19/05/2020
Tenho tentado desenhar palavra que
soe amigável nestes tempos de tanta escrita em luto: vítimas do coronavírus
intensificadas pela falta de responsabilidade governamental.
Não
consigo retirar o olhar da verdade nua e crua que se dá a cada dia através de
estatística, sem que não volte para as periferias, as áreas indígenas, ribeirinhas e
quilombolas, enfim, para a localização geográfica onde vive a maioria do povo
que sente na carne e no dia a dia, a difícil vida dos pobres e invisíveis.
A
necessidade do distanciamento social forçada desde início de março de 2020
corrobora para o sentimento de tristeza do que ouço, vejo, sinto. As
consequências mentais são claras para os que se responsabilizam o mínimo como
sujeito e cidadão.
Eu
quis fugir. Quis fugir alguns minutos pois corpo e mente estão doentes ao
enxergar tanta desorientação, tanta esperteza e tantos egoísmos.
Levei
o prato de janta para frente da TV numa fuga que descobri impossível, onde
apenas em alguns momentos o lúdico esteve presente. Mas o lúdico seguiu
questionando o que há.
São
histórias de dois garotos pelo olhar próprio. O primeiro é branco. O segundo é preto.
O primeiro menino
de seis anos. A cena inicia com ele conversando com o pai, sentados ao redor de
uma pequena mesa, em voz muito baixa e tendo nesse pai a receptividade exigida
da figura de referência. Esse pai bondoso respeita aquela criança e é vista
como figura de autoridade e ao mesmo tempo, de amigo. O menino olha ao redor, o
pequeno casebre, os objetos simples, olha a mãe de cima a baixo, roupas simples
de camponesa, avental, sapatos caseiros, de costas para ele, preocupada com o
alimento à beira do fogão a lenha e, fixa o olhar sobre um pote de vidro com
água, na única estante de madeira ao longo da parede, logo atrás e acima da
figura paterna, vislumbrando o reflexo de algo de tonalidade vermelha. O pai
conversando com ele baixinho diz, esse segredo ficará apenas entre nós,
pode me contar o que você quiser, como foi ontem na escola? O menino mudo. O
menino escuta a mãe dizendo que é hora da escola. Ele levanta, coloca a pequena
mochila às costas e segue sozinho por estrada enlameada escolhendo caminho. Na
escola, os alunos em fileiras e carteiras duplas fazem silêncio ao pedido do
professor. O menino olha para fora da janela e o verde toma conta da paisagem,
com galhos querendo agarrar-se aos vidros e telhado. Escuta a ordem do
professor para que leia o parágrafo. Folheia o livro e inicia leitura com
dificuldade, repetindo os fonemas por três, quatro vezes, gaguejando até a
formação da palavra sem conseguir formar frase. A classe em risos zombeteiros e
o professor repreende. O professor diz que não é a
página correta e pede que encaminhe para a folha certa. Após folhear até a
indicativa, o professor pede que prossiga e o menino começa a gaguejar uma
única sílaba sem conseguir prosseguir. O professor agradece e reprime
as novas risadas, solicitando que outro colega leia.
Ao
chegar em casa, o pai chama o filho para passearem na mata, próxima a um rio.
No caminho o pai sente-se mal e cai. O menino vê o pai desacordado, corre até o
rio. Entre a ramagem um lindo cervo jovem e os dois se olham, ele se agacha e
quando volta a olhar o animal desapareceu. Caminha até o pai e espalha água
sobre o rosto dele. O pai desconversa, diz que foi apenas mal estar. Em casa à noite, ao redor da mesa, o pai e o
menino, a mãe envolta às tarefas domésticas. O copo de leite cheio e a mãe
dizendo, tome seu leite. O menino resiste, o pai pega e engole rapidamente. O
menino sorri. A mãe volta a cabeça, vê o copo vazio e diz que é hora de dormir.
O pai leva o garoto até a cama.
Pela
manhã o menino passeia pela oficina de marcenaria do pai, pegando alguns
objetos. Providencia o pequeno fumigador e coloca material com fumaça dentro e tampa, recolhe balde, ferramentas e corda. Num relance observa o lindo
barquinho feito em madeira numa das estantes. Sobe com ajuda de cadeira e toca
no objeto com carinho e o repõe, após o pai chamar seu nome.
Acompanha o pai e durante o caminho vai perguntando por que cada vez ele vai
mais longe colher mel. O pai diz que as abelhas estão desaparecendo e não sabe
o motivo, falta flores. Olha o pai subindo na árvore onde tem uma colmeia.
Envia o fumigador através de corda. Observa as abelhas em volta do pai sem
proteção alguma e que graças à fumaça vai retirando delicadamente o favo. Em
seguida o menino sobe com o balde onde é depositado o trabalho do dia. Uma
única abelha zonza chega até o menino.
Na
escola o professor entrega as notas de prova e coloca em alguns uma estrelinha.
Após a leitura usual o professor passa em cada carteira verificando o Para
Casa. Antes de chegar à mesa do menino, ele troca de caderno com o colega do
lado. A criança observa tímida, sem queixa, e vê o professor ralhar com ele
sobre as tarefas em branco. O menino volta para casa apreciando a paisagem.
Quando chega vai direto à oficina do pai e não vê o barquinho.
Começa a chutar o chão. À noite, o menino diz ao pai que não viu mais o barquinho. O pai apenas confirma. Enquanto estão à mesa,
o pai oferece uma maçã e pede que ele a reparta ao meio, oferecendo a
faca. Após corte com dificuldade, o menino dá metade ao pai. Na noite, o pai
conversando com a mãe diz que terá de viajar para mais longe para encontrar
colmeias e que demorará dois dias.
Ao
acordar o menino corre até a oficina do pai e não o encontra. A mãe fala que o
pai precisou se ausentar por dois dias. O menino vai para o quarto, amuado, e
se depara com o lindo barquinho a velas bem acima da aresta da janela. Sobe na
cama e recolhe o brinquedo, olha e alisa carinhosamente.
Na
escola, ao perceber que a cadeira ao lado está vazia se sentiu amedrontado. O
professor solicitou as leituras diárias. O menino após a aula visita o colega,
que está acamado e dormindo. Abre a mochila e retira o barquinho a velas,
reconhecendo que o amigo merece mais que o simples barquinho dado por seu
pai àquele amigo. Nesses dois dias, a mãe mais próxima, o colocou no colo,
perguntou o que ele quer ser quando crescer, em seguida contou o que ela queria
quando criança.
Passados
os dois dias e sem o retorno do marido, a mulher ao ver amigos de trabalho pergunta
se têm notícia e respondem que nada sabem. Ela leva o menino para ficar com a
avó e sai à procura do marido. Não o encontra no local definido. Desiste, mas antes
de irem leva o menino a uma festa típica. O menino se perde na multidão e a mãe
sai perguntando, até que ele, após olhar a festa e deixar-se conduzir ao que
lhe interessava é encontrado na roda de dança típica em Istambul.
Chegando
em casa a mãe recebe a notícia que o marido sofreu acidente e por estar sozinho
não sobreviveu. O olhar do menino sobre a mãe. O copo de leite sempre rejeitado logo é esvaziado, e nem assim a mulher percebeu. A mãe pede que vá para a escola. O professor pede leitura e consegue ler duas palavras gaguejantes, e o mestre coloca uma estrelinha na blusa com colegas dessa vez sem risadas. Retorna pela estrada. Em casa, as visitas, a avó, o choro
da mãe, o abraço que lhe dão. Sai para caminhar a procura do pai e adormece na
mata, apenas acordando pela manhã.
O segundo menino tem dez. Até essa
idade ele tem bom pai e mãe presentes e que educam com carinho. A aldeia em que
vivem entra em derrocada por guerra civil, o que destrói lares de civis que
mesmo não envolvidos, perdem a vida sem propósito. Às balas são recebidas as
pessoas, elas tentam a seu jeito sair da confusão preservando o mais precioso,
a família, em vão. Somente a mãe do menino consegue fugir com a bebê sendo extorquido
do pai todo o dinheiro que possuía para a viagem. O menino vê o pai e o irmão
mortos e foge sem olhar para trás, caminhando na floresta, sem nunca ter
sabido sobreviver na selva e o que comer. Encontrado por grupo guerrilheiro que
por todo o lado existe. Nesse grupo, as crianças são treinadas para
matar sem questionar. Treinados por comandos obcecados e palavras de ordem sem
qualquer reflexão crítica, o menino pratica a violência ensinada. O menino é
seviciado pelo chefe do grupo e encontra consolo no ombro amigo de outra
criança que passa por isso constantemente. Eles vão de aldeia em aldeia,
matando, destruindo e queimando. Até que chegam ao encontro de
um político que usou aquela força mercenária para conquistar territórios de
interesse, em conluio com vieses provocados para desestabilizar nações e
saquear riquezas naturais. Mas o chefe do bando decepcionado por não ter
alcançado o status almejado, não aceita continuar se não for por altos
ganhos financeiros ou poder. O bando retorna à selva e agora, sem apoio do comando, não têm munição, comida, segurança. As
crianças, então, decidem largar o chefe e chegam ao local onde são recolhidas as crianças perdidas, visando a
volta à dignidade. Quando a mulher pergunta ao menino o que se passou, ele diz que se
contasse, ela nunca mais o veria com o olhar de esperança, pois praticou o
impensável, foi como a besta sem domínio de si. Ali estava o adulto no corpo de uma criança. Mas, no fim de tarde, ao ver garotos correndo para a praia em algazarra, ele decide e corre para as águas. Em algum lugar da África.
Desliguei
a TV com a noite entrando a madrugada. Dois filmes, Um doce olhar, de 2010, do
diretor Semih Kaplanoglu e Beasts of no nation, de 2015, baseado no livro do
escritor nigeriano Uzodinma Iweala, do diretor Cary Fukunaga, filmado em Gana.
Olhares sob tantos ângulos.
Olhares sob tantos ângulos.
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