FIO DE VERDADE
26/08/2018
—
Vamos começar com o poema? Eu leio primeiro em inglês, depois você, em
português, ok?
Drinking While Driving
Raymond
Carver
It’s August and I
have not
read a book in six
months
except something
called The Retreat From Moscow
by Caulaincourt.
Nevertheless, I am
happy
Riding in a car with
my brother
And drinking from a
pint of Old Crow.
We do not have any
place in mind to go,
We are just driving.
If I closed my eyes
for a minute
I would be lost, yet
I could gladly lie down and sleep forever
Beside this road.
My brother nudges me.
Any minute now,
something will happen. (*)
|
Dirigindo
e bebendo
Raymond
Carver
É agosto e eu não li
um livro em seis
meses
exceto um troço
chamado A Retirada de Moscou
de Caulaincourt.
Mesmo assim, estou feliz
andando de carro com
meu irmão
e bebendo um pint de
Old Crow.
Não estamos indo a
lugar nenhum,
estamos só rodando.
Se eu fechasse os
olhos por um minuto
estaria perdido, contudo
eu poderia facilmente
deitar e dormir para sempre
na beira dessa
estrada.
Meu irmão me cutuca.
A qualquer momento,
algo vai acontecer. (*)
|
Agora
Felipe entendia e ela também. Ele considerou, com senso responsável, não ser
saudável a mensagem, beber e dirigir, principalmente a crianças e jovens. Ela
rindo, concordou, mas que visse por outro ângulo, afinal é um poema. O que
percebeu no poema no momento da leitura? Que sentimento aflorou?
Felipe
firme, não concordava com a temática, nem mesmo em poema. Ela disse ter sentido
o poeta triste e angustiado por não ter lido sequer um livro em seis meses. Realmente, como
uma pessoa consegue não ler por tanto tempo, concordava, mas que escrevesse
algo salutar. Essa escrita não contribui para a comunidade. O riso não largou a
boca, Felipe, você é ótimo, disse ela. Insistiu que as pessoas gostam dos
poemas do Raymond Carver, geralmente intelectuais, escritores, enfim, os
amantes da Literatura. Afinal, no poema, o homem expressa a dor de forma
espontânea e sem censura. Felipe foi quem soltou o riso, dizendo, então quem lê
este escritor norte-americano são brasileiros apaixonados por Literatura,
brasileiros que gostam dele, mesmo bebendo e dirigindo. Ela concordou.
Viraram a página. Felipe trazia o melhor das tardes de sexta-feira, tempo em que jogavam palavras ao vento, produziam piadas trazidas das lembranças. Duas horas em que a vida transcorria com lirismo e risada via Skype.
Viraram a página. Felipe trazia o melhor das tardes de sexta-feira, tempo em que jogavam palavras ao vento, produziam piadas trazidas das lembranças. Duas horas em que a vida transcorria com lirismo e risada via Skype.
—
Li o conto “O cabelo”, do Raymond Carver. É muito estranho! Disse Felipe.
—
Como assim?
—
O escritor escreveu três páginas sobre um fio de cabelo entre os dentes.
—
O cara é muito bom.
— Quer dizer que você é fã dele? Haja
assunto para contar. Um fio de cabelo nos dentes e o sujeito não consegue nem trabalhar. E
a mulher, que confusão!
— Gosto muito da escrita dele, ela disse rindo. Nos poemas e na prosa estão presentes o dia a dia das pessoas
comuns. O escritor morreu aos cinquenta, tinha problemas com bebida, adorava
escrever desde menino.
— Bebendo e dirigindo?
— Bebendo e dirigindo.
— Realmente você acha que alguém vai
ter um fio de cabelo entre dentes e não vai nem trabalhar, Felipe disse irônico.
— Será que aconteceu mesmo? Terá sido invenção do escritor?
— Muito estranho, continuo achando
muito estranho esse conto.
À noite, ela assistia a TV enquanto jantava. De repente, um fiapo de alecrim se
enfiou entre dentes e a pontinha fincava a gengiva. Encostou a língua e sentiu dor. Tentou apalpar com polegar e indicador e puxar. Não
conseguiu. Voltou a testar com a língua, a dor pinicando. Tentou os dedos. Nada. Com a língua, com os dedos... Como conviver com aquilo nos dentes. Sabia que não se acostumaria.
(*) Carver, Raymond (1938-1988). Esta vida: poemas escolhidos; seleção e tradução de Cide Piquet; bilíngue, São Paulo, Editora 34, 1ª edição, 2017, págs 21 e 147.
Carver, Raymond. 68 contos de Raymond Carver, trad. Rubens Figueiredo, Companhia das Letras, SP, 2010, conto O Cabelo, pág. 45 a 48.
Carver, Raymond. 68 contos de Raymond Carver, trad. Rubens Figueiredo, Companhia das Letras, SP, 2010, conto O Cabelo, pág. 45 a 48.
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