quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

soltando os cachorros (CENA 44)

 


23/02/2021

 

‘A cachorrinha pegou a latir,

nesse ofício que quase todo cão tem,

de ser presumido valente.

Com licença de João Guimarães Rosa’ e

Adélia Prado

 

― O que vem nos revelando esse começo de 2021, Bia, dá pra enlouquecer. Caminhamos pra duzentos e cinquenta mil mortes pelo corona num contínuo descaso desse governo às nossas vidas. Vinte de fevereiro e ouço só notícia ruim, e corro daqui dacolá do povoado para ajudar as famílias. Além de Manaus sem respirar, aumento de casos em tantos outros lugares também. E aparecem as variantes do corona. E as dúvidas das vacinas não dar conta da mudança do vírus. Tanta fake ainda, a cloroquina ainda, a ivermectina ainda, a teimosia em não usar máscara, a ... Precisamos de basta.

― Basta, isso mesmo Ruza, basta, está difícil viver esse clima, estamos esgotadas mas esse esgotamento não é de cansaço, é de ver a inércia desse governo e legislativo que não dão conta de evitar os desastres da pandemia, que até hoje não definiram o auxílio emergencial e querem aprovar a merreca de 250 reais, um abuso, com tanta gente em dificuldade e sem opção.  Agora pra despistar, somente falam do tal deputado preso por vociferar contra instituições. Enquanto isso as pessoas morrem, não têm vacinas, o governo não têm planos, estamos ao Deus dará. Queremos clareza sobre vacinação, quantidade de vacina para todos brasileiros. Não é esse miúdo que reverberam nas notícias que nem dá pra vacinar muita gente. Precisamos aprumar.

― Exigimos elegância, respeito e consideração para com o povo. O povo não é tratado assim. Aqueles que vendem nossas riquezas são tratados com elegância, respeito e consideração. É absurdo. Aquela cantora diz ‘é muito difícil lidar com esse culto de morte dessa época que vivemos’. Está certa. Caos e nada além de caos. Em nossa cidade os leitos entraram em saturação, estão lotados. Quanta incompetência, cadê a ótima logística que alardeiam pelo país?

― Desde quando começou o ano não temos um pingo de paz, somente desastre e desatino nesse país largado e sem ninguém para pegar o leme, credo viu, ando de cuca quente, procuro ajudar, e nem assim descubro saída. O natal e ano novo passamos escondidos dentro de casa e agora está mais terrível que antes, sem as pessoas serem socorridas tanto na saúde quanto no dinheiro para o mínimo digno a cada um. Onde esses ‘gestores’ andam com a cabeça? nas nuvens?

― Não tivemos natal, ano novo, não tivemos carnaval, e nem teremos semana santa. Será o ano inteiro nessa vagareza de decisões que vêm de cima? E ainda assim existe apoiadores. Não quero crer nessa insanidade, deve ser porque são mal informados, acreditam nas fakes, só pode.

― Bia, não tem jeito. Solte os cachorros. Eu solto os cachorros também. Já estou com dificuldade de respirar, e se pego o corona nesse ambiente saturado dos atendimentos de saúde pública? Nem quero pensar e nem posso ficar em casa, como muitos podem estar em suas macias almofadas. Preciso trabalhar mesmo na falta de oxigênio.

            ― Ruza, ali está a casa de dona Cotinha, vamos lá saber do que ela precisa. Esse é nosso trabalho, a gente reclama mas não se acomoda, nem se acovarda, corre atrás de solução. Talvez donas de casa saberiam administrar melhor que esses aí no poder.

            ― Nem tem dúvida! Vamos lá! Dona Cotinha, tudo bem com’a senhora?

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

a luz deve brilhar a todos (CENA 43)

 

16/02/2021

            A convivência com aquele homem modificara rotina de Luiza. Tem agora um amigo. Osvaldo trazia dúvidas e contradições em seu pensamento sem vislumbre profundo do amanhã. Sentada, com pés descansando no murinho da sacada relembrara velhos tempos.

 

Luiza e Fábio curtiam a natureza verdejante abaixo da grande árvore de frutos em aspecto rosáceo-avermelhado. Apaixonados, esquecidos dos compromissos e do que a sociedade esperava de cada um. Cada um de origem diferente e naquele momento em irmandade do amor. Afinal a luz deve brilhar a todos.

Ao longe apreciavam a paisagem digna de quadro divino. As montanhas cobertas em tonalidade de pincel nos verdes caminhados entre pálido e amarelo. O céu claro com leves nuvens desenhavam estradas suaves e se imaginavam naquele local livre de preconceito. A Amazônia em sua exuberância aos caprichos da paixão.

Ela vinda de indígenas ianomâmis, ao sol lançado entre folhas trazia luz à sua pele dourada. Ele cara pálida comum boquiaberto com a beleza de mulher que conhecera no local de trabalho. Uma menina-mulher, a bem da verdade. Mas o que havia nela para transformar o dia a dia ele se perguntava. A vida dá sempre chance pra gente fazer o que quer. Queria estar com ela. Ambos em sintonia com a agreste beleza e aos poucos encontrando-se um ao outro. O desejo caminhava devagar e ela sentia o medo aparecer aos toques da mão carinhosa do namorado mesclado ao interesse de conhecer a fonte incandescente. Tinham sede. Eram jovens descobridores.

A tentação surgia e permitiam-se o estado original. Tentar tantas vezes o lema humano transpassava corpos livres. Bebiam de fonte natural.

 

Enquanto isso Osvaldo levara o vasilhame calmamente. Respirava sem sofreguidão e pudera, me esqueci de fumar tantas vezes como de hábito, até nisso Luiza me ampara. A mulher fazia a vida ganhar cores as quais pensara desaparecidas de seu cotidiano. Uma amiga nesse vale longínquo vale. Não sei por que estranhar amizade entre mulher e homem. Por que será dúvida para ela?

Cuidava da lavação da louça e viajava na água jorrando.

 

Cândida levara Osvaldo a conhecer praias da ilha, a Joaquina, Mole, Galheta, Moçambique, Daniela, Campeche, Canasvieiras, Jurerê, Ingleses e tantas outras. Os banhos ao sabor das ondas jorravam e os dois riam feito criança.

Osvaldo fascinado com a namorada. Sua perfeição acima de discussão. Na realidade respeitava-a como é. O período de bulling lhe ensinara tanta coisa. E o caráter da moça impecável. Ela sofrida do tratamento agressivo do câncer e nem assim perdera a redondeza das formas.  Os dois se pareciam e se gostavam. Era incondicional a admiração de um e de outro. A paixão elevou o afeto. Casaram-se e a fase de dor passou para ambos.

Tem razão o que se diz de tentação. A permissão de tentar tantas vezes transpassa corpos livres. Jorrava água de fonte natural.

 

Assustou-se com chegada repentina de Luiza dizendo:

― Valdo, fiquei acostumada à paz, mas a obrigação me chama. Tenho de ajeitar casa e trabalhar amanhã. Está de pé nosso encontro on line na data natalina, não é?

Osvaldo fechou a torneira. Limpou as mãos, virou para Luiza e meneou a cabeça. Ela com pertences pendurados ao ombro enviou beijo entre máscara e saiu. Ele acompanhou a saída e voltou ao enxague da louça. Após apanhou cafezinho, o cigarro e se dirigiu à varanda. Vamos ver o que nos revelará 2021, disse com rosto questionador.