27/12/2019
Enquanto isso no povoado a festa da
comunidade ainda em organização. Juvenal cedeu as mesas e cadeiras da
associação e no espaço local, os ritmos já bordavam todos os gêneros. A música
acalentava os que se dispunham a trabalhar. A preparação era a parte gostosa,
as pessoas trançando de um lado para outro, entre os cochichos, mulheres e
homens faziam perfumar o ambiente da cozinha para que tudo estivesse pronto às
dezenove em ponto. A grelha, para o churrasco dos peixes, legumes do próprio
quintal, ..., já começava em brasa.
A criançada e os mais jovens se
permitiam brincar na praia, descompromissados nesse viver presente em que
obrigações pertencem aos adultos. No povoado, lugar de criança era na escola e
quando fora dela, brincava na liberdade do local simples, com brinquedos feitos
por eles, de madeira, de barro, bambu, areia ... Chegado o tempo de férias, a
farra se tornava exultante e algumas mães ficaram responsáveis do cuidado das
crianças das que preparavam a festa.
― Aquela menininha sentada na areia
está tão quietinha, como se estivesse em outro mundo, ― disse uma das mulheres
apontando.
― Coitadinha, teve uma experiência
de dor, e tão criança ainda. Foi abusada por um primo dez anos mais velho. Ele
aproveitou que ela estava sozinha na cozinha e passou a mão em suas partes
íntimas. Por sorte ouviu um barulho e fugiu. Ela tinha apenas oito aninhos,
hoje tem dez. ― Falou a outra.
― O próprio parente, que maldade.
Nisso, algumas crianças chegaram com
brincadeiras e carinho, conseguindo que a menina saísse dos pesadelos,
segurando-a pelas mãos, de um lado uma menina, de outro um menininho com quem
sempre brincava e juntos o sorriso se abriu. Correram os três para o mar,
furando as ondas de verão. As mulheres de longe, o coração aliviado pela graça
que pertencia à infância.
― Quem dera adultos tivessem o exemplo
dos puros. Quando isso aconteceu o que fizeram?
― Abafaram ao invés de chamar o
garoto ao comprometimento do erro, assumir a consequência do ato. Não se pode
tolerar algo assim, mas na maioria das vezes é dentro de casa que acontecem
coisas tristes. Cabe aos parentes conduzir a situação. Os dois são vítimas
desse sistema distorcido em que vivemos. O ideal seria ele reconhecer o erro e
pedir perdão. O rapaz tem os dois lados, o mau e o bom, como todos nós. E se
apenas a punição existir, vai ferir outra mais a frente, vai querer vingança,
vai agir pior no futuro. A sociedade e os pais vem falhando demais na educação
de jovens e crianças. Os pais não conversam, não colocam limites. A sociedade
não exige boa educação. Aprendi muito no conselho tutelar. A gente não enxerga
a complexidade, preferindo a ocultação. Segredo não traz mudança de atitude,
mas sim o enfrentamento. Tenho conversado com a mãe da menina, orientando. Não dá
para forçar algo difícil de ser elaborado pela família. Pelo menos ela avisou
ao rapaz que ele não é mais bem-vindo, tornou-se parente longínquo e deixou
claro que qualquer tentativa dele molestar outras crianças o denunciaria.
― Olha lá, se juntaram a outras crianças,
bom mesmo é essa farra.
― Eles dão a mão facilmente, o rancor
não está acumulado. Pois comigo ele anda quase que de mão dada. É triste dizer
isso, mas é a verdade. Tanta decepção... deixa para lá. Está quase na hora de
ir. Colocar essa turma no banho vai ser fogo na roupa.
― Vou chamar todo mundo.
As mesas organizadas. Bandeirolas
alegravam o espaço em cores. O quitute pronto a ser servido. A churrasqueira de
um vermelho intenso, começando a receber o pescado, as cebolas, batatas,
queijo, pão com alho. Quem preferia bebida alcoólica trouxe a sua. As famílias
ali, no primeiro momento, junto aos filhos e depois se dispersando para outras
mesas, no papo de todas as idades e o arrasta-pé animado.
Os pescadores dançavam, os que
apreciavam a comida se permitiam à partilha, o dom da multiplicação. O encontro
simples, aconchegante, entre risos, desejos e esperança em 2020. Nada de
falação de político, não aceitaram a oferta de participação e cotização de
interessados apenas em votos. Todos à festa, o momento era de descontração,
pois o ano necessitou do coletivo atento na luta diária por dignidade.
Bia auxiliava na partilha do
alimento, enquanto Josué reunido aos amigos do trabalho escutava as aventuras
contadas em exagero, lembrando ele o episódio que vivera recentemente, a
tormenta ostentando ondas selvagens no breu infinito e invencível.
Bia levantou o olhar e reconheceu o rapaz que segurava o capacete, o moço que a assustou durante um passeio. Ele descontraído ao lado de uma moça. Seria a mesma por quem demonstrou raiva? Viu Eli com o marido e os filhos, Toninho num canto com Lurdinha e a mãe, as mulheres que a socorreram no fatídico dia. Suspirou aliviada. Estava ali. Estava bem. Tinha o que decidir, mas aquele momento, aquele momento, o brinde à vida era o importante. De vez em quando copos se elevavam brindando à união.