terça-feira, 23 de junho de 2020
Como está a vida? (CENA 18)
sexta-feira, 12 de junho de 2020
Pai, afasta de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue (CENA 17)
09/06/2020
Ritinha
em chamada de vídeo para Dodô ouviu a música ao fundo. Dodô atendeu cantando:
―
“Pai, afasta de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue...”
―
Dodô, hum, cantante!
―
“Como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta... tanta
mentira, tanta força bruta... Pai, afasta de mim este cálice, Pai, de vinho
tinto de sangue ...” ― continuou ― ouvindo o Chico Buarque, tão atual, quem
diria.
―
Ai, Dodô, a situação trazendo pesadelos. Acordei sufocada hoje:
Ritinha
vivia num povoado de solo arenoso, todos eram minis, pequeninos do tamanho do
dedo mindinho, e olhavam assustados a chegada do pássaro gigante, o Carcará, que em voo rasante atacou. Mas as pequenas criaturas se uniram e enfiaram a ave na areia. Rapidamente cavaram buraco maior e jogavam
areia, até apenas a cabeça estar visível. Preencheram as lacunas e o monstro não se
mexeu mais.
―
E ontem tive outro ― respirou fundo enquanto contava:
Ritinha
olhava uma pessoa listando países africanos: Gana, Moçambique, Zimbabwe,
Botswana, Uganda, Angola, ... não sabia o porquê, apenas escutava, só que, do nada surgiu o monte de cobras de cor e tamanho diverso e rodeava-se e enrolava-se
num espetáculo inacreditável e pavoroso.
―
Você tá ansiosa demais, menina!
―
Dodô, quem não mora em periferia fala assim, se vivesse aqui saberia o que é violência,
não só a pandemia nos assustando, mas aqueles que deviam nos proteger, vem com
armas e atiram pra todo lado, não se importando em quem acertam. Quando
amanhece, vidas perdidas sem propósito. Não temos paz, é guerra diária. Desse
jeito vamos vivendo na esperança de melhor dia. Mas, te liguei porque vou
encontrar com Valdo, levar a compra semanal e a encomenda para preparar caldo,
canjica, amendoim, pipoca, ele me disse que o São João é para acender o coração.
―
Semana que vem é a vez da Luiza. Vamos ver se dará tempo dela ir ao
supermercado, pois foi convocada para trabalhar na loja, apesar do atendimento on line.
O
dono da revistaria onde Ritinha trabalhava não deu trégua nem durante a
quarentena. Todos os dias, após dois ônibus, se via a moça chegar ao local do
trabalho. Mas para quê? Perguntou Osvaldo, inculcado com a estreita visão do
comerciante, afinal ninguém transitava naquele pedaço do centro, as pessoas estão em casa, são esses que compram, por que seu patrão faz isso, Ritinha? Osvaldo continuava.
―
Cabeça de patrão, Valdo. Agora ele tá vendo as loucuras do governo, já mudou o
tom e até assinou manifesto pela democracia.
―
Pois senti foi náuseas ao ler tal manifesto e quanta gente boa assinou, junto
com aqueles que vivem pisoteando o povo, empresários que geralmente estão na linha
de frente da destruição dos nossos direitos. Até progressistas assinaram. Eles
não aprendem, se unem aos endinheirados achando que são levados em consideração,
são engolidos pela falta de visão e ingênuos embarcam na esperança de somar.
―
Mas, oh Valdo, até eu assinei o tal manifesto. Quando vejo aos poucos a falta
de liberdade, a destruição das instituições, temos de barrar. Não quero
ditadura não, minha família viveu essa época e desconjuro retorno.
―
O que você disse é verdade, mas não podemos embarcar no primeiro bote que
aparece, o que eles querem? Querem o governo destituído, mas continue a
retirada de direitos, a venda das riquezas naturais, a destruição do SUS, da educação,
do meio ambiente. Essa elite do atraso não quer agenda de direitos de
trabalhadores, que são os que perdem. Querem mudança para continuar tudo como
está, apenas tirar a pedra do caminho, você sabe. O povo precisa entender essas
trapaças, Ritinha, você deve estar atenta como cidadã, mulher, negra e pobre, é
das mais prejudicadas.
―
Não é fácil não. Viu o caso do homem negro dos Estados Unidos, o policial apertou
tanto o pescoço e ele não conseguiu respirar? Como pode a polícia, quem deve
cuidar de nós faz o jogo do outro lado, como pode? A gente insegura na cidade
em que vive.
―
E aqui no Brasil é bem pior, e olha que mais de cinquenta por cento são negros
e pardos e outras mais de cinquenta por cento são mulheres, e as maldades
persistem. Precisam se unir...
―
Mas me conta, conseguiu comprar o que te pedi? Nem sei de mim sem vocês,
meninas, a Dodô, a Luiza, você. Velho como estou, o corona iria me tombar
rapidinho com a falta de ações governamentais em contínuo desrespeito, onde
velho também é descartável.
―
A gente vê cada uma no supermercado, Valdo, que vou te contar. Eu bem próxima,
escolhendo legumes e o homem perguntou para dois repositores “onde acho
gengibre em pó?”, os dois falando e se olhando: “gengibre em pó? nunca vi”, “não
existe não”, “nós não ‘tem’ não”. Eu queria participar, mas desisti, puxei o
carrinho e logo na prateleira em frente vejo temperos, e tinha gengibre. Peguei
um pacotinho e voltei. Os dois repositores de costas, coloquei o pacotinho no
monte em que mexiam e saí. Quando um deles se virou, pegou o objeto e “olha
aqui, nós ‘tem’ gengibre em pó, sim, olha só”.
―
Pelo jeito esse nunca fez compra antes, coitada da mulher. Você tem razão, é
cada coisa ― Valdo riu.
―
Acabou não. Eles ficaram boquiabertos com o tempero em pó e saí rindo. Logo
adiante, outro homem “onde fica acetona?” Ah, não, esses homens são de
Marte? afinal não sabem nem achar mercadoria, coitadas de nós que ainda
continuamos domésticas e responsáveis pelo cuidado.
―
Passando da hora de mudar atitude. E pra que acetona, me fala, pra quê? Cada coisa
de não se acreditar. Vou pegar álcool gel para passar nas embalagens e lavar as
verduras e frutas com sabão. Pena não poder te dar abraço de gratidão.
Osvaldo
retornou. Os dois com máscara e à distância.
―
Valdo, amigo é pr’essas coisas. Cuidado com álcool, você fuma muito, é perigoso, lave bem as mãos.
―
Quem tá auxiliando a senhorinha do prédio próximo onde a gente se reúne? ― Falou
enquanto esfregava álcool nos objetos.
―
Um grupo solidário se formou, vejo chegando compra. Ela vai à janela vez em
quando e parece se perguntar, que confusão é essa! Tempos estranhos vivemos. Bem,
agora vou embora, está escurecendo.
―
Pronto, chamei um carro pra te levar, fala com’as meninas que morro de saudade
dos encontros, mas estou bem. Difícil é ver mortes a cada minuto, diariamente, e
o país tão desacreditado aqui e no exterior. Até o império dando mostra da incompetência
daqui, mas tanto ele como o de cá se dão as mãos.
―
No meu bairro então, periferia, nem te conto a desolação. O carro buzinou. ―
Ritinha puxou a bolsa do encosto da cadeira e saiu gritando, ― fique bem,
Valdo, nada de fumar demais, faz exercício físico, ouça música e outras artes,
elas estão nos salvando nessa terrível pandemia. Obrigada pelo carro... Até!
Osvaldo foi à varanda, o lugar preferido, o banquinho e a mesinha ao canto. Acendeu o cigarro e conversava com ele. No horizonte, o vermelhidão do pôr do sol. Respirou com ânsia.
― Veja, mamãe e meu irmão ali, amorosamente abrindo-se em risos. ― A fumaça espalhou-se. Osvaldo também sorriu e deixou-se levar. Um tiquinho de felicidade permitida.