terça-feira, 31 de dezembro de 2019

CONFRATERNIZAÇÃO E AMIZADE (CENA 9)

26/12/2019
               ― Ei Ritinha, podemos contar com você no amigo oculto de natal e na confraternização com a turma da esquina?
             ― Não vou perder por nada desse mundo, Valdo.
          Então aproveita e escolhe seu amigo oculto. Lembrancinha simples porque as coisas andam apertadas para todos nós. Valor simbólico, o importante é a nossa reunião. ― Balançou o pacote com os nomes e Ritinha fechou os olhos enquanto escolhia.

            ― Vai chamar a Luiza e a Dodô?

          ― Daqui vou na copiadora e na loja ver com elas. Também convidamos a mãe e o Bilico e o pessoal da farmácia. O encontro será animado, ao ar livre, no quarteirão fechado onde a gente joga xadrez. Vamos enfeitar tudo, precisamos de ajudante, hein!

            ― Posso contribuir depois do trabalho.

            Osvaldo encabeçou a festa, definindo os comes e bebes que cada um ficara incumbido de levar. Sem bebida alcoólica. No dia marcado, depois do expediente normal, a farra foi geral com as marchinhas típicas salvas no pendrive e som emprestado.

            A velhinha olhando de cima aquela pequena multidão entre sorrisos, empolgação, pequenos grupos e tanta conversa, ouvia apenas uma zoeira. Ela sempre acompanhava o encontro da turma de xadrez lá de cima, presa à solidão dos que moram e vivem sem ninguém. Vaidosa, antes de chegar à janela, se aprontou, passou maquiagem na face enrugada. Gostava do batom bem vermelho, o perfume forte e a roupinha clássica dos bons anos.

            Osvaldo se desdobrava para tudo sair nos conformes, nem parecia ofegante e até esquecia de acender cigarro. Passeava entre os grupinhos, empolgado com o encontro “muito bom comer o doce junto com os amigos enquanto continuamos a lutar o amargo dos tempos” pensou. Passou rente a Bilico e mexeu em seus cabelos negros, enquanto a mãe oferecia o de comer e beber, na fartura daquele dia. A turma esquecia por alguns minutos os diversos problemas e irmanados no afeto e boa vontade dos que são próximos. Todos com algum problema por solucionar, diversas perguntas sem respostas, crises batendo à porta, mas ali juntos, fortalecidos no elo da convivência. De repente, ao iniciar conversa com o grupinho da farmácia, Osvaldo enxergou a senhorinha à janela. A mulher assustou-se e puxou a cortina. Osvaldo imaginou que ele pelo menos podia contar com a família emprestada, a turma da esquina, mas aquela mulher nunca viu em companhia de alguém. Ela retornou à janela e o acenar do homem chamando-a para se juntar a eles. Agradeceu com a vozinha fraca o convite e continuou a contemplar a algazarra de adultos, parecendo os tempos de criança.

            ― Está na hora do sorteio do amigo oculto, Valdo. Senão fica tarde e perco meu ônibus, e outro somente duas horas depois, vamos logo ― disse um dos amigos aposentados. Osvaldo volveu o olhar e com a mão no ombro amigo, deu uma olhadela rápida para os próprios pés e não os enxergou.

          ― Quer ser o primeiro? ― Osvaldo falou e o amigo deu de ombros concordando. Posicionados no círculo entre três mesinhas de jogos, iniciou a tradicional adivinhação de quem era o amigo após dicas “O meu amigo oculto é assim, assado, desse tipo, e tal” e decorreu até o último receber a lembrancinha em meio às gostosas gargalhadas de dizeres irônicos.

            No grupo de algumas mulheres os assuntos eram diversos, e o que chamou atenção foi o comentário de Dodô:

            ― O senhor ao lado direito de Osvaldo está me enchendo a paciência. Quer porque quer sair comigo e vem todo serelepe para meu lado, pegando em meu braço, despistando e colocando a mão na minha cintura. Não sei mais o que dizer para ele sem ofender. Os homens parecem não ter desconfiômetro, vem para cima da gente com tudo, sem respeitar os limites da educação. Não gosto desses tipos que não escutam, não aceitam ser desprezados. Além disso é velho demais.

            Elas observavam um dos grupos de aposentados conversar alterado sobre time que foi para a primeira divisão e qual caiu para segundona. De brincadeirinhas um com o outro, como se moleques fossem.

            ― Seu requebrado seduz, Dodô. Quem me dera essa ginga baiana na minha praia. Claro, com homem que eu escolho. ― Falou Luiza. ― Também não suporto assédio de forma alguma, até o gerente alertei para o cuidado no trato com funcionários e ele está tomando jeito. Que isso, hein gente, que trabalhão ser mulher, bicho homem parece que só vê bunda.

            As mulheres em risadas quando Osvaldo chegou para saber se a festa estava legal. Ao que responderam em coro “muito boa e divertida” e trocaram olhares e risinhos que ele não compreendeu.

            ― Meninas, o que não querem me contar?

           ― Valdo, tudo tranquilo. É papo nosso, preocupa não, viu! ― Soltou Ritinha, toda sorrisos. ― Está querendo auxílio?

            ― Nada, somente andando e conversando com todo mundo. Olha ali aquele rapaz que às vezes almoço com ele, trabalha perto daqui, disse que não sabia se teria tempo, pois a festinha na repartição foi hoje também. Vou lá bater um papo com ele, depois volto, divirtam-se!

            ― Rapaz, que bom apareceu ao nosso encontro.

           ― A festa da repartição está no finalzinho, e depois que o povo bebe umas e outras, as coisas passam do limite e então lembrei do seu encontro, Osvaldo. Não vi você no almoço por esses dias, mudou de restaurante? ― O rapaz em questão, todo tradicional, jeito tímido, mas ao mesmo tempo habilidoso nas piadas, segundo ele próprio, ainda seria comediante de stand up.

            Geração diferente e se davam bem. O rapaz apreciava papo interessante e entre os jovens de sua idade o papo versava em tecnologia e nada sobre existência, sobre objetivo de vida, sobre o outro e a convivência social. Percebia que procurava amizade entre adultos.

          ― Ano que vem participa do nosso amigo oculto, tenho certeza que vai gostar e te apresentarei os amigos da esquina, tanto os aposentados quanto o pessoal das lojas próximas, a turma é agradável, simples e unida.

          ― Quando for almoçar você me conta como fazem. Passei para felicitar bom natal e ano novo, que nossos encontros de almoço continuem e a gente troque mais ideias, viu amigo! ― O jovem deu forte abraço em Osvaldo, que ficou meio sem jeito. Aquele jovem não tinha vergonha de abraçar outro homem como ele tinha.

            ― Andei ocupado e nem tive pausa para almoço. Continuo almoçando lá e a gente vai se ver sim.

            O jovem se distanciou e fez que lembrasse de Taquinho com a mesma idade, o irmão carinhoso e expansivo. A nesga de tristeza envolveu seu espírito, mas um tapa nas costas o tirou de seus pensamentos e foi ver por que solicitavam sua presença.

            ― Valdo vai dizer algumas palavras antes do fim da festa, gente. Atenção! ― Falou Ritinha, gesticulando os braços.

        ― Mas, Ritinha, não preparei nada. Você é a responsável pelo encerramento, querendo fugir da raia? ― Osvaldo sorrindo. ― Bem vamos ver o que sai, não é!

         O homem andou no círculo de amigos com o jeito pesadão, mas pisando macio, enquanto calculava palavras, subiu no banco de cimento com ajuda de alguns, posicionado com visão de todos. Agradeceu a presença indispensável de cada um, de cada uma, sem o que a festa não teria brilho. Ponderou novo silêncio e

            ― Vocês trazem de mim o melhor, e nessa convivência amiga posso me apoiar. Tal como a verdadeira democracia que precisa se apoiar nos desejos e fantasias de seu povo. Enquanto estamos juntos, vocês, eu, todos deixamos de lado o descontentamento por aqueles que não respeitam compromissos firmados e adotam decisões voltadas ao interesse de poucos. ― Precisou respirar, continuou:

― Ousamos construir esse encontro utilizando a rede de tecnologia para organizar o momento festivo, e vimos quanto isso pode gerar frutos às outras áreas. Torço que nos tornemos mais ativistas durante todo o ano e cuidemos uns dos outros. Em nossas conversas constantes falamos sobre autonomia. Opinamos e verificamos como a Internet foi e está sendo usada, de modo inverso aos nossos desejos e necessidades. Parece que faço discurso político? Mas, vejam, vocês se arrancaram de casa, vieram até aqui, estão presentes, envolvidos e atentos. Esse entrosamento entre nós tem a capacidade de dar visibilidade aos nossos problemas, compartilhar o que nos aflige, nos dá potência e força para os reveses à frente ― nova respirada.

― Estamos mais fortes quando temos tais gestos. Somos sujeitos que definem uma ação em torno do projeto que nos interessa. E depois das festas de final e início de ano, quais serão os projetos? Vamos abrir espaço para possibilidades. Este é o recado, vamos fortalecer a conexão entre nossa comunidade para outras ações com a participação de todos. Nessa coreografia afinada podemos dar pontapés certeiros à construção do que queremos, do que é possível e de direito de todos. O que acham, vamos juntos?

            O grupinho ao lado de Osvaldo gritou:

           ― Osvaldo, Osvaldo! Valdo é o nosso candidato! ― A pequena multidão em palmas, inclusive a velhinha.

           ― Que isso, pessoal, não tenho ambição, mas unidos somamos, isso tenho certeza! ― Desceu do banco escorando nos ombros amigos, pediu um copo com água, pois as palavras exerceram forte emoção.


           Quando o encontro se encerrou, abraços, desejos, sorrisos e bênçãos de amizade leal transmitiam energia vindoura.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Quanto mais teremos que lutar? (CENA 8)


22/12/2019
            ― Outro dia encontrei Juvenal e sabe o que ele me disse? ― Bia falou para Rosária, mulher de Zé Pescador, ― que Josué sustenta a casa sozinho. Ele disse: coitado de Josué, sustenta a casa sozinho. Fiquei com tanta raiva, mas evitei comentar, deixei pra lá.
            ― Homem não dá valor mulher que fica em casa.
            ― Trabalho tanto, às vezes o dia inteiro sem poder sentar. Dona de casa não recebe salário, mas Josué e Toninho vem pra casa e encontram as coisas no lugar. Ainda faxino e lavo roupa dos granfinos que moram atrás do matagal, corro a semana toda sem descanso. Mulher contribui, é explorada, ninguém reconhece o trabalho doméstico.
             Estranho sendo Juvenal quem é.
            ― Ruza, homem é tudo machista. Eles acham que a gente precisa deles pra viver, acham que somos dependentes. Cruz credo, viu, nem parece que se está em 2019, até hoje pensam que mandam e o que a gente faz não têm significado. Sai para lá lobisomem, comigo não! Passei maus bocados com Josué no tempo em que era bocó demais. Pelo menos não casei com Juvenal, Clara deve passar um cortado, mesmo sendo presidente de associação tem essas ideias atrasadas. Quanto mais teremos de lutar por nossos direitos? Todo mundo é igual, homem e mulher. O mundo é melhor porque existe as mulheres, senão ia ser uma tristeza de dar dó. Aguentar essa vida, somente colo de mulher para descanso, nessas horas lembram que a gente é importante.
            ― Zé é tranquilo. Ralo muito, mas ele reconhece e sempre reserva uns trocados pra mim, além de continuar carinhoso e a gente sempre passear, faz questão de continuar namorando. Gosto desse lado dele, me surpreende quando menos espero. Lembra datas festivas. Tem hora que fico me perguntando até quando, por que a gente vê cada homem por aí, que Deus do céu.
            ― Igual a Bolota, coitada, passa um sufoco quando Tobias chega em casa bêbado de doer. Aquela tem sofrimento pra contar, vive roxeada e mancando, quando não tem que ir na UPA. Os homens não estão aguentando a enrolação dele para trabalhar, falta na pescaria e quando vai gasta o dinheiro em cachaça. Os filhos nas ruas, Bolota não tem o respeito dos garotos, mal acostumados aos mandos do pai. A gente tenta falar pra ela buscar ajuda, mas tem medo, qualquer hora faz besteira.
            ― Temos que fazer igual as chilenas. Gritar bem alto para os homens escutar. Tive vontade de ir na marcha, mas estava atarefada. Fico em casa cantando a música que viralizou na Internet:

E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como vestia...
O patriarcado é um juiz, que nos julga por nascer
E o nosso castigo, é a violência que tu vês...
Feminicídio, impunidade para assassinos,
É agressão, o estupro e a ocultação...
Estuprador és tu...
O estado opressor é um macho violador...
Estuprador és tu...

             ― Lurdinha foi e Toninho incentivou. Tem mulher que não sabe que a liberdade foi conquistada a duras penas, não dá pra ficar parada não. A sociedade e os homens têm de respeitar, passou da hora de ter liberdade por nossos corpos, não admitir violência. Queremos o justo.
            ― Bia, está quase na hora de fazer a janta. Depois me conta por que você anda tão sumida, quase não te vejo fora de casa depois daquilo.
            ― Antes de ir quer limonada gelada? Entra e conto as confusões que têm acontecido.
            ― Com esse calor é boa pedida. Mas a hora voou sem eu perceber e as meninas chegam famintas do trabalho. Até mais! “E a culpa não era minha...” ― Rosária saiu cantarolando e dançando pela ruela afora.

domingo, 22 de dezembro de 2019

IDADE DE SENHORA VII


14/12/2019
         Levei os resultados.
― Não adianta se preocupar com a conclusão. Deve-se analisar item a item, isso é o importante. ― Disse o médico enquanto folheava.
― Segundo o laudo verifiquei que não houve mudança, mas também não piorou.
― Na verdade houve melhora de um por cento, olha aqui. Pode parecer pouco, mas no global faz diferença. E não ter piorado mostra que é necessário insistir no tratamento. O que a senhora deve considerar não é a preocupação, mas a dedicação.
A última frase gravitava em meus pensamentos. “O que vale não é a preocupação, mas a dedicação”.
Ele continuou:
― Tem de lembrar sempre os dez mandamentos para uma vida com saúde. Já falei sobre eles?
Assenti com a cabeça e completei que me lembrava, mas ele fez questão de repetir cadencialmente para mim.
― Exercício físico, ..., ter uma atividade, pois não dá para ficar à toa na vida, lazer é fundamental também, nada de stress exagerado e finalmente, proibitivo... tombos. 
― Eis aqui a receita para os próximos seis meses. Levantou e abriu a porta do consultório. ― Na despedida disse:
― Estou aguardando o convite para os cem, não vale os noventa e nove.
― Você falou noventa da última vez.
― Não importa. Só vale os cem!
Fiquei pensando no médico, nas boas palavras que fazia questão de expressar. Será que se poderia considerar escrita e leitura como atividades, apesar de exigir longo tempo sentada? Lembrei dele articulando “a cada hora sentada, levantar e relaxar por dez minutos, obrigatório. Agora até existe um app que trava o computador, exigindo que a pessoa descanse”.
Saí do consultório com a certeza de que deveria fazer mais. Eis o projeto de vida de 2020.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

IDADE DE SENHORA VI


05/12/2019
            Um ano depois voltei ao ortopedista após seguir a receita sem rebeldia, apesar de um dos medicamentos para osteoporose causar para meu fígado maltratado pela hepatite dos tempos de moça. Além disso, após o tal comprimido era proibido tirar uma sesta ou comer algo na primeira meia hora. Tentei minorar o problema com muita água e alimentação de três em três horas.
            O doutor analisou o histórico, me mostrando inicialmente um quadro com carinhas sorrindo e com dor, pontuadas de um a cinco.
            ― Como analisa seu estado, sem dor nenhuma um e muita dor cinco.
            Coloquei a pontuação no sorriso dois, porque estou na idade do condor em voo. Ele me levou até à balança conferindo peso e altura.
            ― Sabia que a altura pode diminuir com a idade?
            ― Li a respeito. É verdade mesmo?
         ― Tive uma paciente com diminuição de dezessete centímetros. Cada pessoa única, mas se está vivo irá diminuir de tamanho, uns menos, outros mais.
            ― Nossa, dezessete. Tinha má postura, curvada?
            ― Isso pode acontecer e também a diminuição das membranas entre os discos. A senhora precisa se lembrar que tem de chegar bem à idade.
           ― E estou quase nos trinta e seis.
         ― Muito bem. Para chegar é preciso lembrar as regras: exercício físico, caminhada, alongamento, nada de excessos para não sentir dor, líquidos e alimentação adequada. Atenção com escadas e por onde anda, evitar quedas ou tombos.
            O médico em seguida solicitou novos exames e quando da despedida, falou entusiasmado:
            ― Quero ser convidado para os cem, para os noventa não vale. ― Dei uma risadinha e pensei se ia chegar aos cem, e ele à festa. Continuou:
            ― Traga os resultados se possível, se não, vejo a senhora ano que vem!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

as muitas perguntas??? (CENA 7)


05/12/2019
            ― Como eu deveria ser? ― A pergunta persistente quase diariamente. Osvaldo em cada baforada compulsiva pensava nas respostas. ― Por que é tão complicado mudar o rumo da vida? Vou e volto ao estado morno que adotei. Uma salvaguarda que só vai me prejudicando. O que ganho com isso?
            O chuvisco escurecendo o fim de tarde de início de dezembro. Ele parou embaixo da marquise. Os transeuntes apertaram o pé para fugir da chuva úmida, vento e frio que vieram sem ser esperados.
Pensava:
“Se os coroas estivessem vivos e também ele... seria diferente a minha vida, esse jeito descoordenado que vivo cada dia, aposentadoria pequena e os remédios que sou obrigado a adquirir, além de nem remédio com abatimento encontro mais. Tem o medicamento para hipertensão, outro para não chegar ao diabetes, o do pulmão devido consequências do fumo, dos ossos refletindo a situação. Graças a tais medicações considero estar vivo, senão eu não aguentaria a cronicidade em que me encontro, muito por minha desavergonhada opção pelo cigarro, concordo que eu não deveria, não poderia estar aqui aguardando a chuva cessar acendendo um cigarro ao outro. Não tenho medida. Perdi o senso mais simples do significado da vida. Não dou valor a ela. Se ao menos Taquinho desse o ar da presença. Ele conhecia meu estilo, de fazer o errado como forma de chamar atenção. Taquinho não perdoava, com certeza me diria:
 ― Valdo, continua fumando? Fuma mesmo! Mas fuma direito para realmente fazer o efeito que você deseja. ― Ele não aceitava meus argumentos mesquinhos e egoístas, que afinal de contas diziam de minha condição narcísica de gritar ao mundo as minhas dores, como se eu fosse o único a sofrer provações. Taquinho era diferente. Ele era irônico comigo, mas eu sabia de sua força nos piores momentos, aliás enfrentou tão cedo tantas situações que se tornou ainda mais forte. Lembro o dia em que mamãe e papai saíram apressados:
― Osvaldo, seu irmãozinho não está nada bem, meu filho, fica quietinho em casa, tranca a porta. Precisando vai para a casa do Pepe até a mamãe e o papai chegarem, está bem? ― Ouvi medroso minha mãe levar Taquinho para o hospital. Ele tinha vomitado, estava com febre e não entendiam por que ele não conseguia ficar de pé, as pernas não obedeciam. Ele tão esperto e sapeca, tinha tantos amigos e como eu o invejava, porque eu, eu tinha vergonha de ser gordo.
Quando voltaram para casa, Taquinho não veio junto. Iria permanecer algum tempo no hospital devido ao perigo de infecção, inclusive em mim. Como me senti culpado por ele estar doente, afinal eu deveria cuidar dele por ser o irmão mais velho e não consegui. A gente gostava tanto de brincar na rua e a turma era grande, lá onde a pobreza hibernava e os pais lutavam além do possível para dar vida digna à família, naqueles tempos duros quando a gente não tinha liberdade. Estranho, em outra medida sinto que hoje está pior, com as coisas camufladas e sem que os simples se apercebam. Ou será que entendem? Meus pais pensavam que o povo estivesse vacinado e não permitiria o retorno de mais opressão e eis que ela está de volta.
Taquinho demorou se recuperar e ficou a sequela. Nunca ouvi uma reclamação do que aconteceu com ele. Antes já era um garoto resignado, mesmo miúdo daquele jeito continuou a mesma curiosidade, a mesma vontade louca de viver e gritar e brincar e rir das brincadeiras dos garotos. Saudade de meu irmão.”
O tempo estiou. Osvaldo apagou o cigarro e jogou a bituca à lixeira. Seguiu rumo ao terminal de ônibus a caminho de casa, apostando que os próximos dias seriam ensolarados e estaria entre os amigos da esquina.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Seguir adiante! (CENA 6)


05/12/2019
            ― Dias atrás vi você andando distraída na direção da mercearia, Bia. ― Falou Juvenal descendo da bicicleta.
         ― Ju, não sabe o sufoco que passei. Nem te conto os problemas que tivemos, Josué e eu.
           ― Fiquei sabendo, Bia, o povo canta rápido o novelo.
           ― Tem razão, a gente não tem segredo, além do povoado agora também a Internet né!
          ― O Josué está bem?
          ― Conhece o sujeito. Não fala nada. Teve crise de pânico após o acidente e se recupera devagar, parece adiando retornar ao mar. O dinheiro por um fio, não sei o que vem.
          ― Podendo ajudar, conte comigo. Sei que ele não vai com minha cara. Os velhos tempos amargaram nossas relações, mas você sabe que pode contar, não é? Em casa também tem dificuldade, Clarinha e os meninos, as despesas pesam. Fora que não está fácil arrumar serviço de carteira assinada, e quando aparece eles querem pagar menos e dar o restante por fora. Os direitos estão minguando a olhos vistos no nosso dia a dia, cada dia um corte, ficando só o básico e olha que dá medo, a gente tem família, fica preocupado com tamanha insegurança. Imagino Josué, com aquele jeitão de parecer forte e dar conta do sustento da família, não é brincadeira.
            Juvenal e Bia viveram momentos de paixão. Quase crianças ainda. As casas das famílias coladas uma a outra. Desde pequenos brincavam no quintal quando ele escapava por debaixo da cerca de arame. E da amizade, dos hormônios, do toque na pele, do primeiro beijo, das mãos dadas, do cinema em projeção numa parede do centrinho, veio o namoro. Até que mudou uma família do Nordeste para a casa que foi de Dona Cotinha. Ele ficou amigo do rapazinho sisudo, desconfiado e de quase nenhuma palavra. Assim Josué ficou entre eles. O tipo demonstrando necessitar de cuidado conquistou o coração de Bia a ponto de os dois amigos deixarem de ser vistos juntos nas brincadeiras masculinas. Josué era ciumento e Bia não sabia lidar por ser muito jovem, permitiu se anular inicialmente por estar apaixonada e ver nele o homem de sua vida. No entanto Juvenal não deixou que a amizade entre ele e Bia desaparecesse, respeitou a escolha da mocinha. Isso incomodava Josué, atento às artimanhas por não acreditar em amizade entre homem e mulher.
            ― Como vai Clara e os meninos? Não tenho visto ninguém, ando tão confusa com tanta coisa para pensar e não consigo clareamento na cabeça do que deve ser feito.
           Esse período está duro para muitos. O preconceito está ainda mais presente na vida da gente. Nosso povoado que antes era tão unido, agora tem aquele pastor desencaminhando algumas almas conflituosas e as pessoas submissas e carentes se tornando fanáticas para coisas inacreditáveis.
           ― Os problemas do povoado interferindo na vida em família e discussões vindas de onde a gente menos imaginava. É triste ver a desconfiança entre pessoas que eu considerava irmãos, amigos, é triste. Até nosso pequeno povoado.
          ― A família está bem, a gente faz o que pode para lidar com as desavenças entre parentes. Bia, depois conversaremos e torço que tudo se resolva para Josué. Lembre-se do amigo aqui, os verdadeiros amigos não falham.
            ― Senti na pele essa experiência. As mulheres me socorreram na hora do sufoco e sei com quem contar. A rede dos que se importam ainda é grande e bem tecida. As fases vem e passam, é assim, seguimos adiante.
           ― Tenho que ir! Clara está esperando o feijão para cozinhar, deve estar danada com minha demora. Até! ― Montou na bicicleta. Bia continuou no mesmo lugar olhando ele sumir.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

à cata de quê? (CENA 5)


01/12/2019
            A semana andava estressante. Bia pegou uma grana caso decidisse comprar algo e saiu para o giro à beira-mar. Queria estar em paz e lá se transportava alhures. Era fácil se permitir. A água morna, o céu iluminado de azul. Ao passar próxima a uma cabana de sucos e frutas, escutou a voz rouca de Caymmi, cantando "O mar quando quebra na praia, é bonito, é bonito...". Quando a mente queria importunar, a onda batia em seus pés em cadência e sentia-se transportada. Não se perdia de todo. Instintivamente, se localizava lixo na areia: tampas de garrafa d’água, lacres, pedaços de plástico, canudinhos, isopor, copo descartável, ... enchia as mãos, levava à lixeira. Quando voltava a andar sem compromisso, eis que encontrava mais lixo e tornava encher as mãos. Abaixou para pegar uma tampinha e quando ergueu o olhar, um jovem disse:
            ― A senhora está catando conchinhas? ― Caminhou na direção dela e ofereceu a mão cheia de conchinhas do mar.
― Não, ― Bia mostrou o que tinha entre as mãos ― é lixo. Não entendo por que as pessoas deixam tanto lixo na praia. São incapazes de jogar na lixeira. ― O rapaz olhou assustado a quantidade de objetos plásticos. Tornou a andar, mas voltou-se e gritou:
― A senhora é a primeira pessoa que vejo catando lixo. Juro que nunca vi ninguém fazendo isso aqui na praia. ― O rapaz continuou à cata de conchinhas. Bia seguiu no passeio e falou sozinha “ele não deveria tirar as conchinhas da praia, pois servem de casa aos micro-organismos da natureza”. A quantidade de conchinhas havia diminuído muito nos últimos anos.
O barulho de helicóptero se fez forte, um zunido irritante e muito próximo. A aeronave voava baixo. Bia olhou para cima e ao passar por um rapaz, ele falou:
― Você vai sair na televisão. ― Bia não entendeu, perguntando-se o por que do moço dizer aquilo. Mais à frente, muitos vendedores: milho verde, choripan (pão com linguiça), bebida de todo tipo, queijo na brasa, sanduíche, roupa, rede, colcha rústica, ..., com o desemprego nas alturas as pessoas estão no salve-se quem puder. Entre eles comentavam estar difícil sobreviver, principalmente na informalidade. Então entendeu, foram filmados de cima, o helicóptero. Também ela tinha pensado em vender algo na praia para ajudar Josué nas despesas que só aumentavam. Chegou ao final, deu meia volta, e continuou a caminhar no molejo das ondas, sem pressa, quando repentinamente ouviu uma gritaria vinda de onde estavam os vendedores ambulantes, os fiscais chegaram e reviravam a mercadoria, vendedores assustados e decididos a correr e salvar o que fosse possível, aquele monte de gente agitada e misturada aos turistas e trombando nas pessoas. Bia levou um tranco de alguém e foi derrubada, quase pisoteada. Ágil, levantou e a certa distância, com o coração acelerado, observava a triste história dos que perdiam  as mercadorias.
Com o verão chegando a disputa de espaço ficava acirrada.
Bia no agacha-levanta na catação de lixo, na corrida à lixeira. Ela se distraiu de seu lixo interno, que deixava acumular e nem sempre achava destino, montanhas e montanhas de milhares de cacos exigindo reciclagem, mas largado à margem de sua própria praia desértica.
Não foi a única à cata de alguma coisa, afinal retirar o lixo da praia é sempre saudável. No caso dos ambulantes e das conchinhas nem tanto.

domingo, 1 de dezembro de 2019

INDECISÕES (CENA 4)


19/11/2019
Levantou com dificuldade. O peso excessivo para quem chegou aos setenta. Os joelhos falavam de dor, e teimava não escutar. Amarrar o calçado se tornava malabarismo. Fumava um cigarro após outro. Tentou dar cabo do vício participando de grupos de fumantes e depois apelou para os medicamentos. Nem assim liberou-se, o corpo impregnado pela dependência.
A calça larga visando conforto, amarrada por cordão, deixava os pneus ao redor da cintura exercerem o padrão e compulsivamente continuava a comer. A blusa solta ao corpo mantinha a discrição, afinal por mais que olhasse a figura ao espelho, não conseguia fechar a boca. O sapatênis trazia molejo aos pés que aguentavam o peso, sempre na cor preta e as roupas nos tons escuros.
A casa era o porto seguro. Somente sua e ninguém que importunasse pela bagunça ou não dos cômodos. Olhou o relógio. Começara a aprontar com horas de antecedência. Queria café, mas sem ânimo de limpar as canecas sujas em redor da pia. O fogão cheio de panelas com restos de comida. Abriu a geladeira e viu somente alimentos congelados para almoço e jantar. Deu meia volta, foi ao banheiro, escovou mal e mal os dentes, não usou perfume, ultimamente o enjoava, não importava se o mais refinado aroma. Ajeitou o cabelo com os dedos, as têmporas embranquecidas e no restante a cor natural sobressaia.
A padaria servia café da manhã, distante apenas poucos quarteirões em descida íngreme. Difícil era a subida. Parava após pequenos passos, respirava com dificuldade, e aproveitava para acender um cigarro, o companheiro de todas as horas. E ziguezagueando pela calçada, procurava vencer o cansaço. Hoje seria diferente, após o café esperou o ônibus.
O centro da cidade começava em polvorosa. Caminhou à esquina conhecida, sentou no banco público e observava as pessoas. Alguns dias da semana sempre o mesmo ritual. Sentar e aguardar a chegada dos companheiros para as rodadas de dama ou xadrez. Enquanto não apareciam, o olhar caminhava: a Ritinha da revistaria iniciava o dia esbaforida, sempre atrasada; Dodô da copiadora naquele molejo sonso; Luiza tratava de abrir a loja de eletrodomésticos antes da chegada do gerente, que por qualquer atraso virava bicho; a moça da farmácia...; a correria daquele monte de gente que transitava entre as ruas. As amizades daquele pedaço eram sua família. Sozinho no mundo, sem parentes.
Pegou o cigarro, acendeu e disse:
― Meu amigo, o dia amanheceu fervendo. ― O cigarro respondia em redemoinho. Queimava, queimava, e maço, após outro, o dia extenso. Quando Bilico correu para cima do banco com dificuldade, ajeitou-se sapeca e perguntou:
― Por que chamam ele de “bolotazo”?
― Quem? Que “bolotazo”? Que está falando, menino?
― Eles falam é o “bolotazo”.
― Pra que você quer saber? Nem tem idade. Como está na escola?
― A escola tá sem professora, eu tô de feriado. Minha mãe me trouxe. ― A mãe estendia a trouxa de bugigangas para vender no passeio, o menino amolava a turma da esquina durante todo o dia.

A rotina transcorria entre jogos, o almoço, as conversas e finalizava com o cigarro e a tradicional pergunta a si:
― Como eu deveria ser? ― o cigarro serpenteava e se espalhava ao vento.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

PALAVRAS PODEM MATAR OU MORRER (CENA 3)


19/11/2019
    Bia passou a mão na bolsinha e saiu rumo à farmácia. Josué ainda não estava bem depois dos transtornos no mar. Ela tinha que dar conta de tudo e o dinheiro minguando. Após alguns passos ouviu atrás de si gritos, conversa muito alta, parecendo briga. Parou, virou, ficou escutando. O motoqueiro parecia não se importar com o que o rodeava. Estava com capacete, e nem isso o impedia de agir como vociferado:
            ― Isso que tá acontecendo é horrível. O que está acontecendo comigo é a coisa mais terrível do mundo. Você não gosta nem um pouquinho de mim! Por que tá fazendo isso comigo? ― O rapaz vinha em baixa velocidade com a motocicleta enquanto falava ao celular por fone de ouvido. E não parava de gritar. Virou à esquerda. Bia observou a voz irritada e movimentos do rapaz enquanto girava a moto sem atenção, até um ponto em que não conseguiu ouvir mais. Naquele fim de mundo, com estradinha vagabunda, o rapaz de moto fazia a ronda local. Os moradores recolhiam o dinheiro para o pagamento da ronda, pois na proximidade tinha uma maloca que vendia droga e um grupo saía fazendo arruaça.
            Enquanto caminhava, pensava: “Que tom forte ele usou, do outro lado da linha devia ser a pessoa amada”. “Será que ele é tranquilo ou agressivo? Esses momentos podem provocar as piores coisas, a pior parte de uma pessoa pode aparecer quando descontrolada. É tão complicado quando nos decepcionam”.
            Bia continuou “e se fosse Josué, como reagiria, deixaria vir do fundo toda aquela cólera ou saberia reagir com calma?”. Não encontrou resposta, mas conhecia histórias de homens imprevisíveis quando dizia respeito à rejeição, acostumados à posse, a não ter dúvida do que lhes pertence, como se mulher fosse coisa, fosse obrigada abaixar a cabeça e aceitar o destino sem questionar.
            De repente, quando chegou no beco da encruzilhada, quase trombou com o jovem da moto virando à sua frente, e ele continuava exaltado. Dessa vez contava o ocorrido para alguém. Deu medo.
            Atravessou a rua, entrou no caminho do matagal e observou como aquele local se modificava rápido. Em algumas áreas já apareciam apartamentos em construção que não estavam ao seu alcance. Parou em frente aos dois prédios, de que tamanho seria? com sacada? daria para ver o mar? talvez com churrasqueira? Imaginou que sim, deviam ter churrasqueira, pois os gaúchos, em sua maioria no local, são aficionados por carne. Observava, quando caminhava na praia, muitos grupos com garrafa térmica, cuia de chimarrão e passando de mão em mão o chá mate. Josué inventou de ter uma cuia também, uma vez experimentou e não gostou.
             ― Eli não está trabalhando hoje? Encomendei um remédio, será que deixou aí no nome de Bia?
              ― Hoje está de folga. Olha aqui, ela deixou reservado.
            Bia tinha se preparado para ver Eli e prosearem um pouco, gostava de encontrar a gaúcha baixinha, de olhos muito claros e acastanhados, risinho doce e gentil que conversava lenta e pausadamente, dava gosto ouvir o sotaque. Queria contar um pouco de Josué também, de como estavam as últimas semanas desde o acidente. Queria falar com alguém e ela tinha bons ouvidos. Bia sentia que as palavras morriam dentro de si.

sábado, 16 de novembro de 2019

Arrumou a roupa (CENA 2)

            12/11/2019
   Arrumou a roupa no corpo. Primeiro dia de trabalho. “Os tempos mudam e as exigências permanecem arcaicas. O país anda tão quente, cada vez esquentando mais e tenho que usar essa roupa sufocante atrás de uma gravata” pensou. O coração batia apressado de tantas emoções.
            Havia um aviso na porta: “Novatos. Trocar de roupa e apresentar-se ao seu gestor”. Expectativa ansiedade tensão nervosismo insegurança instabilidade desconhecimento mudança ... palavras que metiam medo. Ressabiado e assustado, obedeceu as instruções. Até o momento as cobranças foram amenas, as da mãe: “Menino, desliga esse computador, já passam da meia noite”, “Não beba se vai dirigir”, “Respeita as mulheres”, “Trata todo mundo igual” ... E do pai: “Para de se preocupar com time de futebol, enquanto o jogador ganha dinheiro, você aí gastando tempo”, “Cuida da sua vida”, “Olha a turma e presta atenção nas decisões”, “Cuidado com doenças venéreas, usa camisinha” ...
            O vestiário parecia em processo de incêndio. A sirene apitava. O turno dava início e pontualmente ele chegou ao setor de trabalho. Sentiu que iria gaguejar e engoliu fundo antes do cumprimento. O chefe deu uma olhada de cima a baixo e afirmativo observou que a roupa se adequava aos moldes da organização. Com um risinho cínico lembrou de seus primeiros passos. Merda droga cacete foda-se, palavras das quais se recordou falar consigo no primeiro dia. Aquele rapaz, ao contrário, era comportado demais para o estilo juvenil de sua época, no apogeu do sexo drogas rock and roll. O gerente remexeu na cadeira, empertigando-se, e logo chamando o assistente para transmitir a rotina ao novato. O século era XXI, mas a burocracia secular.
          O assistente se aproximou. O rapaz notou o tique, um soquinho na cintura, como se estivesse arrumando a calça e piscadelas rápidas, era jovem, roupa discreta e clássica, mas os sapatos maltratados.
― O primeiro dia aqui não é muito interessante. Vou repassar os passos do trabalho e devem ser feitos na sequência de minha orientação. Qualquer dúvida me pergunta, mas uma coisa é fundamental, e você deve estar ciente: “Esqueça de trabalhar, mas não esqueça de assinar o ponto” ― disse o profissional, enquanto caminhavam e apresentava o novato aos colegas.
     ― Aqui é proibido, proibidíssimo, tocar em política. É como se tudo estivesse em harmonia do lado de fora para não interferir na paz aqui de dentro. O ar é refrigerado e a temperatura é sempre retilínea–uniforme, nenhum alto e baixo, nenhum movimento de subida ou descida. Mantenha-se discreto e se envolva apenas com o expediente. Logo ali é a saleta de café e água. Hoje em dia anda faltando até café, mas costuma ter ao menos uma vez ao dia. Existe também a lanchonete terceirizada no térreo, você deve ter passado por ela, de nome “Freud Explica” ― continuou.
        ― Vou te contar um caso pra você ficar atento. Uma profissional, daquelas bem falantes, veio tomar café junto com dois colegas do mesmo naipe. Enquanto conversavam animados, perceberam que a mulher virou o café à boca sem prestar atenção, e logo começou a mastigar. Após alguns segundos, cuspiu na pia. Uma barata massagada e nojenta! Ela soltou o verbo: “Que bosta é essa?”, enquanto os companheiros seguravam o riso. Até o café deve ser sorvido com cuidado. ― Deu uma risadinha descontraída e seguiram.

            O rapaz escutava em silêncio. Percebeu que ali não era diferente do lado de fora. Respirou acalmando-se. Lembrou que seu lado humorista, do tipo stand up, só tinha a ganhar com as experiências naquele mundo fechado.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Nem sempre pensamentos são verdadeiros (CENA 1)


02/11/2019
Era sábado. Olhou o relógio, cinco da tarde. O corpo parecia pesar e quando entrou no quarto, a cama ainda desarrumada desde a manhã. Nem mesmo a janela tinha sido aberta. Permitiu ouvir o que o corpo pedia, deitou devagar, como um ritual. Fechou os olhos tentando descansar, mas os pensamentos não deixavam. Durante os poucos minutos ali, as palavras inundavam em sequência e rapidamente de assunto a outro, até um ponto em que começou a sentir culpa por estar naquele estado. “O que estou fazendo aqui esta hora? Não tem pão e amanhã é domingo. Eu deveria me levantar e sair para comprar”. As forças vieram rápidas, em um pulo já se aprontava e calçava a sapatilha. Abriu a bolsinha de pano rústica e florida onde colocava o dinheirinho. “Deve dar para o que precisamos”.
O vilarejo onde moravam era distante. Bia teria que andar alguns minutos até chegar ao pequeno comércio que se reduzia a um cômodo, onde era a padaria, e mais adiante, o mercadinho. No caminho não encontrou ninguém para conversar e seus pensamentos lhe deram pequeno sossego. Passou um moço de bicicleta e olhou como se a conhecesse, distraída não viu.
Entrou na padaria. As prateleiras de madeira com forrinhos enfeitados de papel e feitos à mão. Estavam quase vazias, as ofertas rareavam. Pegou o de costume, um pão de trigo, o suficiente para o fim de semana. Pagou, agradeceu e perguntou: “cadê o Seu Brás?”. O moço respondeu que era seu parente e que ele precisou de descanso, as pernas doíam muito, problema nas veias. Desejou que ele melhorasse logo e que a Bia do Josué mandou lembrança. Mais um bocado de tempo e chegou ao mercadinho. No sábado ali era uma paradeza danada. Andou até os fundos onde estavam dependuradas as bananas. Amava banana da terra, tão saborosa após o cozimento e nem precisava adoçar, retirava a casca, picava em rodelas numa panela e deixava cozinhar por alguns minutos com pouca água. Assim que pareciam macias e a água evaporada, colocava num prato, amassava com o garfo e o purê rústico era o doce preferido. Pegou também banana caturra para Josué e o filho. O dinheiro ainda deu para comprar a bebida que Bia foi saboreando pelo caminho, geladinha e de sabor meio amargo, meio doce, na cor escura.
Ao sair do mercadinho não quis cortar caminho. Seguiu adiante com a intenção de ir caminhando pela areia. O vento não estava forte como ontem, e Josué já deveria estar naquelas bandas preparando a rede e os apetrechos para a pesca da madrugada. Atravessou a ruazinha, e no boteco da esquina tinha alguns turistas. Mesmo dia que não trouxesse o sol, e o céu como aquele, ainda assim essas paragens valiam o passeio.
Bia pisou devagar evitando que o calçado levasse areia para dentro dos pés. Caminhou até à areia úmida. Parou assim que sentiu o chão firme. Olhou ao redor. O mar à frente e as ondas batiam naturais. Na margem direita, o monte de casinhas já se iluminava e o cair da tarde dava o toque mágico. Ao longe, do lado mais esquerdo, distante dali, enxergava outro povoado com luzinhas acesas. Tentou adivinhar onde seria, mas pelo horário não soube definir. Respirou fundo, olhou o céu que se modificava em tons cinzas e que iam escurecendo ainda mais de um lado a outro e ao fundo da linha do oceano. Ao alto ainda se via rajadas mais claras e o vento moldando tudo. Será que iria chover? Continuou a caminhar, e tornou a interromper quando viu um pescador retornando com o barco. Perguntou se o mar estava para peixe. O homem respondeu: “peixe é só amanhã pela manhã”. Ela sorriu e respondeu “Ah!”. Um pássaro sobrevoou próximo e o olhar acompanhou, de repente o pássaro se embaralhou às cinzentas nuvens, como se os dois fossem um.
Continuou caminhar. Olhou a restinga à esquerda. Estranhou que as canoas de Zé e Luiz ainda não estivessem preparadas para o trabalho. Josué já deveria estar longe e Toninho não ia com ele, o pai permitiu que o filho descansasse. Os pensamentos retornaram. Por que se sentia assim, com tantas dúvidas. Josué era homem bom. Bom pai. Mas o que ela sentia? Parecia que entre eles já não existia significado. Continuar vivendo ao lado daquele homem que não lhe dava mais a sensação de companheirismo. Bia gostaria de ir embora. Gostaria de fugir para algum lugar. Ficar consigo mesma. A solidão desejada e não como algo trágico, dava serenidade pensar em um espaço somente dela, que tivesse o seu jeito, que a arrumação lhe trouxesse calma e aconchego. Ainda era jovem, poderia encontrar alguém. Josué era bom pescador, caladão, simples, sentia que era parte daquela areia, daquela água, daquelas ondas, daquele céu. Era manso. Mas sabia que era revolto também, dentro de si existia tal qual a tempestade que às vezes o ameaçava em alto mar. Ele não comentava nem consigo mesmo se sentia medo. Nem ela sabia o que o homem tinha dentro de si. Gostaria de saber, talvez se tivessem partilhado, talvez ela não tivesse tantas dúvidas, tantas necessidades. Ao mesmo tempo reconhecia que... Outra ave revoou, ela volveu o olhar na direção do voo e a ave se fundiu à nuvem. Era como se reconhecesse naquele instante que sua vida lhe pertencia e não dependia de uma outra para a felicidade. Estaria sendo egoísta desejar isso, largar o marido e o filho e viver a vida à sua maneira, seria errado?
Escureceu tão rápido e ainda estava longe de casa. Bia continuou com passadas normais. E naquele momento o escuro que a envolvia não ameaçava. Olhou nítido para a praia e percebeu um corpo escuro na água, como se estivesse caminhando. Era uma pessoa? Parou para ver se enxergava com nitidez, via apenas um ponto escuro que se movimentava. Tornou andar. Tirou o sapato, passou por entre montes de areia, dunas que se modificavam por causa do vento, subiu em alguns trechos até chegar próximo à estradinha.
No estreito caminho até em casa, observou as moradias iluminadas. As mulheres deveriam estar na arrumação da janta. A sua casa na escuridão. Abriu a porta e acendeu a luz. Guardou as bananas. Tomou café com pão. Os homens somente dariam notícia amanhã, trariam peixes para venda e a família. O filho desaparecia na casa de Lurdinha nos fins de semana, se acomodando no quarto da moça. Bia foi para o banho e o tempo começou a modificar. Respingos de chuva no terreiro e o vento que murmurava assustaram o cachorro, e ele latia. Quando terminou a janta, arrumou a cozinha, e a tempestade veio. Bia pensou com preocupação “como estarão os homens?”. Ao caminhar até o quarto, as luzes se apagaram no povoado. Relampejava, as plantações balançavam bruscamente. Tateou até a cama, deitou-se e dormiu sem pensar, a energia gasta na andança dera resultado.
Acordou de manhã com aquela conversaiada, uma falação misturada do lado de fora. Bia sentiu o coração apertar e foi saber o que era.  Quatro pescadores não voltaram. As ruelas alagadas pela tempestade. Galhos e até mesmo árvores arrancadas com raízes. Ela, então, correu para a praia e encontrou mulheres em desespero chorando por seus maridos, filhos. Os que chegaram, arrastavam as embarcações para local seguro, e contavam a história da madrugada horrenda. Ondas altíssimas derrubaram barcos e companheiros exaustos de tanto nadar não aguentaram e desapareceram. Bia escutou. As mulheres olhavam para ela e a queriam consolar, mas não permitiu. Sentou acabrunhada na areia, e sozinha esperou todo o domingo. Quando se deu conta do que tinha pensado no dia anterior, percebeu que fora enganada pelos próprios pensamentos. Não era verdade que desejasse ficar sozinha. Queria Josué por perto. Aguardava o barco aportar. As águas agora mansas. O fim de tarde caía novamente.
As mulheres solidárias, cada hora uma, iam à praia cuidar de Bia, que ainda parada, era bicho apavorado. E assim adormeceu. Acordou com o dia nubloso e ondas rebeldes batiam com força. As amigas pediam que voltasse para casa, Toninho, o filho, precisava dela. Bia parecia não escutar. O olhar voltado ao alto mar. De repente uma das mulheres chegou aos gritos avisando que Josué tinha sido encontrado numa praia distante. Bia não ouvia. Paralisada. As mulheres ergueram Bia e levaram com cuidado a moça até em casa. Puseram Bia na cama e obediente permaneceu. As mulheres continuaram se revezando.
Bia gritava o nome de Josué e nadava, nadava ao encontro do marido, quando de repente a cabeça do homem saiu de dentro da água, ele respirou com ânsia. Quando os dois se viram, nadaram um em direção ao outro e se abraçaram. Como quando namoravam e se amavam no mar. E Bia dizia, você está vivo, meu amor, eu rezei, pedi a Iemanjá, e passava as mãos no rosto e cabelo do marido. Josué no mesmo gesto, só não falava, sorria. Beijava a mulher loucamente e depois a apertava no corpo. Bia ainda ansiosa em sair do mar, puxava o marido que sentia as forças se esgotarem. O cansaço era tanto que a mulher dormiu até o outro dia.
Na terça-feira, Bia acordou e olhou como se visse fantasma, Josué à beira da cama velava seu conturbado sono. Os dois, abatidos pela tragédia que quase os separou, se abraçaram. O abraço trazia a dor e a felicidade, e uniu o casal rumo ao recomeço.