sábado, 25 de novembro de 2017

O “NÓ” DA RELAÇÃO

O “NÓ” DA RELAÇÃO
20/06/2017
   Amavam-se de paixão, dessa que não fica velha, mesmo convivendo muitos anos. Acontece de revelar o segredo:

― Fulano quis ir para cama comigo.
― Quando foi isso?
― Faz tempo.
― Por quê me contou?
― Você me provocou.
― Não entendi?
― Ficou jogando indireta de casos antigos.

     A partir de então:

   Ele “Se recebeu cantada é porque seduziu e colaborou a tal situação. Mulheres são todas iguais. Aposto que gostou e ainda tem coisa em mente. Vou descobrir detalhes. Não fica assim.”

   Ela “Quer dizer que ele tem casos antigos. Acha que só ele tem admiradoras? Quer guerra, terá guerra. Eu me dedico, e é o que recebo.”

   A paixão esmaeceu. A convivência árida. O amor esquecido. Não mais se escuta palavra adocicada. Sem risos e contato pele a pele e mormente, boca amarga e fel no estômago e coração.
   
   Nenhum dos dois dispostos a largar o casamento, mesmo ilusão morta. Guerrilha tenebrosa construída em mentes férteis. Alfinetadas diárias, instável humor, monotonia. Tempo passando.

    A vida antes “nós”, transforma-se em “nó”. 

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

IRONIA DUZENTOS ANOS DEPOIS

IRONIA DUZENTOS ANOS DEPOIS


25/09/2017

     Quem diria há duzentos e oito anos Brasil teria principado português com mudança da corte para cá.

     Acontece que Portugal, entre os países europeus, era o mais atrasado quanto às ideias e reformas políticas, mesmo tendo sido um dos descobridores de mares e terras. Pouca organização e muito imediatismo vêm como herança com a vinda de D. João e sua corte, em mais de 10 navios abarrotados de portugueses, e cada navio, em torno de mil pessoas sem conforto e segurança. Não fosse a mãozinha interesseira da Inglaterra, que protegeu a viagem do rei, talvez a empreitada estaria ameaçada.

     Sem planejamento, D. João resolve aportar em Salvador, fugindo ao definido em terra. Tinha lá as suas razões, além de Salvador ser uma das mais lindas cidades, os baianos estavam revoltosos da capital ser Rio de Janeiro (com 60.000 habitantes), perdendo prestígio e dinheiro que jorravam no comércio de mercadorias com países amigos da onça. A estratégia deu certo, o rei conseguiu aportar para seu lado os manda-chuvas da Bahia, ganhou apoio para governar. A população de Salvador era de 46.000 habitantes.

     Descobrimos: tínhamos um príncipe indeciso e medroso, a princesa espanhola, Carlota Joaquina, de gênio forte e mandona, a mãe do regente, maluca que só ela, e mais as confusões que reinavam nas orlas do poder, era cada um buscando amealhar apenas ao seu interesse e de sua prole.

     A corte era esperada na primavera. A maioria tinha ouvido sobre o país tropical, que com sua riqueza originária, sustentava Portugal, e além disso, também exercia curiosidade, a dita beleza da flora, fauna, lugares. Ainda não havia tecnologia e os navios demoraram quase 60 dias. Aportaram no verão de janeiro de 1808.

     D. João estupefato não acreditou que esqueceram de recebê-lo com festa, pétalas de flores, salvas de palma próprias do povo. O perfume das flores de diversas espécies embelezavam os jardins, mas que bagunça a convivência, era mesmo de assustar. Despacharam para cá, nos trezentos anos de colônia, muitos portugueses acostumados ao cambalacho e também estes jorraram no nosso sangue a característica que perdura: o jeitinho brasileiro de levar vantagem em toda e qualquer área.

     Hoje, 25 de setembro de 2017. Duzentos e oito anos depois. As cores que embalam o Brasil, não são as da primaveril época. As cores em vermelho representam o sangrante Brasil de ainda hoje, com artimanhas de causar estrago no caminhar dos séculos.

    O Brasil tem jeito, gente?



(Consulta: 1808, Laurentino Gomes)

sábado, 11 de novembro de 2017

AURA DE INDEPENDÊNCIA

AURA DE INDEPENDÊNCIA
11/09/2017
      De onde estava meneava cabeça, olhava com atenção a festança que se fazia ao redor da Praça da Matriz. Eram tantas gentes, negros abanando damas vestidas em bonitos brocados ingleses, homens de negócios reunidos em discussão sobre novos ares da Pátria, capitães e comandantes aproveitando para conversar sobre a ordem do dia após batalha, vendedores de quitutes africanos, nas barracas armadas para a festa, gesticulando e apontando qual o interessado desejava comprar, moleques, muitos do seu grupo, admoestando os passantes, outros observavam o Barão, que lá vinha com a pança introjetada a frente, espaçoso que só ele, achando-se maioral, distribuindo moedas aos pobres e mendigos, forma de angariar, mais e mais vantagens de bonança, respeito e servidão.

    A festa confirmando que o Brasil era dos brasileiros. Bandeirolas, nos diversos matizes, sacolejando os ares, fechando quarteirão, faziam conjunto com as sombrinhas coloridas das madames e chapéus pretos dos homens, somente  as cores eram pardas nas vestes dos negros, camisas e calças largas em algodão cru, a maioria descalço ou com empobrecidas sandálias poeirentas.

      Continuou observar para onde caminhava o Barão. Passou a mão no corpo magro, vestida em floral, com ombros e braços descobertos e joelhos a mostra. Ela se modificava a mulher. Ajeitou-se provocativamente. Correu os dedos no cabelo sarará e ficou bem à frente do homem.

      — Sai do caminho moleca, que queres tu, sai?

      — Senhor Barão está procurando mucama?

      — Não tens dono? Olhar arisco para coxas e bunda quando ela revira o corpo.

    — Não, sou filha de escrava forra. Livre, Barão. Faço serviços caseiros, acompanhante e cuido de crianças, se houver.

      Ele lambeu beiços, acostumado estava às orgias entre as negras de sua senzala. Aquela ali, cor parda, abrasileirada. Seios saltavam mostrando beleza em pêssego e se emoldurava no meio da praça.

     — Vem na minha caleça. Lá no engenho arrumo bom serviço para tu na cozinha. Caminhas, sobe!

    — Sim, Senhor Barão, sim! Mostrando-se dócil aos aceites do grotesco homem que lhe enojava nos gestos, nas vestes, no tagarelar. Subiu ligeira e consertou-se no assento ao lado do homem.

     Seguiram viagem. Negros à frente da caleça. Ele aproveitando mão livre, após guardado lenço que lhe secou suor do rosto, caminhou-a vagarosamente sobre o banco até chegar ao colo da moça, introduzindo-a entre coxas, bem devagar. Ela não se mexeu. Era moça donzela.

     Barão faiscava brilho, luminosidade, imaginava chegada à fazenda com o fruto de tentação juvenil. Mão bandeava pela escuridão. A calça lhe apertando. Ardia de felicidade, além dos prestígios na corte, gozar da libertinagem que lhe aprouvesse.

     Uns vinte minutos da chegada, ela reconhecendo o lugar, disse, necessitava receber antes, em moedas de ouro, para o trabalho destinado. Valor adiantado, pois estava ao dispor do Barão. Que fosse já. Ele considerou atrevimento da moça, mas excitado, passou a mão ao bolso e escorreram dois a três saquinhos de moedas nas mãozinhas ansiosas.

   Então, em pulo ágil saltou da caleça e fugiu nos prados do Recôncavo, saltitante, balançando o dinheiro ao alto.

     — Volte aqui com meu dinheiro, atrevida!

     Ela gritando, enquanto corria:

     — Viva a Independência! Viva o Brasil! Viva a liberdade!

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

MATILDA

MATILDA
29/08/2017
     Outono. Dama da Noite espalha fragrância.

     Matilda em frente à janela aberta, inspira o adocicado perfume que embriaga a noite solitária. Escuta longe a musiquinha do celular do marido. O som não vem coerente, vem entrecortado, solto, pensamentos se sobrepõem ao sonido, perfazendo caminho entre realidade e tormento. Que merda, porque ele não atende essa droga logo, repete a si mesma, no momento em que a sintonia inicial quebrou-se.

     Lentamente, é como imagina o marido atendendo ao chamado, no andar acima. O jeito insosso do marido, de quem esperava tanto. Quem ele pensa que é? Quem pensa estar enganando com o joguinho idiota? Sou alguma trouxa, me diga, sou? Se perguntava, mente perturbante em descontrole. O plano segue, diz entre dentes.

    Eleva o olhar para o andar de cima. Respira dor. Por instante fogem-lhe pensamentos. Agita o corpo, sente um estremecimento, frio, desconforto, esse perfume enjoativo, ai, vontade de vomitar, agarra a garganta tentando conter a ânsia. Calor descomunal ganha corpo. Ruído das folhas de coqueiro arranhando o vidro. O vento atira frescor. Retoma ideias. Nada pode escapar, é seguir o planejado. Refaz cálculo mental, minuciosamente, cada trajeto, conta minutos, cada detalhe. A hora chegou. Fecha a janela devagarinho, como se fechasse a cortina de um ato teatral.

     Manhã.

      Arruma-se maquinalmente. O compromisso exige roupas sóbrias e confortáveis. Sapato salto médio, rosto com leve maquiagem. Observa-se ao espelho, o rosto cadavérico lhe assomou o semblante. Faz alimentação rápida e sai. Não usa o próprio carro. Nem pretende a facilidade do UBER. Sai à rua e sinaliza a certa distância de casa para o táxi. Calmamente pronuncia o endereço, sem especificar o local exato. Aqui está ótimo. Paga corrida. Desce e sente leve tremor no corpo, ao mesmo tempo, um prazer lhe toma o espírito. Decidida. Caminha alguns quarteirões, até número 369. Continua a caminhar, entra no supermercado.

     Onze horas.

     Compras feitas e postas no armário da loja.

     Meio dia.

     Toca interfone do apartamento 203. A voz pergunta quem é. Ela diz ter encomenda para o local. Prédio simples, portão principal é destravado. Sabe da inexistência de câmera nos arredores. Prefere escadaria. Ainda é tempo de desistir Matilda, voz soando ao ouvido. O plano segue exatamente o traçado, não ouça a voz da desistência, diz o outro lado. Continua a subir decidida.

     Quando a mulher atende ao toque da campainha, vai entrando e o tiro direto ao coração. Fecha a porta. Joga arma em cima do corpo. 

     Uma hora.
     
     O marido entra no apartamento da amante e encontra o corpo sem vida. Não toca a arma. A polícia aparece. O homem é retirado do local como suspeito do crime.

     Matilda chega em casa. Retira pacientemente as compras e coloca na despensa, o velho armário. Ao enfiar a mão no bolso da calça encontra as luvas que usou ao atirar com revólver do marido.

     Volta à janela. Tarde clara. Dama da Noite não transpira. Ainda não!