domingo, 30 de setembro de 2018

CONVERSA POR WHATSAPP


CONVERSA POR WHATSAPP
15/09/2018
O marido enviou um whats:
                ― Como foi a oficina?
            A mulher respondeu:
            ― Foi ótima, João... adorei... como sempre eu sou a mais velha, kkkkk, a participar. Em seguida fui ao teatro Aktaro com Marilda, perto ali, na João Pinto, abaixo da Tiradentes. A peça “Sobre Pedros e Terezas” é muito triste, mas foi ótima encenação. Depois rumo a Fenaostra, a Feira anual de Ostras de Florianópolis, no Largo da Alfândega. Muito boa a feira, e nós nunca fomos, hein, João! Olha, pegamos um Uber para ir embora. Quando sentei no banco senti um volume e veio na minha mão... A carteira do João, o que ela está fazendo aqui, será que caiu da minha bolsa... pensei por segundos, em seguida, claro, alguém perdeu. Resolvi não comentar com o motorista, na dúvida guardei na bolsa. A Marilda nem percebeu, deixei ela em casa e vim. Era o primeiro dia do motorista, de Porto Alegre, muito educado e fui conversando com ele sobre Floripa, os lugares turísticos, os cuidados que os motoristas devem ter em locais mais perigosos etc. Mas, quando cheguei em casa fiquei preocupada com o moço que perdeu a carteira... vi que era advogado... entrei na OAB, mas como é sábado, o fone não atendeu. Tentei descobrir no Face... não consegui. Vi que tinha Smiles, entrei com minha senha e pedi para conversar com uma pessoa real... aquelas virtuais não estão com nada. Bom, a moça me instruiu ligar no próprio Uber, mas ia cair direto no motorista, como eu não tinha dito nada para ele, desisti do aplicativo. No final, a atendente começou a me ofertar promoções do Smiles... (que vergonhoso, né... nem eu falando para ligar para o cara...). Eu respondi... eu acharia que o Smiles vale a pena se vocês entrassem em contato com o ... escrevi e dissesse que encontrei a carteira dele... a moça disse... compreendi... e finalmente se esforçou fazer algo. Expliquei que não queria nenhuma informação dele, apenas que ligassem. A moça disse que ia passar para o coordenador, mas não garantia nada... então não sei se vão avisá-lo. Coitado do moço deve estar preocupado. Eu e minhas decisões malucas, não é, João!

            ― Ai, João, agora vou falar no microfone... cansei de digitar, mais é engraçado que ontem, mudando de assunto, este é outro assunto. Ontem, uma mulher que é vizinha nossa, alguns quarteirões. Ela falou que tinha, que um carro preto parou na porta dela, ontem, e cinco caras saíram do carro. Ela estava na janela, no andar de cima, e eles falaram que estavam esperando uma pessoa para recebê-los porque eles iam entrar. Ela falou, não, não tem, não, eu não estou esperando nenhum convidado não. E, não, não tem ninguém aqui não, ela saiu rápido e foi ligar para a segurança. Quando voltou, eles não estavam mais. Estavam vestidos como se fossem para uma festa, alguma coisa assim. E, você sabe, essas ruas são tão escuras de noite. Bom, escutei tudo. E ontem, não tinha colocado alarme, pensei, ah! Precisa nada, frescura. Dormi numa boa. Mas hoje, ah, hoje eu vou colocar. Quando cheguei desse teatro, da Fenaostra, e antes de abrir a porta desliguei o alarme. Quando fechei a porta, a luz da sala não acendia, pensei: ai meu Deus do céu! Será que tem bandido dentro de casa. Mas tranquei a porta e fui acender a do corredor e tudo tranquilo. Liguei o alarme. Está chovendo, sabe, uma chuvinha boa, e como não estava com pressa de dormir, fui, ah! acho que vou lá fora um pouquinho. Quando abro a porta da varanda, o alarme, ai que saco, corri, peguei o controle e desliguei. Passou um pouquinho, o pessoal da segurança. Mas então é isso, sua mulher está muito loucaaaa mesmo. Eu estava conversando com o Fred (filho), ele ligou agora mesmo, e contei que liguei o alarme. Pra ele eu só contei isso, que liguei o alarme e esqueci. Ele me falou que você ainda não foi lá, na casa dele, ai, ai, você é ótimo, João. Eu contando para ele, dessa minha coisa, dessa minha loucura, ah, contando para ele que tudo estou esquecendo, meu cachecol, não sei onde deixei, acho que comentei com você, não é! Ah, não, acho que não cheguei a comentar com você ou comentei, não sei. Não sei onde coloquei, quem sabe está aí, hein João, na casa de Ceiça, aquele cachecol meu, rosa, desapareceu, não sei onde deixei, lembro que fui com ele, eu fui com ele, agora não sei onde deixei, se deixei num bar, se deixei no..., ah! que chato, viu, ter perdido. Mas Fred falou que esqueci brinco, esqueci anel e eu nem me lembrava que tinha esquecido essas coisas, só escrevi para ele no whats se sabia do meu cachecol, não você não deixou aqui, você deixou anel e brinco. Eu nem sabia, nem tinha atinado até o momento de perguntar sobre o cachecol, que tinha esquecido brinco e anel. Olha só, como está, e só atinei para o cachecol por que queria colocar hoje,  ele é mais quentinho e me dei conta de que não estava em lugar nenhum. Ai, João, ficar velha é triste, às vezes nem é ficar velha, às vezes é, sei não, a gente fica não querendo aceitar essas coisas, ou então é Alzheimer mesmo que está vindo a caminho. E outra coisa, João, incrível, na hora que eu estava indo pra oficina, fui de ônibus, pensei, ah! não vou gastar dinheiro com Uber, vou de ônibus. Levei um livro de poesia para passar o tempo. No ônibus pensei, ah, não! Não vou ler não. Vou, hoje vou apreciar a natureza, a paisagem, vim olhando os verdes, as montanhas, curtindo, vendo que beleza, tudo esverdeado ainda, de repente, João, a estrada para entrar na beira mar, de repente, João, achei o lugar estranho, sabe, fiquei sobressaltada, porque  desconheci onde estava, o que estava fazendo, e que lugar era aquele, eu não sabia onde estava, aquela estrada, aquele caminho desconhecido. Nossa, João, uma situação tão horrível, deu um, alguns segundos, eu me perguntava onde estava, que que estava fazendo ali, aí percebi, estava no ônibus, estava sentada, e e e e e que angústia, João, eu não sabia onde estava. E foi assim, rapidamente me antenei e voltei à realidade, por que no fundo, eu observando a natureza, me envolvi pensando num personagem do meu livro, sabe, que que eu podia fazer com ele, para movimentar ele, na história, e de repente, bolei alguma coisa, mas não me lembro mais o que, e me veio o branco, sabe, esse branco, essa ausência, essa amnésia momentânea, sei que assusta, e se passou assim, eu olhando pela lateral da janela e a partir do momento que atinei para realidade, olhei para frente, percebi que estava no centro, na beira mar, o mar ali perto, mas que sensação horrível, de ter a impressão de estar num lugar desconhecido. Bom, passando disso, eu me pergunto se não estou a caminho do esquecimento (som de risada). Tá bom, João, bom dia para você, por que eu tenho certeza que você não vai ver isso agora, só amanhã. Bye, bye, viu, tchau! Bom dia, amanhã a gente conversa mais.

sábado, 29 de setembro de 2018

FIO DE VERDADE

FIO DE VERDADE
26/08/2018

— Vamos começar com o poema? Eu leio primeiro em inglês, depois você, em português, ok?

Drinking While Driving
Raymond Carver
It’s August and I have not
read a book in six months
except something called The Retreat From Moscow
by Caulaincourt.
Nevertheless, I am happy
Riding in a car with my brother
And drinking from a pint of  Old Crow.
We do not have any place in mind to go,
We are just driving.
If I closed my eyes for a minute
I would be lost, yet
I could gladly  lie down and sleep forever
Beside this road.
My brother nudges me.
Any minute now, something will happen.  (*)
Dirigindo e bebendo
Raymond Carver
É agosto e eu não li
um livro em seis meses
exceto um troço chamado A Retirada de Moscou
de Caulaincourt.
Mesmo assim, estou feliz
andando de carro com meu irmão
e bebendo um pint de Old Crow.
Não estamos indo a lugar nenhum,
estamos só rodando.
Se eu fechasse os olhos por um minuto
estaria  perdido, contudo
eu poderia facilmente deitar e dormir para sempre
na beira dessa estrada.
Meu irmão me cutuca.
A qualquer momento, algo vai acontecer.  (*)

Agora Felipe entendia e ela também. Ele considerou, com senso responsável, não ser saudável a mensagem, beber e dirigir, principalmente a crianças e jovens. Ela rindo, concordou, mas que visse por outro ângulo, afinal é um poema. O que percebeu no poema no momento da leitura? Que sentimento aflorou?

Felipe firme, não concordava com a temática, nem mesmo em poema. Ela disse ter sentido o poeta triste e angustiado por não ter lido sequer um livro em seis meses. Realmente, como uma pessoa consegue não ler por tanto tempo, concordava, mas que escrevesse algo salutar. Essa escrita não contribui para a comunidade. O riso não largou a boca, Felipe, você é ótimo, disse ela. Insistiu que as pessoas gostam dos poemas do Raymond Carver, geralmente intelectuais, escritores, enfim, os amantes da Literatura. Afinal, no poema, o homem expressa a dor de forma espontânea e sem censura. Felipe foi quem soltou o riso, dizendo, então quem lê este escritor norte-americano são brasileiros apaixonados por Literatura, brasileiros que gostam dele, mesmo bebendo e dirigindo. Ela concordou. 
Viraram a página. Felipe trazia o melhor das tardes de sexta-feira, tempo em que jogavam palavras ao vento, produziam piadas trazidas das lembranças. Duas horas em que a vida transcorria com lirismo e risada via Skype.

— Li o conto “O cabelo”, do Raymond Carver. É muito estranho! Disse Felipe.
— Como assim?
— O escritor escreveu três páginas sobre um fio de cabelo entre os dentes.
— O cara é muito bom.
            — Quer dizer que você é fã dele? Haja assunto para contar. Um fio de cabelo nos dentes e o sujeito não consegue nem trabalhar. E a mulher, que confusão!
            — Gosto muito da escrita dele, ela disse rindo. Nos poemas e na prosa estão presentes o dia a dia das pessoas comuns. O escritor morreu aos cinquenta, tinha problemas com bebida, adorava escrever desde menino.
            — Bebendo e dirigindo?
            — Bebendo e dirigindo.
            — Realmente você acha que alguém vai ter um fio de cabelo entre dentes e não vai nem trabalhar, Felipe disse irônico.
            — Será que aconteceu mesmo?  Terá sido invenção do escritor?
            — Muito estranho, continuo achando muito estranho esse conto.


            À noite, ela assistia a TV enquanto jantava. De repente, um fiapo de alecrim se enfiou entre dentes e a pontinha fincava a gengiva. Encostou a língua e sentiu dor. Tentou apalpar com polegar e indicador e puxar. Não conseguiu. Voltou a testar com a língua, a dor pinicando. Tentou os dedos. Nada. Com a língua, com os dedos... Como conviver com aquilo nos dentes. Sabia que não se acostumaria.                   
        
(*) Carver, Raymond (1938-1988). Esta vida: poemas escolhidos; seleção e tradução de Cide Piquet; bilíngue, São Paulo, Editora 34, 1ª edição, 2017, págs 21 e 147. 
Carver, Raymond. 68 contos de Raymond Carver, trad. Rubens Figueiredo, Companhia das Letras,  SP, 2010, conto O Cabelo, pág. 45 a 48.    

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

DELETEI



DELETEI
19/09/2018
            Todos os dias ligo o computer e dou de cara com a área de trabalho. A primeira imagem que aparece no gadget do Google, no item Notícias, é a cara do Bolsonaro. Bolso... isso, Bolso... aquilo, não gosto nem mesmo de pronunciar o tal nome e a cara do cara no visor do meu computador. Estes tempos eleitorais estão de dar vômito. Fui ficando tão irritada com o desrespeito do Google de colocar tal manchete, todos os dias, com versões diferentes somente deste candidato que não aguentei. DELETEI. Deletei o item Notícias à custa do que me orientava o programa no momento do ato: deletar este item pode interferir em outros programas de seu computador.
            Mas que merda é essa! Eu não ter o direito de deletar uma figura que aparece no visor do meu computador individual, uma imagem que nem mesmo eu tenha autorizado e ou querido. Esse Google está extrapolando o domínio. Por que não aparece notícias de cada um dos candidatos a cada dia, por quê não? Qual interesse em marcar e fazer aparecer numa constância que irrita a tal carcaça? Afinal, o computador é meu, tenho o direito de não participar, e nem mesmo aceitar notícias de gadget de algo que não desejo. Eu me sinto participando do conluio de interesses por trás dessa tal estratégia de mídia.
            Eu deletei ontem.
            Hoje, quando abri o computador e vi que na área de trabalho não tem notícia e nem a cara do candidato, nossa, me senti aliviada. Senti que eu pude escolher não ver. É pouco. Claro que é pouco, mas valeu para minha paz de espírito e tranquilidade adquiridas com a atitude. Alívio.
            Cada um pode escolher o candidato que quiser, cada um é dono de seu próprio nariz, cada um pode e vai cometer erro seja qual for o candidato escolhido. Estamos longe de ser um estado-nação interessado em seu povo. Os interesses políticos continuam narcísicos e às vezes até viram pó.
            Mas no meu computador, não! DELETEI.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

SIMPLES ALEGRIA

Galo - ICET Arte Murano, Miranda/Venezuela
SIMPLES ALEGRIA
04/09/2018

A casa de construção antiga marcava o tempo. E com o tempo, pó acumulando-se entre móveis, cortina, traça subindo parede. Até lençol, travesseiro e fronha emanavam cheiro. A respiração fazendo-se dificultosa a cada inspira/expira. Sentia-se pequena naquele quarto, naquela casa. Tantas histórias que não lhe pertenciam. O sono não aderia, e a angústia do esforço à respiração dava lugar à sonolência que não afundava no devaneio. Decidiu permanecer quieta, apenas prestando atenção ao movimento do peito. Quem sabe se meditasse. Forçou inspiração, aguardou dez segundos, soltou o ar devagar e aguardou outros segundos antes da próxima. Suportou por quatro vezes e sentiu necessidade do respirar profundo. Desistiu.
Deitara-se tarde, passando da meia noite. Agora devia ser mais de três horas da manhã, pensou. Ai, queria tanto dormir, essa alergia que à sombra de poeira tampona vias aéreas. Sufocava-a. Tentava permanecer quieta, às vezes fechava os olhos à procura de Morfeu, e lamentando-se intimamente, arregalava-os, pela dificuldade ao respirar. Precisava dormir, queria dormir, gemia querendo dormir, não conseguia. Foi quando longe, muito longe, ouviu um galo cantar. Por ínfimo minuto surpreendeu-se com riso nos lábios. Galo cantando em pleno século XXI na cidade! Nos arredores existia canto de galo amansando dor de não dormir. Esqueceu-se da respiração e o canto do galo emanou madrugada adentro até alvorecer. Ouvidos atentos. De manhã tomaria atitude. Agradecia aos céus a beleza do canto de um galo.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

PARATY 1984 - 2018

Fotografia  Jaime Chagas
    A última aventura venho adiando sentar e descrever. A calma no ambiente colabora para a empreitada. Tarefas em dia,  excesso de frio dissipando-se... a chuvinha fina insistindo há dias...

   Fui à Flip - Festa Literária Internacional de Paraty, de 25 a 29 de julho. E me surpreendi com a dinâmica da cidade. Por todo lado, literatura, música, poesia, encontro, livros ... enfim arte! A cidade, a "pólis", discussão em cada esquina, artistas, povo. A arte culinária dando invólucro especial ao sabor da comida brasileira regional. Foi minha primeira vez e me deixei, a cada dia, impregnar devagar. Nada de excessos. Atenta a cada detalhe, cada esquina, cada prato esculpido, cada palavra levada a tantos ventos. E o calor do inverno! Conheci mais Hilda Hilst e a outra, Hilda Machado. E tantos outros autores. A cor com presença marcante em Luiz Gama e seus poemas (em livro - Com a palavra, Luiz Gama) ... Conceição Evaristo (pessoalmente... e em livro, Ponciá Vicêncio)... Cuti (em livro, A Literatura Negro-Brasileira) e muito mais!

  Fiquei mais dias para curtir a cidade onde passei a lua de mel. Retornando trinta e quatro anos depois. Durante caminhada, ávida, tentava descobrir a pousada daquele tempo.
   O nome não vinha à cabeça. Foi quando pedi a filha que enviasse a foto por whats. Perguntei comerciantes se se recordavam   do Pouso Colibri, hoje, Galeria Colibri, pequeno shopping com muitas lojinhas. Todo o segundo andar fechado e abandonado. Senti aperto do coração.
   Caminhando, da Flip ao hotel, e vice-versa, observando o rio que margeia a cidade, tão sujo e poluído. E a árvore que cresceu entre muros de uma moradia, antes frondosa... 
   Hoje...
   Contei a uma amiga as decepções: a cidade continua aconchegante, mas desgastada, o descuido das áreas públicas, muito empoeirada (é tempo de seca, é tempo de crise, ...).

   Desse verso reverso, o lado bom, o lado ruim, as transformações para o bem e para o mal, aqui estou eu ...