02/03/2020
―
Nega, onde já se viu começar a história pelo fim, que coisa mais destrambelhada!
― É que a gente aqui sentada,
Zildinha, nessa idade, assistindo aos desfiles das escolas, no quentinho do
lar, sem enfrentar a confusão que existe para todo lado nessa época, é pra lá
de confortável. Olha, a Mangueira vai desfilar, quietinha. Depois continuo.
“Senhor tenha piedade
Olhai para a terra
Veja quanta maldade
...
Eu sou da Estação primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no buraco quente
Meu nome é Jesus da Gente
...
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
...
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque, de novo, cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais na escuridão
...
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão
...
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também
...”
―
Viu, Zildinha, A Verdade nos fará livre, a Mangueira tá muito atual. Engraçado,
mudo de canal, da Globo para o SBT, para a BAND, Record e os outros, e as
análises estão chinfrins, sem festa e nem crítica coerente. Tanta cautela hoje
em dia, há dez anos atrás não se via tanta conversa mole desses locutores na
maior festa brasileira. ― A mulher maltratava o controle remoto mudando de
canal, indo às diversas emissoras. ― Oh, estão mostrando a Vigário Geral, de
Sampa:
“...
Tupiniquins,
Tupinambás e Potiguaras
Tamoios, Caetés
e Tapajaras
É Banto, é
Congo, é de Angola
Somos da tribo
quilombola
...
Que segue
aguerrida
Mas sempre
esquecida
Por quem tem
poder
...
Homem de terno
pregando mentira
Desperta a ira
em nome da fé
...
Vigário teu
protesto é Carnaval.”
― Veja agora, a Águia de Ouro, que
trouxe o enredo O Poder do Saber – Se saber é poder... quem sabe faz a hora,
não espera acontecer – Homenagem ao educador Paulo Freire, merecidamente:
“Águia em suas
asas vou voar
E no caminho da
sabedoria
Páginas da
história desvendar
...
O tempo é meu
senhor
Na busca da
evolução
...
Em cada traço
que rabisco no papel
Vou desenhando o
meu destino
No horizonte
vejo um novo alvorecer
Ao mestre meu
respeito e carinho
...
Seu manto reluz
o poder do saber.”
― Quem? ― perguntou Zildinha. ―
Conheço ele?
― Mulher, lembra quando você foi
alfabetizada pelo método dele? Você aprendia rápido e era respeitada como
cidadã. Agora, estão aí a dizer que empregada tá ganhando muito e não pode, que
não pode viajar de avião, que aeroporto não é lugar de pobre, tem ouvido isso
não, Zildinha?
― Ah, aquele ministro moreno, barrigudinho
e calvo que falou que eu viajo pra Disneylândia e qu’eu tava na farra?
― O Guedes, Zildinha, da economia.
Mas olha lá o desfile, depois a gente conversa mais.
― Nega, você paga direitinho e
respeita eu, mas tem muita patroa que explora nós, viu. Tem prédio que a gente
só entra pelo elevador de serviço, como se a gente fosse diferente. Tudo
igualzinho, pó de terra que não vale nada daqui a pouco, oh! Meu Cristo!
― Mulher, assiste ao desfile. Empregada
doméstica vive viajando pra fora do Brasil, quem falou não fui eu não, hein.
Vou rapidinho na cozinha pegar o lanche que fiz pra gente. Presta atenção na
TV.
Nega voltou com duas bandejas. Ajeitou
sanduíche e suco leve para as duas e perguntou se perdeu alguma coisa. E
passaram o tempo maravilhadas com o espetáculo das fantasias, dos passos das
porta-estandartes e dos mestres-salas, carros alegóricos, tanta gente exalando
alegria, paixão, amor pela escola do coração. Veio o intervalo e Zildinha
começou:
― Tô curiosa com a história, Nega,
conta logo!
― Olha que não sou de ficar falando de
política, não. Você me conhece, Zildinha, mas que é uma vergonha esse governo
que o povo colocou, nossa mãe. Avisei pra todos amigos possíveis, você é
testemunha, mostrei que há trinta anos ele vive praguejando bobagens e
preconceitos. Esse povo é alienado, fanático, não gosta de ler, tem preguiça de
se informar, e até pessoas de nível superior sem conhecimento algum de
História, não é só o povão, não, acreditam em qualquer fake news que pinta na praça, igual essas que o governo anda
postando em pleno Carnaval.
― Recebi de uma prima uma fake que mostra que os militares apoiam
ele em tudo. Será verdade, Nega?
― Zildinha, não acredite nessas
postagens de whatsapp, são vergonhosas. Tenho um tio militar e vou perguntar isso
pra ele, ele é conservador, mas é pessoa ética e responsável, não acredite em tudo que
vê. Veja o exemplo da Águia de Ouro, vai ler, vai estudar História. Nada de
destruir e fazer descaso de livros como anda acontecendo até no palácio. Fica
escutando essas mentes curtas não, Zildinha.
― Mas que tem muito pastor mal
intencionado, ah, isso tem.
― Tem maus em todo lugar, e bons em
muito mais lugares. Ouça o coração, ouça sua capacidade de saber o que vale. E
o que vale é a vida. Olha, voltou o desfile, nem um pio, viu madame! A minha
história vou contando nos intervalos. Tenha calma.
Nega
sentiu-se transportada para o meio das alas.
Com toda energia da mocidade, ela na
avenida, sambando, brincando, gastando a juventude em meio à festa. E beijava,
e abraçava, completamente livre de estereótipos e da moral burguesa. A fantasia
mostrando grande parte do corpo, esbanjando alegria e despreocupação. As
marchinhas e as alegorias de colombinas, de pierrôs, da turma dos blocos, o
Carnaval a pleno vapor:
“... Eu quero é botar meu bloco na rua
Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua
Gingar, pra dar e vender ...”
“... Eu vou pra Maracangalha, eu vou
... Se Amália não quiser ir, eu vou só,
eu vou só, sem Amália, mas eu vou ...”
“... Ta-Hi, eu fiz tudo para você gostar de mim,
Oh meu bem não faz assim comigo não,
você tem, você tem que me dar seu coração ...”
“... Eu dei, o que foi que você deu, meu bem?
...Não digo e adivinhe se é capaz ...
Você deu seu coração?
Não dei, não dei
O meu coração não tem dono,
Vive sozinho, coitadinho, no abandono ...
Eu dei ... Diga logo, diga logo, é demais
Não digo, e adivinha se é capaz ...
Guarde um pouco para mim também ...
Eu dei...”
“... Você pensa que cachaça é água
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão ...
Pode me faltar o amor
Só não quero que me falte
A danada da cachaça...”
“Ei, você aí, me dá um dinheiro aí
... Não vai dar? Não vai dar não?
Você vai ver a grande confusão
Que vou fazer, bebendo até cair,
... Me dá, me dá, me dá, oi,
Me dá um dinheiro aí...”
― Nega! Nega! Acorda, o desfile
acabou, já tá tarde. Viu que beleza o desfile da Imperatriz? Não vi quando pegou no sono e
acabou que não me contou a história de seus primeiros carnavais.
― Sambei, paquerei tanto em tantos
carnavais, que as dores dos setenta de hoje nem me incomodam. Eu soube
aproveitar, agora é a vez das jovens. Ui, devo ter ficado de mau jeito no
sofá. Vamos dormir que amanhã a gente vê mais. E te conto em detalhe sobre os
carnavais que dancei sem parar.