quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Quanto mais teremos que lutar? (CENA 8)


22/12/2019
            ― Outro dia encontrei Juvenal e sabe o que ele me disse? ― Bia falou para Rosária, mulher de Zé Pescador, ― que Josué sustenta a casa sozinho. Ele disse: coitado de Josué, sustenta a casa sozinho. Fiquei com tanta raiva, mas evitei comentar, deixei pra lá.
            ― Homem não dá valor mulher que fica em casa.
            ― Trabalho tanto, às vezes o dia inteiro sem poder sentar. Dona de casa não recebe salário, mas Josué e Toninho vem pra casa e encontram as coisas no lugar. Ainda faxino e lavo roupa dos granfinos que moram atrás do matagal, corro a semana toda sem descanso. Mulher contribui, é explorada, ninguém reconhece o trabalho doméstico.
             Estranho sendo Juvenal quem é.
            ― Ruza, homem é tudo machista. Eles acham que a gente precisa deles pra viver, acham que somos dependentes. Cruz credo, viu, nem parece que se está em 2019, até hoje pensam que mandam e o que a gente faz não têm significado. Sai para lá lobisomem, comigo não! Passei maus bocados com Josué no tempo em que era bocó demais. Pelo menos não casei com Juvenal, Clara deve passar um cortado, mesmo sendo presidente de associação tem essas ideias atrasadas. Quanto mais teremos de lutar por nossos direitos? Todo mundo é igual, homem e mulher. O mundo é melhor porque existe as mulheres, senão ia ser uma tristeza de dar dó. Aguentar essa vida, somente colo de mulher para descanso, nessas horas lembram que a gente é importante.
            ― Zé é tranquilo. Ralo muito, mas ele reconhece e sempre reserva uns trocados pra mim, além de continuar carinhoso e a gente sempre passear, faz questão de continuar namorando. Gosto desse lado dele, me surpreende quando menos espero. Lembra datas festivas. Tem hora que fico me perguntando até quando, por que a gente vê cada homem por aí, que Deus do céu.
            ― Igual a Bolota, coitada, passa um sufoco quando Tobias chega em casa bêbado de doer. Aquela tem sofrimento pra contar, vive roxeada e mancando, quando não tem que ir na UPA. Os homens não estão aguentando a enrolação dele para trabalhar, falta na pescaria e quando vai gasta o dinheiro em cachaça. Os filhos nas ruas, Bolota não tem o respeito dos garotos, mal acostumados aos mandos do pai. A gente tenta falar pra ela buscar ajuda, mas tem medo, qualquer hora faz besteira.
            ― Temos que fazer igual as chilenas. Gritar bem alto para os homens escutar. Tive vontade de ir na marcha, mas estava atarefada. Fico em casa cantando a música que viralizou na Internet:

E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como vestia...
O patriarcado é um juiz, que nos julga por nascer
E o nosso castigo, é a violência que tu vês...
Feminicídio, impunidade para assassinos,
É agressão, o estupro e a ocultação...
Estuprador és tu...
O estado opressor é um macho violador...
Estuprador és tu...

             ― Lurdinha foi e Toninho incentivou. Tem mulher que não sabe que a liberdade foi conquistada a duras penas, não dá pra ficar parada não. A sociedade e os homens têm de respeitar, passou da hora de ter liberdade por nossos corpos, não admitir violência. Queremos o justo.
            ― Bia, está quase na hora de fazer a janta. Depois me conta por que você anda tão sumida, quase não te vejo fora de casa depois daquilo.
            ― Antes de ir quer limonada gelada? Entra e conto as confusões que têm acontecido.
            ― Com esse calor é boa pedida. Mas a hora voou sem eu perceber e as meninas chegam famintas do trabalho. Até mais! “E a culpa não era minha...” ― Rosária saiu cantarolando e dançando pela ruela afora.

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