quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

POVOADO EM ALEGRIA (CENA 10)


27/12/2019
            Enquanto isso no povoado a festa da comunidade ainda em organização. Juvenal cedeu as mesas e cadeiras da associação e no espaço local, os ritmos já bordavam todos os gêneros. A música acalentava os que se dispunham a trabalhar. A preparação era a parte gostosa, as pessoas trançando de um lado para outro, entre os cochichos, mulheres e homens faziam perfumar o ambiente da cozinha para que tudo estivesse pronto às dezenove em ponto. A grelha, para o churrasco dos peixes, legumes do próprio quintal, ..., já começava em brasa.
            A criançada e os mais jovens se permitiam brincar na praia, descompromissados nesse viver presente em que obrigações pertencem aos adultos. No povoado, lugar de criança era na escola e quando fora dela, brincava na liberdade do local simples, com brinquedos feitos por eles, de madeira, de barro, bambu, areia ... Chegado o tempo de férias, a farra se tornava exultante e algumas mães ficaram responsáveis do cuidado das crianças das que preparavam a festa.
            ― Aquela menininha sentada na areia está tão quietinha, como se estivesse em outro mundo, ― disse uma das mulheres apontando.
            ― Coitadinha, teve uma experiência de dor, e tão criança ainda. Foi abusada por um primo dez anos mais velho. Ele aproveitou que ela estava sozinha na cozinha e passou a mão em suas partes íntimas. Por sorte ouviu um barulho e fugiu. Ela tinha apenas oito aninhos, hoje tem dez. ― Falou a outra.
              ― O próprio parente, que maldade.
        Nisso, algumas crianças chegaram com brincadeiras e carinho, conseguindo que a menina saísse dos pesadelos, segurando-a pelas mãos, de um lado uma menina, de outro um menininho com quem sempre brincava e juntos o sorriso se abriu. Correram os três para o mar, furando as ondas de verão. As mulheres de longe, o coração aliviado pela graça que pertencia à infância.
          ― Quem dera adultos tivessem o exemplo dos puros. Quando isso aconteceu o que fizeram?
             ― Abafaram ao invés de chamar o garoto ao comprometimento do erro, assumir a consequência do ato. Não se pode tolerar algo assim, mas na maioria das vezes é dentro de casa que acontecem coisas tristes. Cabe aos parentes conduzir a situação. Os dois são vítimas desse sistema distorcido em que vivemos. O ideal seria ele reconhecer o erro e pedir perdão. O rapaz tem os dois lados, o mau e o bom, como todos nós. E se apenas a punição existir, vai ferir outra mais a frente, vai querer vingança, vai agir pior no futuro. A sociedade e os pais vem falhando demais na educação de jovens e crianças. Os pais não conversam, não colocam limites. A sociedade não exige boa educação. Aprendi muito no conselho tutelar. A gente não enxerga a complexidade, preferindo a ocultação. Segredo não traz mudança de atitude, mas sim o enfrentamento. Tenho conversado com a mãe da menina, orientando. Não dá para forçar algo difícil de ser elaborado pela família. Pelo menos ela avisou ao rapaz que ele não é mais bem-vindo, tornou-se parente longínquo e deixou claro que qualquer tentativa dele molestar outras crianças o denunciaria.
            ― Olha lá, se juntaram a outras crianças, bom mesmo é essa farra.
            ― Eles dão a mão facilmente, o rancor não está acumulado. Pois comigo ele anda quase que de mão dada. É triste dizer isso, mas é a verdade. Tanta decepção... deixa para lá. Está quase na hora de ir. Colocar essa turma no banho vai ser fogo na roupa.
            ― Vou chamar todo mundo.
            As mesas organizadas. Bandeirolas alegravam o espaço em cores. O quitute pronto a ser servido. A churrasqueira de um vermelho intenso, começando a receber o pescado, as cebolas, batatas, queijo, pão com alho. Quem preferia bebida alcoólica trouxe a sua. As famílias ali, no primeiro momento, junto aos filhos e depois se dispersando para outras mesas, no papo de todas as idades e o arrasta-pé animado.
            Os pescadores dançavam, os que apreciavam a comida se permitiam à partilha, o dom da multiplicação. O encontro simples, aconchegante, entre risos, desejos e esperança em 2020. Nada de falação de político, não aceitaram a oferta de participação e cotização de interessados apenas em votos. Todos à festa, o momento era de descontração, pois o ano necessitou do coletivo atento na luta diária por dignidade.
          Bia auxiliava na partilha do alimento, enquanto Josué reunido aos amigos do trabalho escutava as aventuras contadas em exagero, lembrando ele o episódio que vivera recentemente, a tormenta ostentando ondas selvagens no breu infinito e invencível. 
          Bia levantou o olhar e reconheceu o rapaz que segurava o capacete, o moço que a assustou durante um passeio. Ele descontraído ao lado de uma moça. Seria a mesma por quem demonstrou raiva? Viu Eli com o marido e os filhos, Toninho num canto com Lurdinha e a mãe, as mulheres que a socorreram no fatídico dia. Suspirou aliviada. Estava ali. Estava bem. Tinha o que decidir, mas aquele momento, aquele momento, o brinde à vida era o importante. De vez em quando copos se elevavam brindando à união.