terça-feira, 23 de junho de 2020

Como está a vida? (CENA 18)

15/06/2020
  Como está a vida? A felicidade apareceu? Amor presente? O que tinha planejado aconteceu?
       Sentado no pequeno espaço relembrava perguntas que surgiam nas conversas, distanciado de todos e na presença contínua e constante apenas consigo, os meses passam rápido, e notícias derrubam visão da natureza humana, nestes tempos, tão belicosa. Entretanto, o tempo passa lentamente em lembranças.

         Paz Felicidade Amor. Aqueles tempos em que acreditavam conhecer a verdade, na condição narcísica e onipotente de mudar o mundo, de transformar a realidade do país e a própria vida. Mas, vida transcorre em pequenos grupos. Aquela vida besta que diz Drumond. A casa. Os bichos domésticos. O entorno. As amizades.
            A pequena turma de adolescentes se encontrando na esquina. Três moças, três rapazes. Amizade nascida do interesse comum de preservar a si. Irmandade: Maria, Mafalda, Leila, Osvaldo, Aluísio e Eustáquio. Olha que não foi fácil convencer Maria.
            ― (Maria) Querem que siga vocês? Ah, tá! Sou boa aluna e líder de classe, enquanto vocês, o bando da confusão. E além disso, escuto minha mãe que diz, faz tudo certinho e chegará ao sucesso.
            ― (Osvaldo) Quem disse que sua mãe sabe tudo? Por que ela é a sua mãe? Vê ela questionando seu pai?  ― Maria negou. ― A verdade dela é a certa? Você aí, arrumadinha, conformada, é feliz?
         ― (Leila) Cadê o brilho do seu olhar, Maria? E o amor verdadeiro? Está preparada para ele? No final, quais aventuras viveu?
            ― (Maria) Deem bom motivo, o que ganho com isso?
        ― (Mafalda) Ela tá certa, gente. Deixa Maria seguir a vida que julga suficiente. Concordo com Osvaldo, qual é a verdade? A verdade pode ser ilusória, fabricada em fatos ou versões.
           ― (Aluísio) Vou pensar em alguma coisa! Amanhã depois da aula a gente se encontra.
        ― (Eustáquio) Isso aí. Você é bom nas estratégias, eu, com minha ansiedade e falta de paciência, vou acabar brigando enquanto explico.
            Assim, Aluísio com tino para negócios construiu o: Todos por um. Cada pessoa protetora dos demais, assim ninguém estaria sozinho. Maria convencida finalmente. A equipe fortalecendo laços e construção da história por todos. 
            Encontravam-se todos os dias, às vezes, em separado, só homem ou só mulher, ou os de afinidade momentânea. E assim, olhares trocados, raivas despejadas, brigas ocasionais, ciúmes desconhecidos, timidez impedindo palavra ou frases interpretadas como negação quando na verdade eram concordância e vice-versa. Comunicação é base, mas como é difícil. O relacionamento se intensificando a tal ponto que

Osvaldo se interessou por Leila,
que se interessou por Eustáquio,
que se interessou por Maria,
que se interessou por Aluísio.
Mafalda se interessou por Leila.

Como a turma estará hoje? Terá respostas? Não vejo ninguém desde então, apenas de Taquinho sei destino. Quem sabe resgato notícias por carta? Lembro do nosso entusiasmo com esse tipo de comunicação e juntávamos músicas e poemas na escrita. Agora vejo tanta tecnologia, mas distanciamento.

Osvaldo voltou à realidade, apagou cigarro e correu para dentro, afinal frio e vento castigavam. Preparou chá e aquecido foi para o quarto.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Pai, afasta de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue (CENA 17)


09/06/2020

Ritinha em chamada de vídeo para Dodô ouviu a música ao fundo. Dodô atendeu cantando:

― “Pai, afasta de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue...”

― Dodô, hum, cantante!

― “Como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta... tanta mentira, tanta força bruta... Pai, afasta de mim este cálice, Pai, de vinho tinto de sangue ...” ― continuou ― ouvindo o Chico Buarque, tão atual, quem diria.

― Ai, Dodô, a situação trazendo pesadelos. Acordei sufocada hoje:

Ritinha vivia num povoado de solo arenoso, todos eram minis, pequeninos do tamanho do dedo mindinho, e olhavam assustados a chegada do pássaro gigante, o Carcará, que em voo rasante atacou. Mas as pequenas criaturas se uniram e enfiaram a ave na areia. Rapidamente cavaram buraco maior e jogavam areia, até apenas a cabeça estar visível. Preencheram as lacunas e o monstro não se mexeu mais.

― E ontem tive outro ― respirou fundo enquanto contava:

Ritinha olhava uma pessoa listando países africanos: Gana, Moçambique, Zimbabwe, Botswana, Uganda, Angola, ... não sabia o porquê, apenas escutava, só que, do nada surgiu o monte de cobras de cor e tamanho diverso e rodeava-se e enrolava-se num espetáculo inacreditável e pavoroso.

― Você tá ansiosa demais, menina!

― Dodô, quem não mora em periferia fala assim, se vivesse aqui saberia o que é violência, não só a pandemia nos assustando, mas aqueles que deviam nos proteger, vem com armas e atiram pra todo lado, não se importando em quem acertam. Quando amanhece, vidas perdidas sem propósito. Não temos paz, é guerra diária. Desse jeito vamos vivendo na esperança de melhor dia. Mas, te liguei porque vou encontrar com Valdo, levar a compra semanal e a encomenda para preparar caldo, canjica, amendoim, pipoca, ele me disse que o São João é para acender o coração.

― Semana que vem é a vez da Luiza. Vamos ver se dará tempo dela ir ao supermercado, pois foi convocada para trabalhar na loja, apesar do atendimento on line.

 

O dono da revistaria onde Ritinha trabalhava não deu trégua nem durante a quarentena. Todos os dias, após dois ônibus, se via a moça chegar ao local do trabalho. Mas para quê? Perguntou Osvaldo, inculcado com a estreita visão do comerciante, afinal ninguém transitava naquele pedaço do centro, as pessoas estão em casa, são esses que compram, por que seu patrão faz isso, Ritinha? Osvaldo continuava.

― Cabeça de patrão, Valdo. Agora ele tá vendo as loucuras do governo, já mudou o tom e até assinou manifesto pela democracia.

― Pois senti foi náuseas ao ler tal manifesto e quanta gente boa assinou, junto com aqueles que vivem pisoteando o povo, empresários que geralmente estão na linha de frente da destruição dos nossos direitos. Até progressistas assinaram. Eles não aprendem, se unem aos endinheirados achando que são levados em consideração, são engolidos pela falta de visão e ingênuos embarcam na esperança de somar.

― Mas, oh Valdo, até eu assinei o tal manifesto. Quando vejo aos poucos a falta de liberdade, a destruição das instituições, temos de barrar. Não quero ditadura não, minha família viveu essa época e desconjuro retorno.

― O que você disse é verdade, mas não podemos embarcar no primeiro bote que aparece, o que eles querem? Querem o governo destituído, mas continue a retirada de direitos, a venda das riquezas naturais, a destruição do SUS, da educação, do meio ambiente. Essa elite do atraso não quer agenda de direitos de trabalhadores, que são os que perdem. Querem mudança para continuar tudo como está, apenas tirar a pedra do caminho, você sabe. O povo precisa entender essas trapaças, Ritinha, você deve estar atenta como cidadã, mulher, negra e pobre, é das mais prejudicadas.

― Não é fácil não. Viu o caso do homem negro dos Estados Unidos, o policial apertou tanto o pescoço e ele não conseguiu respirar? Como pode a polícia, quem deve cuidar de nós faz o jogo do outro lado, como pode? A gente insegura na cidade em que vive.

― E aqui no Brasil é bem pior, e olha que mais de cinquenta por cento são negros e pardos e outras mais de cinquenta por cento são mulheres, e as maldades persistem. Precisam se unir...

― Mas me conta, conseguiu comprar o que te pedi? Nem sei de mim sem vocês, meninas, a Dodô, a Luiza, você. Velho como estou, o corona iria me tombar rapidinho com a falta de ações governamentais em contínuo desrespeito, onde velho também é descartável.

― A gente vê cada uma no supermercado, Valdo, que vou te contar. Eu bem próxima, escolhendo legumes e o homem perguntou para dois repositores “onde acho gengibre em pó?”, os dois falando e se olhando: “gengibre em pó? nunca vi”, “não existe não”, “nós não ‘tem’ não”. Eu queria participar, mas desisti, puxei o carrinho e logo na prateleira em frente vejo temperos, e tinha gengibre. Peguei um pacotinho e voltei. Os dois repositores de costas, coloquei o pacotinho no monte em que mexiam e saí. Quando um deles se virou, pegou o objeto e “olha aqui, nós ‘tem’ gengibre em pó, sim, olha só”.

― Pelo jeito esse nunca fez compra antes, coitada da mulher. Você tem razão, é cada coisa ― Valdo riu.

― Acabou não. Eles ficaram boquiabertos com o tempero em pó e saí rindo. Logo adiante, outro homem “onde fica acetona?” Ah, não, esses homens são de Marte? afinal não sabem nem achar mercadoria, coitadas de nós que ainda continuamos domésticas e responsáveis pelo cuidado.

― Passando da hora de mudar atitude. E pra que acetona, me fala, pra quê? Cada coisa de não se acreditar. Vou pegar álcool gel para passar nas embalagens e lavar as verduras e frutas com sabão. Pena não poder te dar abraço de gratidão.

Osvaldo retornou. Os dois com máscara e à distância.

― Valdo, amigo é pr’essas coisas. Cuidado com álcool, você fuma muito,  é perigoso, lave bem as mãos.

― Quem tá auxiliando a senhorinha do prédio próximo onde a gente se reúne? ― Falou enquanto esfregava álcool nos objetos.

― Um grupo solidário se formou, vejo chegando compra. Ela vai à janela vez em quando e parece se perguntar, que confusão é essa! Tempos estranhos vivemos. Bem, agora vou embora, está escurecendo.

― Pronto, chamei um carro pra te levar, fala com’as meninas que morro de saudade dos encontros, mas estou bem. Difícil é ver mortes a cada minuto, diariamente, e o país tão desacreditado aqui e no exterior. Até o império dando mostra da incompetência daqui, mas tanto ele como o de cá se dão as mãos.

― No meu bairro então, periferia, nem te conto a desolação. O carro buzinou. ― Ritinha puxou a bolsa do encosto da cadeira e saiu gritando, ― fique bem, Valdo, nada de fumar demais, faz exercício físico, ouça música e outras artes, elas estão nos salvando nessa terrível pandemia. Obrigada pelo carro... Até!

Osvaldo foi à varanda, o lugar preferido, o banquinho e a mesinha ao canto. Acendeu o cigarro e conversava com ele. No horizonte, o vermelhidão do pôr do sol. Respirou com ânsia.

― Veja, mamãe e meu irmão ali, amorosamente abrindo-se em risos. ― A fumaça espalhou-se. Osvaldo também sorriu e deixou-se levar. Um tiquinho de felicidade permitida.