sábado, 29 de setembro de 2018

FIO DE VERDADE

FIO DE VERDADE
26/08/2018

— Vamos começar com o poema? Eu leio primeiro em inglês, depois você, em português, ok?

Drinking While Driving
Raymond Carver
It’s August and I have not
read a book in six months
except something called The Retreat From Moscow
by Caulaincourt.
Nevertheless, I am happy
Riding in a car with my brother
And drinking from a pint of  Old Crow.
We do not have any place in mind to go,
We are just driving.
If I closed my eyes for a minute
I would be lost, yet
I could gladly  lie down and sleep forever
Beside this road.
My brother nudges me.
Any minute now, something will happen.  (*)
Dirigindo e bebendo
Raymond Carver
É agosto e eu não li
um livro em seis meses
exceto um troço chamado A Retirada de Moscou
de Caulaincourt.
Mesmo assim, estou feliz
andando de carro com meu irmão
e bebendo um pint de Old Crow.
Não estamos indo a lugar nenhum,
estamos só rodando.
Se eu fechasse os olhos por um minuto
estaria  perdido, contudo
eu poderia facilmente deitar e dormir para sempre
na beira dessa estrada.
Meu irmão me cutuca.
A qualquer momento, algo vai acontecer.  (*)

Agora Felipe entendia e ela também. Ele considerou, com senso responsável, não ser saudável a mensagem, beber e dirigir, principalmente a crianças e jovens. Ela rindo, concordou, mas que visse por outro ângulo, afinal é um poema. O que percebeu no poema no momento da leitura? Que sentimento aflorou?

Felipe firme, não concordava com a temática, nem mesmo em poema. Ela disse ter sentido o poeta triste e angustiado por não ter lido sequer um livro em seis meses. Realmente, como uma pessoa consegue não ler por tanto tempo, concordava, mas que escrevesse algo salutar. Essa escrita não contribui para a comunidade. O riso não largou a boca, Felipe, você é ótimo, disse ela. Insistiu que as pessoas gostam dos poemas do Raymond Carver, geralmente intelectuais, escritores, enfim, os amantes da Literatura. Afinal, no poema, o homem expressa a dor de forma espontânea e sem censura. Felipe foi quem soltou o riso, dizendo, então quem lê este escritor norte-americano são brasileiros apaixonados por Literatura, brasileiros que gostam dele, mesmo bebendo e dirigindo. Ela concordou. 
Viraram a página. Felipe trazia o melhor das tardes de sexta-feira, tempo em que jogavam palavras ao vento, produziam piadas trazidas das lembranças. Duas horas em que a vida transcorria com lirismo e risada via Skype.

— Li o conto “O cabelo”, do Raymond Carver. É muito estranho! Disse Felipe.
— Como assim?
— O escritor escreveu três páginas sobre um fio de cabelo entre os dentes.
— O cara é muito bom.
            — Quer dizer que você é fã dele? Haja assunto para contar. Um fio de cabelo nos dentes e o sujeito não consegue nem trabalhar. E a mulher, que confusão!
            — Gosto muito da escrita dele, ela disse rindo. Nos poemas e na prosa estão presentes o dia a dia das pessoas comuns. O escritor morreu aos cinquenta, tinha problemas com bebida, adorava escrever desde menino.
            — Bebendo e dirigindo?
            — Bebendo e dirigindo.
            — Realmente você acha que alguém vai ter um fio de cabelo entre dentes e não vai nem trabalhar, Felipe disse irônico.
            — Será que aconteceu mesmo?  Terá sido invenção do escritor?
            — Muito estranho, continuo achando muito estranho esse conto.


            À noite, ela assistia a TV enquanto jantava. De repente, um fiapo de alecrim se enfiou entre dentes e a pontinha fincava a gengiva. Encostou a língua e sentiu dor. Tentou apalpar com polegar e indicador e puxar. Não conseguiu. Voltou a testar com a língua, a dor pinicando. Tentou os dedos. Nada. Com a língua, com os dedos... Como conviver com aquilo nos dentes. Sabia que não se acostumaria.                   
        
(*) Carver, Raymond (1938-1988). Esta vida: poemas escolhidos; seleção e tradução de Cide Piquet; bilíngue, São Paulo, Editora 34, 1ª edição, 2017, págs 21 e 147. 
Carver, Raymond. 68 contos de Raymond Carver, trad. Rubens Figueiredo, Companhia das Letras,  SP, 2010, conto O Cabelo, pág. 45 a 48.    

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