexas; anos de sujeição da mulher; do patriarcado enraizado nas entranhas de seus homens, que por mais que se esforçassem, continuavam a emitir ponto de vista preconceituoso.
Isabel ia, deixando a vida ir levando-a; afinal, não conseguia viver sem aquele homem, apesar de não entender sua visão de mundo. Não exigiu seus direitos.
Ninguém é perfeito!
GOZO DA VIDA
O pensamento dela voava... Atordoava.
LIÇÃO DE DONA COTINHA
10/01/2008
Contou-me sua história de vida, do tempo em que a mulher casava sem amor; porque a família assim o tinha definido ou por sofrer horrores nas mãos do pai, seu carrasco, e, tentar reduzir a dor daquele destino. Ledo engano. Isto acontecera com ela. Casou-se muito nova e bobinha. Aquele homem aproveitou-se de seu mando e a fez escrava de seus desejos.
Contou-me suas lembranças, marcadas a ferro e fogo. Por exemplo, quando o marido aposentou-se e não lhe disse nada, passando a ficar constantemente em casa. Criou coragem e um dia perguntou pra ele se tinha se aposentado. Ele apenas respondeu que sim. Ela apenas disse "tá bom!".
Sujeitou-se a diversas humilhações; ao ponto de, com filhos ainda pequenos, ter de encarar aquele homem com duas, três amantes. Chegou a levar uma delas em sua casa e exigir que cozinhasse para ambos. E após o almoço, os dois contaram que aquela mulher, a tal fulana que comia de sua comida, era uma das tais amantes; com o objetivo de mostrar para ela que era uma boba.
Segundo Dona Cotinha, a ela, cabia o silêncio por respeito aos filhos. O marido, ele, descaradamente, falava de suas aventuras. Suportou. Dependia dele, nunca tinha trabalhado fora, sempre fora uma simples dona de casa, domesticada!
A crise entre marido e mulher chegou a tal ponto que ele cruelmente jogou-lhe que "ela não era mulher para ele". Saiu de casa. Não se separaram oficialmente, o marido continuou a ser o provedor daquela família.
Os filhos cresceram e cada qual foi viver sua história; mas Dona Cotinha fazia questão de frisar que suas filhas eram muito boas para ela; já os filhos meio largados, deixavam-na sozinha... Gostava deles assim mesmo! Enfatizando que nunca tinha reclamado um "a" do pai deles, pois os filhos devem respeito ao pai.
O marido de Dona Cotinha voltou ao lar depois que problemas graves de saúde começaram a povoar sua vida. Pediu perdão a ela; "_ Perdoei, fazer o quê?", disse, dando de ombros. Concluiu com seus botões "Eu é que não preciso pedir perdão a ninguém, não dou motivos". No final, o marido reconheceu que só podia contar mesmo é com a família.
Dona Cotinha seguiu sua vida sem tornar a se casar. Na ponta de seus saltos altos, disse: "Homem dá muito trabalho e os que se encontra por aí, querem é uma doméstica para cozinhar, lavar e passar. Eu quero alguém que cuide de mim!".
Continuando nossa conversa, disse toda coquete, que apesar das poucas letras, procurava saber das coisas, pois não se pode ficar boba "nesse mundo de Meu Deus". "Sou esperta, com meus sessenta e nove anos de idade não fico parada esperando as coisas acontecerem. No meu canto, crio galinha, porco, cuido da horta, dou o meu jeito".
Com a venda dos produtos e com sua aposentadoria minguada, Dona Cotinha vive a vida sempre ativa, não é de ficar parada, não!
Foi com jeito sapeca que ela se despediu de mim... Que eu saiba envelhecer como Dona Cotinha!
Nenhum comentário:
Postar um comentário