sábado, 28 de março de 2020

VERBO AMAR


19/03/2019
Ele disse “eu te amo” durante o amor. Quanto tempo não escutava a frase?  Perscrutou e as  recordações escapavam. Importava o agora, e agora ele tinha acabado de dizer.
   De quantos agora já são passado, de longos anos de convivência? Para que essa necessidade de encontrar justificativa? O que me impede de  apenas usufruir da emoção de amar? Eu amo, tu amas, ele/ela ama, nós amamos, vós amais, eles/elas amam, simples conjugação.

      Mulheres são deveras estranhas. Reclamam quando não falamos. Reclamam quando falamos. Como entender a mulher? E esse orgulho que mora fundo em mim, essa alma de homem não tão dada a tantos risos, por que não me solto dessas amarras?
          
        De manhã, abriu a janela. 
     Voltou para cama se permitindo a preguiça. Ouvia o barulho vindo da cozinha. Ele preparava o café da manhã. Bem que poderia trazer o café pra mim, pensou. Esperou. O estômago reclamava. Levantou e disse baixinho, é querer demais, com leve risada.

        Olhou para fora. O verão ia se fechando sem as águas de março. Mas a promessa de vida se fez e respondeu a si mesma “ainda resta esperança”. 

quarta-feira, 18 de março de 2020

NÃO PASSARÃO

17/03/2020
O Pássaro era diferenciado? Havia tantos iguais em tão diversos aspectos que não se poderia dizer. Era diferente por ser único, era igual quando considerado a tantos. Quantos pássaros estão com asas quebradas e nem percebem.
Lilase percebia.
Inicialmente pensara, fosse o amor. Ah! O amor, capaz de inibir tanto defeito quanto qualidade. O gostar que vai além do ‘apesar de’. Lilase gostaria que o seu fosse incondicional, mas não alcançava a máxima. O pássaro que a cortejara mostrava-se superior na potência fisiológica, o corpo malhado, o peitoral fortalecido, inclusive asas bombadas. Bailava a dança do cortejo com exímia beleza, e se o terreno não estivesse à altura, tratava logo de assear o local e deixá-lo lustroso. Imaginara para a fêmea de sua escolha, o excepcional.
Depois da conquista, Lilase esperava voos de afinidade. Queria voar além mar, descobrir céus e cidades, banhar-se em riozinho escondido entre cânions e que trazia a herança de passagens ancestrais. Que a volta ao mundo fosse o espetáculo porque em parceria. O pássaro tratou de cortar asas de Lilase. Ela, assim como tantas fêmeas, tinha a obrigação de reconhecer o papel do macho, escrito desde muito, e a maioria assimilava a cultura introjetada: o papel de coadjuvante da fêmea. Ela tinha potencial para mais, assim como tantas outras, mas.
A veia de Lilase não era a clássica, herdada de berço, ou convencional, e aceita por ser da cultura. Inflamava cantos de liberdade, chamariz para que outras fêmeas escutassem e alçassem voos. Ao podar asas, o pássaro macho decretou perda.
A asa retomou o crescimento, Lilase voou por conta e risco. Já não dependia das conquistas, enfatizava o novo sistema em que passarinhar, era o canto maior.

sexta-feira, 13 de março de 2020

águas

10/03/2020
Abriu a porta de casa. A paisagem verde, a umidade percebida em cada inspiração, o aroma da natureza. Tirou os sapatos e as meias. Desceu quatro degraus. No caminho, escutava o som da água batendo com rebeldia nas pedras. O extrato de folhas amaciava os passos, e a pouco chegou à margem. Sentou-se.
      O rio seguia o fluxo e violentamente pequenas quedas formatavam minicachoeiras em determinados vãos de pedra. Mal se enxergava a outra margem. O rio impunha suas regras.
A solidão sem vozes humanas. A moradia protegida pela mata fechada e o vizinho mais próximo a algumas milhas. Quando vinha do trabalho passava defronte à cerca e do carro, cumprimentava-o. Não tinha família nem intenção de buscar parentes distantes.
Tirou a roupa e entrou devagar, pisando em seixos até o ponto em que, com um impulso, mergulhou, e novamente a monotonia da paisagem. Minutos se passaram.
Num estrondar de água, surgiu à tona. Passou as mãos sobre os cabelos e o êxtase aflorou, levando a misteriosa angústia que não conseguia amansar senão às águas profundas. Nadou um pouco mais. Vestiu-se. Entrou em casa e o ar impregnado pelas cinzas da memória. O vento irmanava companhia.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Carnaval e o reles dia a dia no país das bananas (CENA 12)

02/03/2020
― Nega, onde já se viu começar a história pelo fim, que coisa mais destrambelhada!
      ― É que a gente aqui sentada, Zildinha, nessa idade, assistindo aos desfiles das escolas, no quentinho do lar, sem enfrentar a confusão que existe para todo lado nessa época, é pra lá de confortável. Olha, a Mangueira vai desfilar, quietinha. Depois continuo.

Senhor tenha piedade
Olhai para a terra
Veja quanta maldade
...
Eu sou da Estação primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no buraco quente
Meu nome é Jesus da Gente
...
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
...
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque, de novo, cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais na escuridão
...
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão
...
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também
...”
           
― Viu, Zildinha, A Verdade nos fará livre, a Mangueira tá muito atual. Engraçado, mudo de canal, da Globo para o SBT, para a BAND, Record e os outros, e as análises estão chinfrins, sem festa e nem crítica coerente. Tanta cautela hoje em dia, há dez anos atrás não se via tanta conversa mole desses locutores na maior festa brasileira. ― A mulher maltratava o controle remoto mudando de canal, indo às diversas emissoras. ― Oh, estão mostrando a Vigário Geral, de Sampa:
“...
Tupiniquins, Tupinambás e Potiguaras
Tamoios, Caetés e Tapajaras
É Banto, é Congo, é de Angola
Somos da tribo quilombola
...
Que segue aguerrida
Mas sempre esquecida
Por quem tem poder
...
Homem de terno pregando mentira
Desperta a ira em nome da fé
...
Vigário teu protesto é Carnaval.”

            ― Veja agora, a Águia de Ouro, que trouxe o enredo O Poder do Saber – Se saber é poder... quem sabe faz a hora, não espera acontecer – Homenagem ao educador Paulo Freire, merecidamente:

Águia em suas asas vou voar
E no caminho da sabedoria
Páginas da história desvendar
...
O tempo é meu senhor
Na busca da evolução
...
Em cada traço que rabisco no papel
Vou desenhando o meu destino
No horizonte vejo um novo alvorecer
Ao mestre meu respeito e carinho
...
Seu manto reluz o poder do saber.”

            ― Quem? ― perguntou Zildinha. ― Conheço ele?
          ― Mulher, lembra quando você foi alfabetizada pelo método dele? Você aprendia rápido e era respeitada como cidadã. Agora, estão aí a dizer que empregada tá ganhando muito e não pode, que não pode viajar de avião, que aeroporto não é lugar de pobre, tem ouvido isso não, Zildinha?
            ― Ah, aquele ministro moreno, barrigudinho e calvo que falou que eu viajo pra Disneylândia e qu’eu tava na farra?
           ― O Guedes, Zildinha, da economia. Mas olha lá o desfile, depois a gente conversa mais.
           ― Nega, você paga direitinho e respeita eu, mas tem muita patroa que explora nós, viu. Tem prédio que a gente só entra pelo elevador de serviço, como se a gente fosse diferente. Tudo igualzinho, pó de terra que não vale nada daqui a pouco, oh! Meu Cristo!
          ― Mulher, assiste ao desfile. Empregada doméstica vive viajando pra fora do Brasil, quem falou não fui eu não, hein. Vou rapidinho na cozinha pegar o lanche que fiz pra gente. Presta atenção na TV.
            Nega voltou com duas bandejas. Ajeitou sanduíche e suco leve para as duas e perguntou se perdeu alguma coisa. E passaram o tempo maravilhadas com o espetáculo das fantasias, dos passos das porta-estandartes e dos mestres-salas, carros alegóricos, tanta gente exalando alegria, paixão, amor pela escola do coração. Veio o intervalo e Zildinha começou:
            ― Tô curiosa com a história, Nega, conta logo!
           ― Olha que não sou de ficar falando de política, não. Você me conhece, Zildinha, mas que é uma vergonha esse governo que o povo colocou, nossa mãe. Avisei pra todos amigos possíveis, você é testemunha, mostrei que há trinta anos ele vive praguejando bobagens e preconceitos. Esse povo é alienado, fanático, não gosta de ler, tem preguiça de se informar, e até pessoas de nível superior sem conhecimento algum de História, não é só o povão, não, acreditam em qualquer fake news que pinta na praça, igual essas que o governo anda postando em pleno Carnaval.
         ― Recebi de uma prima uma fake que mostra que os militares apoiam ele em tudo. Será verdade, Nega?
        ― Zildinha, não acredite nessas postagens de whatsapp, são vergonhosas. Tenho um tio militar e vou perguntar isso pra ele, ele é conservador, mas é pessoa ética e responsável, não acredite em tudo que vê. Veja o exemplo da Águia de Ouro, vai ler, vai estudar História. Nada de destruir e fazer descaso de livros como anda acontecendo até no palácio. Fica escutando essas mentes curtas não, Zildinha.
           ― Mas que tem muito pastor mal intencionado, ah, isso tem.
       ― Tem maus em todo lugar, e bons em muito mais lugares. Ouça o coração, ouça sua capacidade de saber o que vale. E o que vale é a vida. Olha, voltou o desfile, nem um pio, viu madame! A minha história vou contando nos intervalos. Tenha calma.
    Nega sentiu-se transportada para o meio das alas.
            Com toda energia da mocidade, ela na avenida, sambando, brincando, gastando a juventude em meio à festa. E beijava, e abraçava, completamente livre de estereótipos e da moral burguesa. A fantasia mostrando grande parte do corpo, esbanjando alegria e despreocupação. As marchinhas e as alegorias de colombinas, de pierrôs, da turma dos blocos, o Carnaval a pleno vapor:

“... Eu quero é botar meu bloco na rua
Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua
Gingar, pra dar e vender ...”

“... Eu vou pra Maracangalha, eu vou
... Se Amália não quiser ir, eu vou só,
eu vou só, sem Amália, mas eu vou ...”

“... Ta-Hi, eu fiz tudo para você gostar de mim,
Oh meu bem não faz assim comigo não,
você tem, você tem que me dar seu coração ...”

“... Eu dei, o que foi que você deu, meu bem?
...Não digo e adivinhe se é capaz ...
Você deu seu coração?
Não dei, não dei
O meu coração não tem dono,
Vive sozinho, coitadinho, no abandono ...
Eu dei ... Diga logo, diga logo, é demais
Não digo, e adivinha se é capaz ...
Guarde um pouco para mim também ...
Eu dei...”

“... Você pensa que cachaça é água
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão ...
Pode me faltar o amor
Só não quero que me falte
A danada da cachaça...”

“Ei, você aí, me dá um dinheiro aí
... Não vai dar? Não vai dar não?
Você vai ver a grande confusão
Que vou fazer, bebendo até cair,
... Me dá, me dá, me dá, oi,
Me dá um dinheiro aí...

          ― Nega! Nega! Acorda, o desfile acabou, já tá tarde. Viu que beleza o desfile da Imperatriz? Não vi quando pegou no sono e acabou que não me contou a história de seus primeiros carnavais.
          ― Sambei, paquerei tanto em tantos carnavais, que as dores dos setenta de hoje nem me incomodam. Eu soube aproveitar, agora é a vez das jovens. Ui, devo ter ficado de mau jeito no sofá. Vamos dormir que amanhã a gente vê mais. E te conto em detalhe sobre os carnavais que dancei sem parar.