quinta-feira, 28 de maio de 2020

é difícil acreditar (CENA 16)

26/05/2020

Josué colocou a furreca para fora, levou os apetrechos para limpeza. Olhou o céu e estranhou o anil de maio, o tempo ameno. Uma esguichada rápida com a mangueira e ensaboou a lataria do fusquinha, os pneus, a parte interna. Ao finalizar, enxaguou o carro, e a água escorrida formou pequena poça, da qual passarinhos vinham beber. Depois alguns batiam asas e remexiam patinhas aproveitando o banho e a cada minuto chegava mais outro, outro, outro, eram tantos passarinhos que Josué estranhou, de onde estarão vindo? Nunca tinha visto algo assim.

Quando novamente volveu o olhar para apreciar a cena, os passarinhos já não estavam em prazerosa euforia, alguns agonizavam e outros desfalecidos à beira. Mais passarinhos vinham e pareciam exaustos. Josué gritou Toninho, e Lurdinha veio junto. Toninho, preocupado com o que presenciava, tomava cada um em sua mão e ficou sem entender.

Foram pedir auxílio aos vizinhos, mas fechavam a porta quando se aproximavam e se enclausuraram dentro de casa, se afastando do problema, enquanto eles, sufocados, viam os animaizinhos indefesos necessitando cuidado. Toninho ligou para um amigo que o orientou, os animais estavam doentes e deveriam ficar em gaiola separada, e alguma distância. O médico avisou que pesquisaria os manuais para tentar descobrir o que enfraquecia os bichinhos.

Toninho e Lurdinha correram para comprar gaiola. E colocaram cada um em uma, mas eram tantos, tantos passarinhos, que Lurdinha ficou baratinada, vendo muitos morrerem à periferia, à margem da poça antes de socorridos. Josué largou o que fazia e aflito ajudou o filho e a nora, trançavam de fora para dentro do terreno, com agilidade, trazendo os que viviam. Mas quanto mais passarinhos acudiam, mais apareciam em desfalecimento. As gaiolas insuficientes, teriam de adquirir mais. Onde colocar em tão pouco espaço?

Josué ficou ansioso e com dificuldade de respirar ao ver tamanha confusão, e ao virar o corpo na cama, percebeu a narina bloqueada.


― Pior foi ver as portas dos vizinhos se fechando. A gente não acreditava. É difícil eu lembrar sonho, costumo dormir profundamente, mas esse...

― Pesadelo, Josué! ― Disse Bia, que escutava à mesa do café da manhã. ― Pesadelo, pandemia, pandemônio, assim estamos vivendo. Para onde vão os sonhos?

quinta-feira, 21 de maio de 2020

olhares


19/05/2020
       Tenho tentado desenhar palavra que soe amigável nestes tempos de tanta escrita em luto: vítimas do coronavírus intensificadas pela falta de responsabilidade governamental.
Não consigo retirar o olhar da verdade nua e crua que se dá a cada dia através de estatística, sem que não volte para as periferias, as áreas indígenas, ribeirinhas e quilombolas, enfim, para a localização geográfica onde vive a maioria do povo que sente na carne e no dia a dia, a difícil vida dos pobres e invisíveis.
A necessidade do distanciamento social forçada desde início de março de 2020 corrobora para o sentimento de tristeza do que ouço, vejo, sinto. As consequências mentais são claras para os que se responsabilizam o mínimo como sujeito e cidadão.
Eu quis fugir. Quis fugir alguns minutos pois corpo e mente estão doentes ao enxergar tanta desorientação, tanta esperteza e tantos egoísmos.
Levei o prato de janta para frente da TV numa fuga que descobri impossível, onde apenas em alguns momentos o lúdico esteve presente. Mas o lúdico seguiu questionando o que há.
São histórias de dois garotos pelo olhar próprio. O primeiro é branco. O segundo é preto.
O primeiro menino de seis anos. A cena inicia com ele conversando com o pai, sentados ao redor de uma pequena mesa, em voz muito baixa e tendo nesse pai a receptividade exigida da figura de referência. Esse pai bondoso respeita aquela criança e é vista como figura de autoridade e ao mesmo tempo, de amigo. O menino olha ao redor, o pequeno casebre, os objetos simples, olha a mãe de cima a baixo, roupas simples de camponesa, avental, sapatos caseiros, de costas para ele, preocupada com o alimento à beira do fogão a lenha e, fixa o olhar sobre um pote de vidro com água, na única estante de madeira ao longo da parede, logo atrás e acima da figura paterna, vislumbrando o reflexo de algo de tonalidade vermelha. O pai conversando com ele baixinho diz, esse segredo ficará apenas entre nós, pode me contar o que você quiser, como foi ontem na escola? O menino mudo. O menino escuta a mãe dizendo que é hora da escola. Ele levanta, coloca a pequena mochila às costas e segue sozinho por estrada enlameada escolhendo caminho. Na escola, os alunos em fileiras e carteiras duplas fazem silêncio ao pedido do professor. O menino olha para fora da janela e o verde toma conta da paisagem, com galhos querendo agarrar-se aos vidros e telhado. Escuta a ordem do professor para que leia o parágrafo. Folheia o livro e inicia leitura com dificuldade, repetindo os fonemas por três, quatro vezes, gaguejando até a formação da palavra sem conseguir formar frase. A classe em risos zombeteiros e o professor repreende. O professor diz que não é a página correta e pede que encaminhe para a folha certa. Após folhear até a indicativa, o professor pede que prossiga e o menino começa a gaguejar uma única sílaba sem conseguir prosseguir. O professor agradece e reprime as novas risadas, solicitando que outro colega leia.
Ao chegar em casa, o pai chama o filho para passearem na mata, próxima a um rio. No caminho o pai sente-se mal e cai. O menino vê o pai desacordado, corre até o rio. Entre a ramagem um lindo cervo jovem e os dois se olham, ele se agacha e quando volta a olhar o animal desapareceu. Caminha até o pai e espalha água sobre o rosto dele. O pai desconversa, diz que foi apenas mal estar.  Em casa à noite, ao redor da mesa, o pai e o menino, a mãe envolta às tarefas domésticas. O copo de leite cheio e a mãe dizendo, tome seu leite. O menino resiste, o pai pega e engole rapidamente. O menino sorri. A mãe volta a cabeça, vê o copo vazio e diz que é hora de dormir. O pai leva o garoto até a cama.
Pela manhã o menino passeia pela oficina de marcenaria do pai, pegando alguns objetos. Providencia o pequeno fumigador e coloca material com fumaça dentro e tampa, recolhe balde, ferramentas e corda. Num relance observa o lindo barquinho feito em madeira numa das estantes. Sobe com ajuda de cadeira e toca no objeto com carinho e o repõe, após o pai chamar seu nome. Acompanha o pai e durante o caminho vai perguntando por que cada vez ele vai mais longe colher mel. O pai diz que as abelhas estão desaparecendo e não sabe o motivo, falta flores. Olha o pai subindo na árvore onde tem uma colmeia. Envia o fumigador através de corda. Observa as abelhas em volta do pai sem proteção alguma e que graças à fumaça vai retirando delicadamente o favo. Em seguida o menino sobe com o balde onde é depositado o trabalho do dia. Uma única abelha zonza chega até o menino.
Na escola o professor entrega as notas de prova e coloca em alguns uma estrelinha. Após a leitura usual o professor passa em cada carteira verificando o Para Casa. Antes de chegar à mesa do menino, ele troca de caderno com o colega do lado. A criança observa tímida, sem queixa, e vê o professor ralhar com ele sobre as tarefas em branco. O menino volta para casa apreciando a paisagem. Quando chega vai direto à oficina do pai e não vê o barquinho. Começa a chutar o chão. À noite, o menino diz ao pai que não viu mais o barquinho. O pai apenas confirma. Enquanto estão à mesa, o pai oferece uma maçã e pede que ele a reparta ao meio, oferecendo a faca. Após corte com dificuldade, o menino dá metade ao pai. Na noite, o pai conversando com a mãe diz que terá de viajar para mais longe para encontrar colmeias e que demorará dois dias.
Ao acordar o menino corre até a oficina do pai e não o encontra. A mãe fala que o pai precisou se ausentar por dois dias. O menino vai para o quarto, amuado, e se depara com o lindo barquinho a velas bem acima da aresta da janela. Sobe na cama e recolhe o brinquedo, olha e alisa carinhosamente.
Na escola, ao perceber que a cadeira ao lado está vazia se sentiu amedrontado. O professor solicitou as leituras diárias. O menino após a aula visita o colega, que está acamado e dormindo. Abre a mochila e retira o barquinho a velas, reconhecendo que o amigo merece mais que o simples barquinho dado por seu pai àquele amigo. Nesses dois dias, a mãe mais próxima, o colocou no colo, perguntou o que ele quer ser quando crescer, em seguida contou o que ela queria quando criança.
Passados os dois dias e sem o retorno do marido, a mulher ao ver amigos de trabalho pergunta se têm notícia e respondem que nada sabem. Ela leva o menino para ficar com a avó e sai à procura do marido. Não o encontra no local definido. Desiste, mas antes de irem leva o menino a uma festa típica. O menino se perde na multidão e a mãe sai perguntando, até que ele, após olhar a festa e deixar-se conduzir ao que lhe interessava é encontrado na roda de dança típica em Istambul.
Chegando em casa a mãe recebe a notícia que o marido sofreu acidente e por estar sozinho não sobreviveu. O olhar do menino sobre a mãe. O copo de leite sempre rejeitado logo é esvaziado, e nem assim a mulher percebeu. A mãe pede que vá para a escola. O professor pede leitura e consegue ler duas palavras gaguejantes, e o mestre coloca uma estrelinha na blusa com colegas dessa vez sem risadas. Retorna pela estrada. Em casa, as visitas, a avó, o choro da mãe, o abraço que lhe dão. Sai para caminhar a procura do pai e adormece na mata, apenas acordando pela manhã.

O segundo menino tem dez. Até essa idade ele tem bom pai e mãe presentes e que educam com carinho. A aldeia em que vivem entra em derrocada por guerra civil, o que destrói lares de civis que mesmo não envolvidos, perdem a vida sem propósito. Às balas são recebidas as pessoas, elas tentam a seu jeito sair da confusão preservando o mais precioso, a família, em vão. Somente a mãe do menino consegue fugir com a bebê sendo extorquido do pai todo o dinheiro que possuía para a viagem. O menino vê o pai e o irmão mortos e foge sem olhar para trás, caminhando na floresta, sem nunca ter sabido sobreviver na selva e o que comer. Encontrado por grupo guerrilheiro que por todo o lado existe. Nesse grupo, as crianças são treinadas para matar sem questionar. Treinados por comandos obcecados e palavras de ordem sem qualquer reflexão crítica, o menino pratica a violência ensinada. O menino é seviciado pelo chefe do grupo e encontra consolo no ombro amigo de outra criança que passa por isso constantemente. Eles vão de aldeia em aldeia, matando, destruindo e queimando. Até que chegam ao encontro de um político que usou aquela força mercenária para conquistar territórios de interesse, em conluio com vieses provocados para desestabilizar nações e saquear riquezas naturais. Mas o chefe do bando decepcionado por não ter alcançado o status almejado, não aceita continuar se não for por altos ganhos financeiros ou poder. O bando retorna à selva e agora, sem apoio do comando, não têm munição, comida, segurança. As crianças, então, decidem largar o chefe e chegam ao local onde são recolhidas as crianças perdidas, visando a volta à dignidade. Quando a mulher pergunta ao menino o que se passou, ele diz que se contasse, ela nunca mais o veria com o olhar de esperança, pois praticou o impensável, foi como a besta sem domínio de si. Ali estava o adulto no corpo de uma criança. Mas, no fim de tarde, ao ver garotos correndo para a praia em algazarra, ele decide e corre para as águas. Em algum lugar da África.
Desliguei a TV com a noite entrando a madrugada. Dois filmes, Um doce olhar, de 2010, do diretor Semih Kaplanoglu e Beasts of no nation, de 2015, baseado no livro do escritor nigeriano Uzodinma Iweala, do diretor Cary Fukunaga, filmado em Gana. 

         Olhares sob tantos ângulos.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

não se perca na multidão - 60 dias em foco (CENA 15)


03/05/2020
Em três de março Bia se lembrava da noite estrelada da pequena comemoração. Ela, pele morena de origem cafuza, mignon, cabelos pretos encaracolados nas pontas, trajava pantalona rendada branca e transparente com camiseta azul ao estilo praiano e chinelo rasteirinha. Josué, mediano, magro e musculoso, mais sóbrio, com fios de cabelo branco às orelhas que parecem maior que o comum, nariz adunco do tipo grego, com camiseta branca de manga e bermuda bege que davam tom a pele parda e sapatilha creme.
            Chegaram ao bar detrás do matagal. Bia notou diferença. O local sempre cheio, com cerveja e chope variados, apenas três a quatro casais sentados espaçadamente.
            ― O coronavírus chegou aqui, Bia comentou.
            ― Tem... mesa mais distante ali, vamos? Josué falou.
            Sentaram-se e Josué foi buscar o chope. Bia pediu o escuro e pasteizinhos para acompanhar. Pronto, fim de noite completo. A conversa girava em torno das mudanças que iam se tornando a cada dia mais restritivas.
            ― Mesmo assim em oito de março vou a manifestação das mulheres. Todas da comunidade vão. Não quero saber de corona.
            ― Arriscado. Vocês deveriam pensar bem.
            ― Vale o risco. E a pescaria, como vão fazer?
            ― O que os pobres podem fazer? Trabalhar é única solução, a gente pesca hoje a comida de amanhã, não tem escolha.
            Às vezes o assunto morria. Cada um na sua ilha. Bia observou que a conversa não fluía, continuava a falta inexplicável. Josué preferindo guardar a si. Bia respeitando e não abrindo novas discussões.

            Quando Bia chegou à praça, olhou ao redor. Cadê as mulheres, não vejo ninguém, terá manifestação? Deveria ter ligado pra elas. Contornou por dentro da praça. Os mendigos na prosa. O homem em pé no banco lia trecho da Bíblia “Confessai as vossas culpas uns aos outros e orai uns pelos outros, para que sareis; a oração feita por um justo pode muito em seus efeitos” em seguida disse, ouçam as palavras do Senhor! Mocinhas e rapazes de olho no celular se divertiam ao lado, será que vieram para a manifestação? Passou próxima da barraca de garapa, hum, garapa com limão. Barracas com artesania como panos de prato, crochês, sabonetes naturais etc atraiam. O casal hippie expunha as bijuterias ao chão. O trânsito normal para início de tarde. Começava perder esperança, quando viu o grupo de mulheres amontoadas no princípio da praça. Aproximou-se, escutou que o evento era complemento do Dia Internacional da Mulher. Palestra com lideranças negras, lésbicas, acima do peso, todas objeto de preconceito e discutiam o papel da mulher e o que fazer nessa cultura do patriarcado existente. Bia prestava atenção aos comandos e às falas críticas pelo empoderamento. Mulheres e homens a favor da causa, jovens engajados e na distribuição de panfletos, bandeiras, palavras de ordem, e logo avistou as amigas.

            ― Como foi a passeata? Josué perguntou.
            ― Foi incrível, e diferente. Pouco aparato policial dessa vez. A polícia se distanciou do corona. Quanto a nós, sequer alguém tocou no assunto.

            Em dezessete de março, ao sair da consulta médica Bia seguiu para o terminal de ônibus. O ônibus abarrotado de mulheres e homens trabalhadores, muitos em pé. Bia alcançou assento e cautelosa não abriu a boca, o que ocorria com outros passageiros. Ao entrar uma senhora idosa o trocador do ônibus abriu a boca exigindo lugar. Um senhor ofereceu, pois moça e rapaz próximos estavam vidrados no celular. A mulher ao lado de Bia prestou atenção ao acontecido e olhou para Bia, que balançou a cabeça. Alguns minutos do trajeto, Bia sentiu a garganta formigar, arranhar, e vontade de tossir, o que as pessoas vão pensar, aflita buscou a garrafa na sacola. Será sintoma de corona? Enquanto bebia água, ouviu o filho falando, vem de Uber, não fosse teimosa. Relembrou também a fala do presidente “não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, não, tá ok” e se o presidente não estava preocupado com a população... Mas chegou em casa. Após beijar o marido lembrou que talvez tivesse contraído o vírus, e contou o ocorrido. Josué comentou que estava exagerando, também não é assim, não.
            ― Claro que pode ser assim sim. Muitas pessoas estão infectadas e assintomáticas saem por aí distribuindo perdigotos.
            ― “Perdi” o quê? Não conheço essa palavra.
        Olhei ao dicionário após ler um artigo de infectologista. 
              Estranho, parece coisa de cachorro...
            ― Não é perdigueiro, não. Perdigoto. Gotas expelidas quando se fala ou tosse e se espalham a uma distância que pode contaminar caso tenha o vírus.
            ― Mãe, para de sair de casa, você está quase quarentona e chegando ao grupo de risco. ― Toninho ria irônico. ― Falando sério, mãe, tem de ficar em casa.
            ― Ah é, quem vai por comida na mesa se eu não lavar as roupas das madames, não fazer as faxinas lá do outro lado do matagal? pouco dinheiro, mas sem ele fica mais difícil ainda. O perigo é para quem tem mais de sessenta.
            ― O risco aumenta para esse grupo e outros que tem doença crônica, pois a imunidade é baixa. Mas todos corremos risco, mãe, e a gente come mal, sem grana para alimentos essenciais. Pobre vai morrer mais que rico, você vai ver. Vai, mãe, conversa com as patroas, você não pode sair de casa, muitos aconselhando isso. Não escuta o presidente que você vai acabar em hospital lotado, sem respirador e ou até num caixão. Toma cuidado!
            ― Sei não se elas vão me escutar. Esse povo é mais pão duro que nós, pobres, chegam a ser avarentos e idolatram dinheiro. Zildinha tem sorte com a patroa que pediu para ela ficar em casa sem retirar salário. Ontem mesmo, conversei com Luiz jardineiro e me disse que gostaria de permanecer em casa para proteger a família, mas os patrões falaram “os jardins estão abatidos, precisando de cuidados”. É uma pobreza de espírito.  Aqui na comunidade é diferente, mesmo esses que votaram no homem tão aí auxiliando na distribuição de comida para quem está desempregado. Pena é a solidariedade se dar apenas em tais momentos.
          ― O governador daqui pediu o isolamento, mas até agora ninguém obedeceu e já existe transmissão comunitária.
         ― Mas Josué, a gente mora numa casinha sem a distância exigida, imagina então nossa comunidade com seus casebres e seus montes de filhos. Já pensou na Penha, coitada, aguentar Tinoco, violento como ele é dentro de casa, como ela e as crianças vão se defender daquele bruto?
            ― Mãe, fala com ela pra bolar um código de aviso que a gente corre lá para acudir. E as pessoas daqui vão se comunicar no grupo, avisar dos que precisam de alimento ou remédio e não tem condição de comprar. Mãe, você que me pediu para abrir o grupo da comunidade!
        ― Esqueci, Toninho, minha cabeça tá zonza, tenho de cuidar de tanta coisa. Josué dá seu jeito de contribuir, viu!
          ― Vou conversar com os pescadores e prover peixes para as famílias. A gente vai ficar sem pescar por quinze dias por causa do decreto, mas depois voltaremos a lida, não tem jeito. Toninho, talvez a associação te dispense, é muito pescador para pouca grana.
― E o governo não faz nada, fica aí pensando só na economia com seu ministro cego de dois olhos. A cada dia aumenta o número de desempregados, de pessoas com fome, sem água em casa para higiene básica, sem dinheiro. O governo propôs duzentos reais de ajuda e o congresso aprovou seiscentos, cruz credo a falta de visão desses legisladores, o valor não condiz com necessidades. Para o trabalhador é difícil justiça. Bancos e grandes empresários conseguiram ajuda rapidinho com dinheiro público. O trabalhador vai pagar a conta da pandemia, pode apostar. Todos sabem que já pagamos a dívida que está aí muitas vezes, e não fazem auditoria nem a porrete, e já vem outra.  Ando desesperado, o cenário mostra que o povo vai sofrer muito ainda.

           Dali em diante, Toninho ficara responsável por compras no mercadinho e com máscara e luvas, entrava uma pessoa de vez, pelo menos não existia falta de produtos, vindos dos produtores locais, o que não era o caso nas grandes cidades com prateleiras vazias rapidamente. A falta de álcool gel e máscara logo se fez notar. A vizinhança ficou calma sem trânsito de pessoas, carros, motos. O céu amanhecia claro e brilhoso e nada de chuva.

  Em vinte e dois de março o presidente ainda negacionista, disse que o povo ia ver que ele tem razão, errados são governadores e mídia que insistem no isolamento. Os dias pareciam os mesmos, a noção do tempo prejudicada com as pessoas enfurnadas em casa. Mortos chegavam aos mais de mil e duzentos, na maioria pobres, mulheres, negros, e a periferia e povos originários sentindo falta de atendimento básico de saúde. O presidente dizendo que depois de quarenta dias a curva estava abaixando, e ao ser perguntado, falou que pessoas iam morrer sim, o que ele podia fazer, não é coveiro, não faz milagre e não quer saber... e daí? E daí que mais de cinco mil pessoas perderam a vida até vinte e oito de abril. E daí que a maioria das pessoas ainda não recebeu ajuda. Quando o governo vai se responsabilizar por sua obrigação?

             ― Que você está escutando, Toninho?
        ― Análises mãe, estamos nos aproximando dos Estados Unidos na catástrofe de infectados e mortos e os governantes de lá e de cá dançando o samba maluco das fake news.
            ― Você já pensou filho, o que pretende após a crise do corona? E você Josué, qual seu sonho?

            ― Eu tenho é pesadelo a noite, vejo amigos indo embora, eu correndo de um monte de agressores com aparência do coronavírus e caindo dentro de um buraco, em pânico, às vezes chorando. O que consigo sonhar quando isso passar é reunir os homens, e discutir nossas atitudes para mudar a vida da comunidade e não ficar dependente de governo, que vem um após o outro com a lengalenga de sempre e não pensam a nação. Você por acaso sonha?

            ― Lembrei da dona Maricota que a filha chegou em pânico, com crise de ansiedade e correu para os braços da mãe. Quanto ao sonho, sabe que eu, você sabe, as mulheres põem a mão na massa e continuam adiante. Não imagino neste momento um sonho individual, pra mim é difícil, o mês fechou, não vi cores de abril, mas a poesia, a música nos salva, nesses pequenos momentos evitam o mal. Às vezes, debruço na janela e Cecília Meireles me diz “... quando falo dessas pequenas felicidades certas, ... uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.” Cecília me salva. Penso é no coletivo, e enquanto viver vou buscar ampliar a rede solidária. Você me pergunta em relação ao nosso casamento? se a pergunta é esta, vou aproveitar a nossa pequena estabilidade emocional para que a família não se perca na multidão. O futuro é agora, e você, Toninho?

          ― Nem dá pra sonhar, precisamos de pés bem plantados no chão, hoje, três de maio, subimos para mais de cento e um mil casos e mais de sete mil mortes subnotificadas.  O Brasil está flexibilizando no momento em que crescem números. Isso é loucura! Enfim, nós temos que olhar os nossos, buscar a união das comunidades, ainda bem que Lurdinha está na luta comigo. ― Toninho ouve o som do celular ― Mãe, estão preparando cestas básicas para algumas famílias e perguntam se a gente contribui?