quinta-feira, 21 de maio de 2020

olhares


19/05/2020
       Tenho tentado desenhar palavra que soe amigável nestes tempos de tanta escrita em luto: vítimas do coronavírus intensificadas pela falta de responsabilidade governamental.
Não consigo retirar o olhar da verdade nua e crua que se dá a cada dia através de estatística, sem que não volte para as periferias, as áreas indígenas, ribeirinhas e quilombolas, enfim, para a localização geográfica onde vive a maioria do povo que sente na carne e no dia a dia, a difícil vida dos pobres e invisíveis.
A necessidade do distanciamento social forçada desde início de março de 2020 corrobora para o sentimento de tristeza do que ouço, vejo, sinto. As consequências mentais são claras para os que se responsabilizam o mínimo como sujeito e cidadão.
Eu quis fugir. Quis fugir alguns minutos pois corpo e mente estão doentes ao enxergar tanta desorientação, tanta esperteza e tantos egoísmos.
Levei o prato de janta para frente da TV numa fuga que descobri impossível, onde apenas em alguns momentos o lúdico esteve presente. Mas o lúdico seguiu questionando o que há.
São histórias de dois garotos pelo olhar próprio. O primeiro é branco. O segundo é preto.
O primeiro menino de seis anos. A cena inicia com ele conversando com o pai, sentados ao redor de uma pequena mesa, em voz muito baixa e tendo nesse pai a receptividade exigida da figura de referência. Esse pai bondoso respeita aquela criança e é vista como figura de autoridade e ao mesmo tempo, de amigo. O menino olha ao redor, o pequeno casebre, os objetos simples, olha a mãe de cima a baixo, roupas simples de camponesa, avental, sapatos caseiros, de costas para ele, preocupada com o alimento à beira do fogão a lenha e, fixa o olhar sobre um pote de vidro com água, na única estante de madeira ao longo da parede, logo atrás e acima da figura paterna, vislumbrando o reflexo de algo de tonalidade vermelha. O pai conversando com ele baixinho diz, esse segredo ficará apenas entre nós, pode me contar o que você quiser, como foi ontem na escola? O menino mudo. O menino escuta a mãe dizendo que é hora da escola. Ele levanta, coloca a pequena mochila às costas e segue sozinho por estrada enlameada escolhendo caminho. Na escola, os alunos em fileiras e carteiras duplas fazem silêncio ao pedido do professor. O menino olha para fora da janela e o verde toma conta da paisagem, com galhos querendo agarrar-se aos vidros e telhado. Escuta a ordem do professor para que leia o parágrafo. Folheia o livro e inicia leitura com dificuldade, repetindo os fonemas por três, quatro vezes, gaguejando até a formação da palavra sem conseguir formar frase. A classe em risos zombeteiros e o professor repreende. O professor diz que não é a página correta e pede que encaminhe para a folha certa. Após folhear até a indicativa, o professor pede que prossiga e o menino começa a gaguejar uma única sílaba sem conseguir prosseguir. O professor agradece e reprime as novas risadas, solicitando que outro colega leia.
Ao chegar em casa, o pai chama o filho para passearem na mata, próxima a um rio. No caminho o pai sente-se mal e cai. O menino vê o pai desacordado, corre até o rio. Entre a ramagem um lindo cervo jovem e os dois se olham, ele se agacha e quando volta a olhar o animal desapareceu. Caminha até o pai e espalha água sobre o rosto dele. O pai desconversa, diz que foi apenas mal estar.  Em casa à noite, ao redor da mesa, o pai e o menino, a mãe envolta às tarefas domésticas. O copo de leite cheio e a mãe dizendo, tome seu leite. O menino resiste, o pai pega e engole rapidamente. O menino sorri. A mãe volta a cabeça, vê o copo vazio e diz que é hora de dormir. O pai leva o garoto até a cama.
Pela manhã o menino passeia pela oficina de marcenaria do pai, pegando alguns objetos. Providencia o pequeno fumigador e coloca material com fumaça dentro e tampa, recolhe balde, ferramentas e corda. Num relance observa o lindo barquinho feito em madeira numa das estantes. Sobe com ajuda de cadeira e toca no objeto com carinho e o repõe, após o pai chamar seu nome. Acompanha o pai e durante o caminho vai perguntando por que cada vez ele vai mais longe colher mel. O pai diz que as abelhas estão desaparecendo e não sabe o motivo, falta flores. Olha o pai subindo na árvore onde tem uma colmeia. Envia o fumigador através de corda. Observa as abelhas em volta do pai sem proteção alguma e que graças à fumaça vai retirando delicadamente o favo. Em seguida o menino sobe com o balde onde é depositado o trabalho do dia. Uma única abelha zonza chega até o menino.
Na escola o professor entrega as notas de prova e coloca em alguns uma estrelinha. Após a leitura usual o professor passa em cada carteira verificando o Para Casa. Antes de chegar à mesa do menino, ele troca de caderno com o colega do lado. A criança observa tímida, sem queixa, e vê o professor ralhar com ele sobre as tarefas em branco. O menino volta para casa apreciando a paisagem. Quando chega vai direto à oficina do pai e não vê o barquinho. Começa a chutar o chão. À noite, o menino diz ao pai que não viu mais o barquinho. O pai apenas confirma. Enquanto estão à mesa, o pai oferece uma maçã e pede que ele a reparta ao meio, oferecendo a faca. Após corte com dificuldade, o menino dá metade ao pai. Na noite, o pai conversando com a mãe diz que terá de viajar para mais longe para encontrar colmeias e que demorará dois dias.
Ao acordar o menino corre até a oficina do pai e não o encontra. A mãe fala que o pai precisou se ausentar por dois dias. O menino vai para o quarto, amuado, e se depara com o lindo barquinho a velas bem acima da aresta da janela. Sobe na cama e recolhe o brinquedo, olha e alisa carinhosamente.
Na escola, ao perceber que a cadeira ao lado está vazia se sentiu amedrontado. O professor solicitou as leituras diárias. O menino após a aula visita o colega, que está acamado e dormindo. Abre a mochila e retira o barquinho a velas, reconhecendo que o amigo merece mais que o simples barquinho dado por seu pai àquele amigo. Nesses dois dias, a mãe mais próxima, o colocou no colo, perguntou o que ele quer ser quando crescer, em seguida contou o que ela queria quando criança.
Passados os dois dias e sem o retorno do marido, a mulher ao ver amigos de trabalho pergunta se têm notícia e respondem que nada sabem. Ela leva o menino para ficar com a avó e sai à procura do marido. Não o encontra no local definido. Desiste, mas antes de irem leva o menino a uma festa típica. O menino se perde na multidão e a mãe sai perguntando, até que ele, após olhar a festa e deixar-se conduzir ao que lhe interessava é encontrado na roda de dança típica em Istambul.
Chegando em casa a mãe recebe a notícia que o marido sofreu acidente e por estar sozinho não sobreviveu. O olhar do menino sobre a mãe. O copo de leite sempre rejeitado logo é esvaziado, e nem assim a mulher percebeu. A mãe pede que vá para a escola. O professor pede leitura e consegue ler duas palavras gaguejantes, e o mestre coloca uma estrelinha na blusa com colegas dessa vez sem risadas. Retorna pela estrada. Em casa, as visitas, a avó, o choro da mãe, o abraço que lhe dão. Sai para caminhar a procura do pai e adormece na mata, apenas acordando pela manhã.

O segundo menino tem dez. Até essa idade ele tem bom pai e mãe presentes e que educam com carinho. A aldeia em que vivem entra em derrocada por guerra civil, o que destrói lares de civis que mesmo não envolvidos, perdem a vida sem propósito. Às balas são recebidas as pessoas, elas tentam a seu jeito sair da confusão preservando o mais precioso, a família, em vão. Somente a mãe do menino consegue fugir com a bebê sendo extorquido do pai todo o dinheiro que possuía para a viagem. O menino vê o pai e o irmão mortos e foge sem olhar para trás, caminhando na floresta, sem nunca ter sabido sobreviver na selva e o que comer. Encontrado por grupo guerrilheiro que por todo o lado existe. Nesse grupo, as crianças são treinadas para matar sem questionar. Treinados por comandos obcecados e palavras de ordem sem qualquer reflexão crítica, o menino pratica a violência ensinada. O menino é seviciado pelo chefe do grupo e encontra consolo no ombro amigo de outra criança que passa por isso constantemente. Eles vão de aldeia em aldeia, matando, destruindo e queimando. Até que chegam ao encontro de um político que usou aquela força mercenária para conquistar territórios de interesse, em conluio com vieses provocados para desestabilizar nações e saquear riquezas naturais. Mas o chefe do bando decepcionado por não ter alcançado o status almejado, não aceita continuar se não for por altos ganhos financeiros ou poder. O bando retorna à selva e agora, sem apoio do comando, não têm munição, comida, segurança. As crianças, então, decidem largar o chefe e chegam ao local onde são recolhidas as crianças perdidas, visando a volta à dignidade. Quando a mulher pergunta ao menino o que se passou, ele diz que se contasse, ela nunca mais o veria com o olhar de esperança, pois praticou o impensável, foi como a besta sem domínio de si. Ali estava o adulto no corpo de uma criança. Mas, no fim de tarde, ao ver garotos correndo para a praia em algazarra, ele decide e corre para as águas. Em algum lugar da África.
Desliguei a TV com a noite entrando a madrugada. Dois filmes, Um doce olhar, de 2010, do diretor Semih Kaplanoglu e Beasts of no nation, de 2015, baseado no livro do escritor nigeriano Uzodinma Iweala, do diretor Cary Fukunaga, filmado em Gana. 

         Olhares sob tantos ângulos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário