Foto Jaimerchagas |
22/01/2021
Em cento e oitenta graus Luiza
frui uma vez mais a confortante paisagem.
― Valdo, ouve! O galo anuncia
novo dia e nós ainda na libertária noitada, e atrevidamente com direito a abraço.
Ando apreciando esse tempo de paz na sua casa. Morar sozinha me agrada se a
gente é capaz de velejar por todos os polos e depois descansar no canto
escolhido, o que hoje é impossível, não é? Mas é hora de dormir, concorda?
― Lar é básico e todos têm
direito. Como te disse, o quarto está arrumadinho. Vamos, me ajuda levando as
coisas pra cozinha. ― Levantaram-se, colocaram máscara. ― Depois cuido da louça.
O apartamentinho de cinquenta
metros quadrados, mas a tão agradável divisão dos cômodos dá amplitude. Luiza
ia comentando antes de entrar no quarto. Mais uma vez quebrou rotina epidêmica
e abraçou o amigo. Osvaldo desejou boa manhã e beijou-lhe os cabelos dizendo, tem
manta na bancada, às madrugadas vem a friagem.
Luiza acordou com fome e abriu a
porta olhando Osvaldo desaparecer pelos lados da sacada, vestido de preto, em camiseta
e calça larga, e correu a observar a arrumação, ele disse:
― Armação minha. Apesar de quase
meio dia imaginei que um café dá visual especial.
― E eu ainda de pijama, vou me trocar.
― Está confortável? Porque não
importa. Minha roupa é tipo pijama, estamos iguais ― e apontou para si e para a
banqueta. ― Como foi a noite, ou melhor, a madrugada? Quer café ou chá?
― Valdo, não estou acostumada a tanto
mimo. Pra dizer a verdade, coisa difícil hoje neste país, dormi tão profundo e me
entreguei a Morfeu como há muito não me permitia. ― Sorriu Luiza.
― Também não posso reclamar. O
galo me guarneceu sono poético.
Terminada a refeição, Luiza pediu
desculpas por ter se ocupado apenas de seus problemas.
― Todos temos histórias, Luiza. Eu te escutei. Tenho as minhas também.
― Valdo, tenho dia inteiro, esqueceu que nem trabalho hoje? Quero te ouvir. Quero te conhecer mais. Quero um amigo confidente.
― É raridade amizade profunda. Amizade
com afinidade de princípios e valores. Mas se se encontra, a pessoa é
felizarda. Fernando Pessoa escreveu que um amigo íntimo era seu ideal impossível
devido olhar para a hipocrisia e vaziez da sociedade de conveniência, a que a
gente se assusta a cada dia em nossa realidade.
― Valdo, te ouço. ― Luiza colocou
alimento à boca e respirou tão fundo quanto Osvaldo. O alimento dissolvia
lento.
O homem humilde, olhar de
súplica, rogava bom ouvido à oração. Ofegante, comedido, inseguro com o lenitivo
que Luiza oferecia. A família vivia em Belo Horizonte. Minas vive em mim em
qualquer lugar que eu esteja. Ainda indeciso se continuava, instante depois revelou
o acidente.
― Não me lembro de nada após o
ônibus atracar nosso veículo. Quando acordei no hospital, meus pais e meu
irmão, toda minha família não vivia mais. Eu tinha trinta e três. Mudei-me para
a Ilha de Santa Catarina e trouxe sentimentos que me dilaceraram longos três
anos. É difícil a solidão. Foi quando conheci Cândida. Inicialmente ela me
lembrava antiga paixão, um carisma, atrevimento, e depois me apaixonei, ela foi
meu esteio, eu largava o jeito torto que caminha comigo. ― Osvaldo interrompeu
e bebeu o líquido já frio da caneca.
― Está bem? ― Luiza perguntou
após breve silêncio.
― Quando a conheci tivera câncer,
mas compensada e curada. Fazia acompanhamentos necessários. Tivemos um casamento bem legal. Depois a doença
surgiu em outro lugar e se alastrou. Quando aconteceu tinha cinquenta seis,
como você. ― Osvaldo levantou e acendeu cigarro. Foi ao canto da varanda. De lá
continuou ― Vivi lutos doloridos em minha vida. Você me entende. ― Luiza assentiu.
― Por outro lado é estranho, quanto
mais se vive mais se presencia tal questão difícil de lidar, não é? A morte. Nossa
única certeza e o sofrimento de falar sobre. Falei de Cândida, você relembrou
sua história. ― Osvaldo engasgou, mas continuou o raciocínio.
― Já as tantas mortes oriundas da
pandemia não haveria se houvesse planejamento, seriedade, ética na governança. Quase
cento e noventa mil mortes neste vinte e três. Vivemos atmosfera de morte de
uma forma terrível de descrever. Vivemos a desumanização constante. Urge reconhecer
para que se abra agenda humanizante. Que natal teremos. Nem consigo imaginar o
que nos aguardará em 2021. ― Apagou a bituca, jogou no cinzeiro e sentou-se,
enquanto Luiza:
― O estado ajoelha pro mercado
financeiro e acata as ordens e destrói o povo, a nação. Não tem jeito da gente
achar que a morte deva ser velada. A morte deve ser escancarada. Devemos exigir
dignidade para nós brasileiros.
― O que disse do natal, apesar
das dores que vivemos, acha possível, seria desrespeito, Valdo? Simples
confraternização de natal on line? A
gente poderia combinar com Dodô, Ritinha, seus amigos do grupo da esquina, se
quiser, para que a gente não fique tão solitária, pois aglomeração está fora de
questão. Amanhã trabalho até às dezessete. Assim, a reunião seria entre dez da
noite até romper a passagem do natal. E o mesmo na entrada de ano. Acha
razoável?
― Será bom rever e conviver com a
turma mesmo à distância.
Osvaldo levantou, mascarou-se e
ao juntar as louças, Luiza acolheu a mão na dele e o abraçou.
― Sinto tanto por nós, meu amigo. Mas você me convenceu, existe momentos amigos e inimigos. Ter amigo conforta a dor. Estou feliz por te conhecer.