22/12/2019
― Outro dia encontrei Juvenal e sabe
o que ele me disse? ― Bia falou para Rosária, mulher de Zé Pescador, ― que
Josué sustenta a casa sozinho. Ele disse: coitado de Josué, sustenta a casa
sozinho. Fiquei com tanta raiva, mas evitei comentar, deixei pra lá.
― Homem não dá valor mulher que fica
em casa.
― Trabalho tanto, às vezes o dia
inteiro sem poder sentar. Dona de casa não recebe salário, mas Josué e Toninho
vem pra casa e encontram as coisas no lugar. Ainda faxino e lavo roupa dos
granfinos que moram atrás do matagal, corro a semana toda sem descanso. Mulher contribui,
é explorada, ninguém reconhece o trabalho doméstico.
― Estranho sendo Juvenal quem é.
― Ruza, homem é tudo machista. Eles
acham que a gente precisa deles pra viver, acham que somos dependentes. Cruz
credo, viu, nem parece que se está em 2019, até hoje pensam que mandam e o que
a gente faz não têm significado. Sai para lá lobisomem, comigo não! Passei maus
bocados com Josué no tempo em que era bocó demais. Pelo menos não casei com Juvenal,
Clara deve passar um cortado, mesmo sendo presidente de associação tem essas
ideias atrasadas. Quanto mais teremos de lutar por nossos direitos? Todo mundo
é igual, homem e mulher. O mundo é melhor porque existe as mulheres, senão ia
ser uma tristeza de dar dó. Aguentar essa vida, somente colo de mulher para
descanso, nessas horas lembram que a gente é importante.
― Zé é tranquilo. Ralo muito, mas
ele reconhece e sempre reserva uns trocados pra mim, além de continuar carinhoso
e a gente sempre passear, faz questão de continuar namorando. Gosto desse lado
dele, me surpreende quando menos espero. Lembra datas festivas. Tem hora que
fico me perguntando até quando, por que a gente vê cada homem por aí, que Deus
do céu.
― Igual a Bolota, coitada, passa um
sufoco quando Tobias chega em casa bêbado de doer. Aquela tem sofrimento pra
contar, vive roxeada e mancando, quando não tem que ir na UPA. Os homens não
estão aguentando a enrolação dele para trabalhar, falta na pescaria e quando
vai gasta o dinheiro em cachaça. Os filhos nas ruas, Bolota não tem o respeito
dos garotos, mal acostumados aos mandos do pai. A gente tenta falar pra ela
buscar ajuda, mas tem medo, qualquer hora faz besteira.
― Temos que fazer igual as chilenas.
Gritar bem alto para os homens escutar. Tive vontade de ir na marcha, mas
estava atarefada. Fico em casa cantando a música que viralizou na Internet:
“E a culpa não era minha, nem onde estava,
nem como vestia...
O patriarcado é um juiz, que nos
julga por nascer
E o nosso castigo, é a violência
que tu vês...
Feminicídio, impunidade para
assassinos,
É agressão, o estupro e a
ocultação...
Estuprador és tu...
O estado opressor é um macho
violador...
Estuprador és tu...”
― Bia, está quase na hora de fazer a
janta. Depois me conta por que você anda tão sumida, quase não te vejo fora de
casa depois daquilo.
― Antes de ir quer limonada gelada? Entra
e conto as confusões que têm acontecido.
― Com esse calor é boa pedida. Mas a
hora voou sem eu perceber e as meninas chegam famintas do trabalho. Até mais!
“E a culpa não era minha...” ― Rosária saiu cantarolando e dançando pela ruela
afora.
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