03/05/2020
Em
três de março Bia se lembrava da noite estrelada da pequena comemoração. Ela,
pele morena de origem cafuza, mignon, cabelos pretos encaracolados nas pontas, trajava
pantalona rendada branca e transparente com camiseta azul ao estilo praiano e
chinelo rasteirinha. Josué, mediano, magro e musculoso, mais sóbrio, com fios
de cabelo branco às orelhas que parecem maior que o comum, nariz adunco do tipo
grego, com camiseta branca de manga e bermuda bege que davam tom a pele parda
e sapatilha creme.
Chegaram ao bar detrás do matagal. Bia notou diferença. O local sempre cheio, com cerveja e chope
variados, apenas três a quatro casais sentados espaçadamente.
― O coronavírus chegou aqui, Bia comentou.
― Tem... mesa mais distante ali,
vamos? Josué falou.
Sentaram-se e Josué foi buscar o
chope. Bia pediu o escuro e pasteizinhos para acompanhar. Pronto, fim de noite
completo. A conversa girava em torno das mudanças que iam se tornando a cada
dia mais restritivas.
― Mesmo assim em oito de março vou a
manifestação das mulheres. Todas da comunidade vão. Não quero saber de corona.
― Arriscado. Vocês deveriam pensar bem.
― Vale o risco. E a pescaria, como
vão fazer?
― O que os pobres podem fazer?
Trabalhar é única solução, a gente pesca hoje a comida de amanhã, não tem
escolha.
Às vezes o assunto morria. Cada um na
sua ilha. Bia observou que a conversa não fluía, continuava a falta
inexplicável. Josué preferindo guardar a si. Bia respeitando e não abrindo novas
discussões.
Quando Bia chegou à praça, olhou ao
redor. Cadê as mulheres, não vejo ninguém, terá manifestação? Deveria ter
ligado pra elas. Contornou por dentro da
praça. Os mendigos na prosa. O homem em pé no banco lia trecho da Bíblia “Confessai as vossas culpas uns aos outros e
orai uns pelos outros, para que sareis; a oração feita por um justo pode muito
em seus efeitos” em seguida disse, ouçam as palavras do Senhor! Mocinhas e
rapazes de olho no celular se divertiam ao lado, será que vieram para a manifestação? Passou próxima da barraca de garapa, hum, garapa com limão. Barracas
com artesania como panos de prato, crochês, sabonetes naturais etc atraiam. O casal
hippie expunha as bijuterias ao chão. O trânsito normal para início de tarde.
Começava perder esperança, quando viu o grupo de mulheres amontoadas no
princípio da praça. Aproximou-se, escutou que o evento era complemento do Dia
Internacional da Mulher. Palestra com lideranças negras, lésbicas, acima do
peso, todas objeto de preconceito e discutiam o papel da mulher e o que fazer nessa
cultura do patriarcado existente. Bia prestava atenção aos comandos e às falas
críticas pelo empoderamento. Mulheres e homens a favor da causa, jovens
engajados e na distribuição de panfletos, bandeiras, palavras de ordem, e logo avistou
as amigas.
― Como foi a passeata? Josué
perguntou.
― Foi incrível, e diferente. Pouco
aparato policial dessa vez. A polícia se distanciou do corona. Quanto a nós,
sequer alguém tocou no assunto.
Em dezessete de março, ao sair da
consulta médica Bia seguiu para o terminal de ônibus. O ônibus abarrotado de
mulheres e homens trabalhadores, muitos em pé. Bia alcançou assento e cautelosa não abriu a boca, o que ocorria com outros passageiros. Ao
entrar uma senhora idosa o trocador do ônibus abriu a boca exigindo lugar. Um
senhor ofereceu, pois moça e rapaz próximos estavam vidrados no celular. A
mulher ao lado de Bia prestou atenção ao acontecido e olhou para Bia, que balançou
a cabeça. Alguns minutos do trajeto, Bia sentiu a garganta formigar, arranhar, e
vontade de tossir, o que as pessoas vão pensar, aflita buscou a garrafa na
sacola. Será sintoma de corona? Enquanto bebia água, ouviu o filho falando, vem
de Uber, não fosse teimosa. Relembrou também a fala do presidente “não vai ser
uma gripezinha que vai me derrubar, não, tá ok” e se o presidente não estava
preocupado com a população... Mas chegou em casa. Após beijar o marido lembrou
que talvez tivesse contraído o vírus, e contou o ocorrido. Josué comentou que
estava exagerando, também não é assim, não.
― Claro que pode ser assim sim. Muitas
pessoas estão infectadas e assintomáticas saem por aí distribuindo
perdigotos.
― “Perdi” o quê? Não conheço essa
palavra.
― Olhei ao
dicionário após ler um artigo de infectologista.
― Estranho, parece coisa de cachorro...
― Não é perdigueiro, não. Perdigoto.
Gotas expelidas quando se fala ou tosse e se espalham a uma distância que pode
contaminar caso tenha o vírus.
― Mãe, para de sair de casa, você
está quase quarentona e chegando ao grupo de risco. ― Toninho ria irônico. ―
Falando sério, mãe, tem de ficar em casa.
― Ah é, quem vai por comida na mesa
se eu não lavar as roupas das madames, não fazer as faxinas lá do outro lado do
matagal? pouco dinheiro, mas sem ele fica mais difícil ainda. O perigo é para
quem tem mais de sessenta.
― O risco aumenta para esse grupo e
outros que tem doença crônica, pois a imunidade é baixa. Mas todos corremos
risco, mãe, e a gente come mal, sem grana para alimentos essenciais.
Pobre vai morrer mais que rico, você vai ver. Vai, mãe, conversa com as patroas,
você não pode sair de casa, muitos aconselhando isso. Não escuta o presidente
que você vai acabar em hospital lotado, sem respirador e ou até num caixão.
Toma cuidado!
― Sei não se elas vão me escutar. Esse
povo é mais pão duro que nós, pobres, chegam a ser avarentos e idolatram
dinheiro. Zildinha tem sorte com a patroa que pediu para ela ficar em casa sem retirar salário.
Ontem mesmo, conversei com Luiz jardineiro e me disse que gostaria de
permanecer em casa para proteger a família, mas os patrões falaram “os jardins
estão abatidos, precisando de cuidados”. É uma pobreza de espírito. Aqui na comunidade é diferente, mesmo esses
que votaram no homem tão aí auxiliando na distribuição de comida para quem
está desempregado. Pena é a solidariedade se dar apenas em tais momentos.
― O governador daqui pediu o
isolamento, mas até agora ninguém obedeceu e já existe transmissão comunitária.
― Mas Josué, a gente mora numa casinha
sem a distância exigida, imagina então nossa comunidade com seus casebres e seus
montes de filhos. Já pensou na Penha, coitada, aguentar Tinoco, violento como
ele é dentro de casa, como ela e as crianças vão se defender daquele bruto?
― Mãe, fala com ela pra bolar um
código de aviso que a gente corre lá para acudir. E as pessoas daqui vão se
comunicar no grupo, avisar dos que precisam de alimento ou remédio e não tem
condição de comprar. Mãe, você que me pediu para abrir o grupo da comunidade!
― Esqueci, Toninho, minha cabeça tá
zonza, tenho de cuidar de tanta coisa. Josué dá seu jeito de contribuir, viu!
― Vou conversar com os pescadores e
prover peixes para as famílias. A gente vai ficar sem pescar por quinze dias por
causa do decreto, mas depois voltaremos a lida, não tem jeito. Toninho, talvez
a associação te dispense, é muito pescador para pouca grana.
―
E o governo não faz nada, fica aí pensando só na economia com seu ministro cego
de dois olhos. A cada dia aumenta o número de desempregados, de pessoas com
fome, sem água em casa para higiene básica, sem dinheiro. O governo propôs
duzentos reais de ajuda e o congresso aprovou seiscentos, cruz credo a falta de
visão desses legisladores, o valor não condiz com necessidades. Para o
trabalhador é difícil justiça. Bancos e grandes empresários conseguiram ajuda rapidinho
com dinheiro público. O trabalhador vai pagar a conta da pandemia, pode
apostar. Todos sabem que já pagamos a dívida que está aí muitas vezes, e não
fazem auditoria nem a porrete, e já vem outra. Ando desesperado, o cenário mostra que o povo
vai sofrer muito ainda.
Dali em diante, Toninho ficara
responsável por compras no mercadinho e com máscara e luvas, entrava uma
pessoa de vez, pelo menos não existia falta de
produtos, vindos dos produtores locais, o que não era o caso nas
grandes cidades com prateleiras vazias rapidamente. A falta de álcool gel e
máscara logo se fez notar. A vizinhança ficou calma sem trânsito de pessoas,
carros, motos. O céu amanhecia claro e brilhoso e nada de chuva.
Em
vinte e dois de março o presidente ainda negacionista, disse que o povo ia
ver que ele tem razão, errados são governadores e mídia que insistem no
isolamento. Os dias pareciam os mesmos, a noção do tempo prejudicada com as
pessoas enfurnadas em casa. Mortos chegavam aos mais de mil e duzentos, na maioria
pobres, mulheres, negros, e a periferia e povos originários sentindo falta de
atendimento básico de saúde. O
presidente dizendo que depois de quarenta dias a curva estava abaixando, e ao ser
perguntado, falou que pessoas iam morrer sim, o que ele podia fazer, não é
coveiro, não faz milagre e não quer saber... e daí? E daí que mais de cinco mil
pessoas perderam a vida até vinte e oito de abril. E daí que a maioria das
pessoas ainda não recebeu ajuda. Quando o governo vai se responsabilizar por
sua obrigação?
― Que você está escutando, Toninho?
― Análises mãe, estamos nos
aproximando dos Estados Unidos na catástrofe de infectados e mortos e os
governantes de lá e de cá dançando o samba maluco das fake
news.
― Você já pensou filho, o que
pretende após a crise do corona? E você Josué, qual seu sonho?
― Eu tenho é pesadelo a noite, vejo
amigos indo embora, eu correndo de um monte de agressores com aparência do
coronavírus e caindo dentro de um buraco, em pânico, às vezes chorando. O que
consigo sonhar quando isso passar é reunir os homens, e discutir nossas
atitudes para mudar a vida da comunidade e não ficar dependente de governo, que
vem um após o outro com a lengalenga de sempre e não pensam a nação. Você por acaso
sonha?
― Lembrei da dona Maricota
que a filha chegou em pânico, com crise de ansiedade e correu para os braços
da mãe. Quanto ao sonho, sabe que eu, você sabe, as mulheres põem a mão na
massa e continuam adiante. Não imagino neste momento um sonho individual, pra
mim é difícil, o mês fechou, não vi cores de abril, mas a poesia, a música
nos salva, nesses pequenos momentos evitam o mal. Às vezes, debruço na janela
e Cecília Meireles me diz “... quando falo dessas pequenas felicidades certas, ... uns dizem que essas coisas
não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.”
Cecília me salva. Penso é no coletivo, e enquanto viver vou buscar ampliar a
rede solidária. Você me pergunta em relação ao nosso casamento? se a pergunta é
esta, vou aproveitar a nossa pequena estabilidade emocional para que a família
não se perca na multidão. O futuro é agora, e você, Toninho?
― Nem dá pra sonhar, precisamos de
pés bem plantados no chão, hoje, três de maio, subimos para mais de
cento e um mil casos e mais de sete mil mortes subnotificadas. O Brasil está flexibilizando no momento em que
crescem números. Isso é loucura! Enfim, nós temos que olhar os nossos, buscar
a união das comunidades, ainda bem que Lurdinha está na luta comigo. ― Toninho
ouve o som do celular ― Mãe, estão preparando cestas básicas para algumas
famílias e perguntam se a gente contribui?