domingo, 31 de janeiro de 2021

a pensar (CENA 42)

 

Foto Jaimerchagas

22/01/2021

Em cento e oitenta graus Luiza frui uma vez mais a confortante paisagem.

― Valdo, ouve! O galo anuncia novo dia e nós ainda na libertária noitada, e atrevidamente com direito a abraço. Ando apreciando esse tempo de paz na sua casa. Morar sozinha me agrada se a gente é capaz de velejar por todos os polos e depois descansar no canto escolhido, o que hoje é impossível, não é? Mas é hora de dormir, concorda?

― Lar é básico e todos têm direito. Como te disse, o quarto está arrumadinho. Vamos, me ajuda levando as coisas pra cozinha. ― Levantaram-se, colocaram máscara. ― Depois cuido da louça.

O apartamentinho de cinquenta metros quadrados, mas a tão agradável divisão dos cômodos dá amplitude. Luiza ia comentando antes de entrar no quarto. Mais uma vez quebrou rotina epidêmica e abraçou o amigo. Osvaldo desejou boa manhã e beijou-lhe os cabelos dizendo, tem manta na bancada, às madrugadas vem a friagem.

Luiza acordou com fome e abriu a porta olhando Osvaldo desaparecer pelos lados da sacada, vestido de preto, em camiseta e calça larga, e correu a observar a arrumação, ele disse:

― Armação minha. Apesar de quase meio dia imaginei que um café dá visual especial.

― E eu ainda de pijama, vou me trocar.

― Está confortável? Porque não importa. Minha roupa é tipo pijama, estamos iguais ― e apontou para si e para a banqueta. ― Como foi a noite, ou melhor, a madrugada? Quer café ou chá?

― Valdo, não estou acostumada a tanto mimo. Pra dizer a verdade, coisa difícil hoje neste país, dormi tão profundo e me entreguei a Morfeu como há muito não me permitia. ― Sorriu Luiza.

― Também não posso reclamar. O galo me guarneceu sono poético.

Terminada a refeição, Luiza pediu desculpas por ter se ocupado apenas de seus problemas.

― Todos temos histórias, Luiza. Eu te escutei. Tenho as minhas também.

― Valdo, tenho dia inteiro, esqueceu que nem trabalho hoje? Quero te ouvir. Quero te conhecer mais. Quero um amigo confidente.

― É raridade amizade profunda. Amizade com afinidade de princípios e valores. Mas se se encontra, a pessoa é felizarda. Fernando Pessoa escreveu que um amigo íntimo era seu ideal impossível devido olhar para a hipocrisia e vaziez da sociedade de conveniência, a que a gente se assusta a cada dia em nossa realidade.

― Valdo, te ouço. ― Luiza colocou alimento à boca e respirou tão fundo quanto Osvaldo. O alimento dissolvia lento.

O homem humilde, olhar de súplica, rogava bom ouvido à oração. Ofegante, comedido, inseguro com o lenitivo que Luiza oferecia. A família vivia em Belo Horizonte. Minas vive em mim em qualquer lugar que eu esteja. Ainda indeciso se continuava, instante depois revelou o acidente.

― Não me lembro de nada após o ônibus atracar nosso veículo. Quando acordei no hospital, meus pais e meu irmão, toda minha família não vivia mais. Eu tinha trinta e três. Mudei-me para a Ilha de Santa Catarina e trouxe sentimentos que me dilaceraram longos três anos. É difícil a solidão. Foi quando conheci Cândida. Inicialmente ela me lembrava antiga paixão, um carisma, atrevimento, e depois me apaixonei, ela foi meu esteio, eu largava o jeito torto que caminha comigo. ― Osvaldo interrompeu e bebeu o líquido já frio da caneca.

― Está bem? ― Luiza perguntou após breve silêncio.

― Quando a conheci tivera câncer, mas compensada e curada. Fazia acompanhamentos necessários. Tivemos um casamento bem legal. Depois a doença surgiu em outro lugar e se alastrou. Quando aconteceu tinha cinquenta seis, como você. ― Osvaldo levantou e acendeu cigarro. Foi ao canto da varanda. De lá continuou ― Vivi lutos doloridos em minha vida. Você me entende. ― Luiza assentiu.

― Por outro lado é estranho, quanto mais se vive mais se presencia tal questão difícil de lidar, não é? A morte. Nossa única certeza e o sofrimento de falar sobre. Falei de Cândida, você relembrou sua história. ― Osvaldo engasgou, mas continuou o raciocínio.

― Já as tantas mortes oriundas da pandemia não haveria se houvesse planejamento, seriedade, ética na governança. Quase cento e noventa mil mortes neste vinte e três. Vivemos atmosfera de morte de uma forma terrível de descrever. Vivemos a desumanização constante. Urge reconhecer para que se abra agenda humanizante. Que natal teremos. Nem consigo imaginar o que nos aguardará em 2021. ― Apagou a bituca, jogou no cinzeiro e sentou-se, enquanto Luiza:

― O estado ajoelha pro mercado financeiro e acata as ordens e destrói o povo, a nação. Não tem jeito da gente achar que a morte deva ser velada. A morte deve ser escancarada. Devemos exigir dignidade para nós brasileiros.

― O que disse do natal, apesar das dores que vivemos, acha possível, seria desrespeito, Valdo? Simples confraternização de natal on line? A gente poderia combinar com Dodô, Ritinha, seus amigos do grupo da esquina, se quiser, para que a gente não fique tão solitária, pois aglomeração está fora de questão. Amanhã trabalho até às dezessete. Assim, a reunião seria entre dez da noite até romper a passagem do natal. E o mesmo na entrada de ano. Acha razoável?

― Será bom rever e conviver com a turma mesmo à distância.

Osvaldo levantou, mascarou-se e ao juntar as louças, Luiza acolheu a mão na dele e o abraçou.

― Sinto tanto por nós, meu amigo. Mas você me convenceu, existe momentos amigos e inimigos. Ter amigo conforta a dor. Estou feliz por te conhecer.