domingo, 14 de outubro de 2018

ALMOÇO


ALMOÇO
26/09/2018
            Duas mulheres almoçam frente uma para outra. Ao redor, pessoas com bandeja à mão buscando mesa para saborear menu do dia.
            ― Ficou sabendo de Célia?
            ― Quem diria, contava uma vantagem sobre a nora.
            ― E o Sérgio? Ele apresentou a mulher, mas depois ela se afastou e foi para o outro lado.
            ― Ele não tem um filho para cuidar dele?
            ― Parece que moram separados, casas diferentes. Ele não comenta.
            ― Nessa hora de precisão não poder contar com filho.
            ― Te enviei um vídeo.
            A outra balança a cabeça confirmando.
            ― Chorei quando assisti. Fiquei impressionada. Espero que não aconteça comigo quando estiver mais velha. Tenho medo. Minha nora é gente boa, mas sabe-se lá, mulher pode virar a cabeça de um homem, e levá-lo para o ramo da família dela.
            A outra escutando e mastigando.
            ― Está fazendo dieta?
            ― Estou tentando diminuir, ver se emagreço, mas nada, diz, limpando a boca.
            ― Seu prato está light, não tem carboidrato. Salada e vegetais, como deve ser.
            ― E não emagreci uma grama. Não ligo para massa, não gosto de arroz, feijão, macarrão. Doces, nem sinto falta.
            ― Isso que engorda.
            ― O que me pega é fritura. Adoro pastel. Peixe frito. Está no tempo da sardinha, quero comprar.
            ― Amo pastel, tenho filés de peixe no congelador, precisando fazer.
            ― Vivo pedindo a Deus, fico pensando: quem vai cuidar de mim quando eu precisar.
            ― Nunca se sabe! Eu até hoje não tive problema com minha nora.
            ― Até pouco tempo eu pensava sem parar sobre isso e ficava preocupada, estava me atrapalhando viver. Decidi tirar da mente, o que tiver de ser vou saber na hora.
            ― Você conhece aquela? Faz gesto com o olhar.
            ― Conheço. É boa de conversa. Está no outro grupo.
            ― Problemática, fiquei sabendo.
            ― E a profissão dela?
            A amiga ia responder quando outra mulher se aproxima da mesa, cumprimentando-a. Levanta e iniciam conversa. A outra observando.
 Nesse momento levantei e fui entregar a bandeja. Eu estava sentada à mesma mesa que elas. Ao sair confirmei as horas pelo celular, vai dar tempo de ir andando ao consultório médico.
            No caminho um ipê reina no tapete amarelo da calçada.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

HOSPÍCIO


HOSPÍCIO
18/09/2018
A filha ficou cacarejando pelo whatsapp. A mãe tinha obrigação de cuidar de Monstrinha, não podia deixar o adestrador maluco colocar as mãos nela. A mãe enviando foto mostrando como emagreceu e voltou a vestir peças antigas e, a filha interessada apenas em notícia de Monstrinha. A mãe respondeu, se tranquilize, não dando importância ao caso.
O casal vivia com as três cachorras, ou seria cadelas? Monstrinha, mistura diferente, pitbull e labrador, porte ostensivo, pelo brilhoso, olhos amendoados, força medonha. Quarenta e cinco quilos distribuídos à semelhança apenas da raça pitbull. Lelepe, levada e arisca, pelo marrom acaju, a única a não dar trabalho com doença. E Pequetita, uma poodle mini de pelo branquinho, latido afiado de doer tímpanos dava sinal de algo estranho, acionando as companheiras. O latido da noite em três vozes, três tons. E marido e mulher gritando: Psiu! Quietas! Vão dormir! Elas comportavam bem se, não viam, não ouviam, latidos, grunhidos, miados ou conversa alheia. Ao cheiro e ruído de cães, gambás, gatos e gente, iniciava o alvoroço. Eram netinhas que exigiam cuidados.
Lelepe e Pequetita não eram problemas. Monstrinha fazia o casal rebolar. Tinha três anos e nunca posto as patas fora de casa. Quando veio para a família, o filho escolheu o filhote que se assemelhava a pitbull, os outros pareciam demais com labrador, eu não quis, comentou ele. A cachorrinha veio fraca, com problemas de pele que a impediram de conhecer a rua. Quando se deram conta, aquele monstrengo de cachorro, que apesar de dócil com os velhos e as companheiras, se impunha na liderança com rosnados assustadores.
Assim, a mulher colocou-a para adestramento. Foram dez aulas de socialização, como disse o professor. E aprendeu comandos, senta, deita, fica, junto. Beleza. A família instruída a continuar rotina de exercícios.
O marido não se animou com a tarefa. A mulher, atrevida, pôs a coleira na cachorra e saiu. Fez os exercícios, senta, deita, fica, junto, deu voltas próximas de casa e tudo ocorreu às maravilhas. Monstrinha voltou satisfeita, abanando rabo.
À segunda saída, a mulher exercitou a cachorra próximo de casa por algum tempo e como se saiu bem, arriscou mais quarteirões. Quando iam caminhando no ritmo rápido, atravessou na frente da mulher esparramando-a pelo chão. Continuou destemida, um tombinho de nada. Senta, deita, fica, junto e acelerou. Em um quarteirão, casas com cachorro e até mais de um. Latidos. O adestrador ensinou, se ver cachorro, dê meia volta para o animal se distrair. A mulher tentou obedecer as instruções e os latidos se intensificando. Monstrinha agitada, querendo voar nos bichos. Escolheu seguir em frente, talvez no trecho adiante não tivesse animais. Na última casa da esquina, dois cachorrões. Latidos sem pausa. Firme na coleira. Antes de sair de casa, chegou a pensar, será que coloquei a coleira direito?
Num movimento brusco atiçado pelo barulho dos cães, Monstrinha avançou. A mulher, miúda e ágil, mas o solavanco que experimentou, jogou-a de bunda no chão, chegando a ficar deitada e a cachorra a rodopiando por duas vezes. A mulher segurando firme a coleira, e no instante que latidos acalmaram, conseguiu se reerguer. Neste exato momento, a coleira se solta. A mulher dotada de força desconhecida, repõe o equipamento e tenta sair dali o mais urgente possível. Empacada. Latidos ferozes. Monstrinha tomada pelo desejo de ataque. A mulher segurando rente à coleira, de forma a não escapar cão de raça tão temida.
Finalmente fora da zona de conflito. A mulher trêmula e descompensada. No passeio em frente de casa, Monstrinha estacou, nenhum comando a tirou da posição. A mulher segurou-a levantando as patas dianteiras e levando-a como criancinha. O marido envolvido no conserto do armário. Contou a aventura. Esqueceu. O corpo não, coluna estropiada.
A mulher caiu na real. Um adestrador passeava de bicicleta com cães, se interessou. Agendaram passeios três vezes por semana. Pôs o moço a par do comportamento da cachorra. No primeiro passeio, retornou em quinze minutos. O domador não esperava tanto. Ela desestruturou a rotina e outros cães.
No segundo passeio, o moço deve ter exigido além das forças de Monstrinha, forma de ficar claro quem está no comando. Retornou do passeio e foi deixando marcas de sangue no chão. A poucos passos caiu desorientada. Expulsou baba, ar parecia faltar. O uso de focinheira lhe dificultou respiração.
O marido deu com a língua nos dentes e os filhos infernizaram a mulher.
Os filhos saíram de casa e não levaram os animais.

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

CASAMENTO X POLÍTICA (gem)


CASAMENTO X POLÍTICA (gem)
03/10/2018
           Eu quero lhe falar o que vem acontecendo aqui em casa nestes últimos tempos, às portas das eleições e, nada melhor que a velha carta.
Lembra quando você falou que seria legal ter foto da turma com os dizeres “Ele não”?  E caçoei, é bom pedir autorização a cada um, vai que...
            Creio que o feitiço virou para meu lado.
João, de tempos para cá fala o que tem vontade, não guarda mais nada dentro de si, e a um comentário foi logo dizendo, não vejo problema a pessoa se manifestar. Perguntei se era impressão minha ou ele estava a favor de Bolsonaro. Desconversou. Eu disse, se votar nele o casamento acabou. Escutou (será?).
No sábado da grande passeata das “MULHERES CONTRA BOLSONARO” fui contribuir com voz feminista contra qualquer tipo de opressão e retirada de direitos. Lá estava a formiguinha na multidão, “Ele não”, “Nenhum direito a menos”, “Ele nunca”. Durante mais de três horas, mulheres, homens, crianças, bebês e seus pais, avós etc infernizando o apático tom da cidade, caminhando avenidas e ruas estratégicas do centro. Não se via início e fim da massa humana.
Quando chegamos na área hospitalar, o comando de “psiu” em efeito dominó foi se alastrando continuamente. Silêncio. Sentimento de humanidade, solidariedade, respeito, convivência, contribuição, simbolismo e a certeza de estar num lugar melhor. Emoção se propagando. 
Em seguida, ouvi o comentário “o cheiro da burguesia fede”. A juventude no jargão revolucionário, e já voltando ao mantra Ele não.
A imagem surpreendia, pessoas filmando, fazendo selfies para jogar na rede social. Estranhei jornais televisivos não veicularem notícias. A televisão é mídia ultrapassada não é mesmo? A rede deu cobertura ao protagonismo das mulheres.
À noite não é que descubro João compartilhando notícias de Bolsonaro. Foi o estopim: “Avista-se o grito da arara”.
João, que isso no celular? 
Ele desconcertado disse: Você está bisbilhotando?
Foi sem querer, mas li a mensagem.
Ficamos soltando rusgas. Não consegui ficar quieta. Eu ia da sala à cozinha, ansiosa. 
E você, compartilhando as do PT, ele revidou.
Voltei à sala. Quem disse? Entra lá e veja. Gosto de discutir política e não ficar replicando figurinha.
Voltei à cozinha.
Lembrei de dizer mais e voltei voando.
Que vergonha dos amigos vendo essas postagens.
(cozinha) Escutei ele dizer, nem ligo. 
         (sala) Com raiva, mandei João embora de casa.
(cozinha) Ouvi João, sai você!
Minutos depois, uma amiga pelo whats sobre Bolsonaro. Escrevi, você é apenas amiga e pouco importa em quem você vota. Triste é descobrir o marido compartilhando. “Eita”, foi a resposta. 
O desabafo não bastou, queixei a outra amiga, e ela, pena João ter essa atitude, faz greve de sexo. Eu mal aguentava olhar e conversar com ele.
No outro dia ele postou no Face nova figurinha. No whats respondi. Ficamos trocando fagulhas.
Considero ótimo João falar o que pensa. Mas as palavras que gostaria de ouvir de João não as ouço. A dor é perceber que somos como os nossos pais. E o país mais parecido com o de 1964. Tenho estratégias de luta, vou reverter a situação. Ele não.
Eu quero lhe contar tudo em detalhes pessoalmente.
         Abraço!