quarta-feira, 29 de julho de 2020

a janela (CENA 23)

27/07/2020

            Bia caminhou em direção à janela. Debruçou-se e distraída pensou, vontade de sair voando por esse céu afora como um pássaro e conseguir respirar calmaria. Interrompeu o pensamento simplesmente questionando Josué:

― Que bruxo é esse?

Viu Josué indo para o terreiro cuidar de Lalau sem nem escutar o que ela disse e jogar o pedaço de madeira à distância, pega Lalau, pega. Ela se distraiu com a brincadeira dos dois e olhando a horta, as verduras não querem ir pra frente, o sol anda fraco. Quando Josué voltou à cozinha:

― Que tanto você pensa aí nessa janela, mulher? Tem comida pra nós?

― Não tenho mais pique, faz um mexidão para você e Toninho. Ando morta de cansada e vou só lambiscar, tomar banho e pular na cama, mas antes pôr roupa no varal rezando pra ter sol amanhã.

― Parece que vai ser igual hoje, meio nubloso e sol despistado e preguiçoso, só que o dia mais quente.

― Nem parece inverno, doido esse tempo. Li no jornal que junho passado foi a terceira vez que o mês teve aumento de temperatura em cinco anos, e isto não é normal. O analista comentou que no ártico o calor está tão forte que derreteu muito mais geleiras.

― Com o desmatamento que vemos por todo lado, primeiro na Amazônia, agora ameaçam também nossa mata atlântica. E não estou falando dos indígenas e quilombolas não, que eles têm sua técnica do uso da terra milenar. Falo dos destruidores da natureza, esses ilegais que se aproveitam da situação com mais de cento e vinte dias de quarentena para provocar incêndios criminosos. ― Josué mudou o assunto:

― Enquanto isso, estamos aqui com nossos corpos cansados, nessa falta de afeto, angustiados e perdidos pelas mortes constantes, com a esperança alimentada por medos e fantasmas e sentindo a solidão mais forte por causa do distanciamento. Eu que vivo aqui com você já sinto isso, evitamos nos aproximar muito, temos medo, afinal tenho de trabalhar e mesmo com esse cuidado é arriscado o contágio. O que vem acontecendo mudou a gente para sempre.

― Também estou impaciente, querendo passear na praia e vendo cada vez mais a possibilidade se distanciar. Quando a gente acha que estabilizou, as pessoas abusam e saem todas e tudo recomeça. Nosso país não tem estrutura e o governo tira o corpo fora.

― A gente vê os maus exemplos vindo de cima e nos levando ao poço profundo. Mas você viu que as famílias daqui já têm casos e até mortes, então tudo pode acontecer. ― respondeu Josué.

Bia saiu cantando rumo ao tanque:

Tristeza não tem fim, felicidade sim ...

a felicidade é como a pluma

que o vento vai levando pelo ar ...

a minha felicidade está sonhando

nos olhos da minha namorada

é como esta noite

passando, passando

em busca da madrugada ...

para que ela acorde alegre como o dia

oferecendo beijos de amor

tristeza não tem fim

felicidade sim

Josué então puxou o braço da mulher e os dois dançaram enquanto ela continuou a cantar. As risadas diminuíram o cansaço.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Por que a realidade existe do jeito que existe? (CENA 22)

Aquarela Ju Chagas Instagram.com@disfarcada

21/07/2020

No povoado as pessoas que podiam estar dentro de casa ficavam todas elas em apenas um ou dois cômodos. O que se via em cada barraco era o caos, se uma pessoa confirmava o coronavírus todos que habitavam ali ficavam sintomáticos também. Quando precisavam do sistema de saúde encontravam os corredores abarrotados de doentes, sofrendo mais risco a todos, ao pessoal da saúde e pacientes.

― Estamos no meio de julho com mais de oitenta mil mortes nas costas e mais de dois milhões de casos. Não sei mais o que fazer pra ajudar nossa gente. Ontem fui na casa de Penha e todos estão tossindo e com o corpo cansado, como sete pessoas vivendo num barraco tão pequeno poderiam se livrar desse vírus? Fizemos o mutirão da semana de casa em casa para suprir o mínimo necessário com alimento e remédio, mas a falta de água e saneamento têm dificultado a higiene. Josué, me diz, por que a realidade existe do jeito que existe?

― Bia, que pergunta. A realidade é essa na nossa frente. Pau pau, pedra pedra. É isso, está no concreto, de riso arreganhado pra nós entre vida e a morte. A nossa vida e a nossa morte parecem não importar aos poderosos. Ficam na aparência, mexendo as varetas na superfície, entretendo a população com os faz de conta. A gente sabe que se existe vida, existe a morte também, mas isso que estamos vendo tão escancarado na nossa cara, Bia, isso é fazer da nossa vida um joguete, uma roleta russa.

― Quando vamos encontrar o momento, o momento em que será diferente, da gente pegar o cabresto da besta e caminhar a história como se deve, quando é Josué, me diz, porque não quero viver sem esperança? ― Bia passou a mão na cabeça e caminhou até os cabelos encolhida na cadeira, após o dia estressante de visita aos casebres. ― Porque nosso povo está morrendo à míngua, Josué, está morrendo à míngua.

― O que tá acontecendo tem diversos lados, devemos ver todos eles. O povo escolheu o que temos aí sem atentar para o perigo, mesmo que a gente mostrasse, então essa é uma das nossas realidades atuais. O vírus chegou de fininho e a gripezinha já faz esse abismo onde atiram em covas rasas corpos e corpos de inocentes. Outra realidade atual. Enxergar a realidade é dureza, ver todos os lados é muito importante para a gente criticar a situação.

― Mas quem vê de forma correta nesse mundo consumista e egoísta em que vivemos, onde a gente enxerga a aparência seduzida por mercadorias e nem enxerga a si própria?

― Existe aqueles que não veem, mas existe os que veem e aí está a chance de mudar o rumo. Sei que não é fácil. Você vê como a gente tem dificuldade de trazer o nosso povoado para discussão de nossos problemas. Como podemos melhorar sem arrumar a casa? Josué falou e continuou:

― Você me fez lembrar a baleia orca, Bia. As orcas assassinas usam a inteligência para acuar outro animal. Mas nós temos inteligência superior à da orca, temos capacidade de pensar e construir uma nova realidade a cada dia, a cada dia uma linha, um nó, um tecer a rede, nesse movimento seguimos. ― Josué gesticulava tentando explicar. 

― Bia, eu falo pouco, mas é esse pouco que sei. Temos possibilidades. Mas mesmo desejos são finitos, não alcançaremos todos apenas por desejar. A gente vai construindo, de palavra em palavra, aonde uma palavra puxa outra e na liberdade de criar, a gente faz a história a partir do que existe porque só o que existe existe, diz o bruxo. E acredito nele!

quarta-feira, 15 de julho de 2020

VIDA (CENA 21)

13/07/2020

Osvaldo falou sem virar o rosto para Luiza após o trago mais puxado e a fumaça sair aos poucos entre palavra, como se libertasse de prisão interior.

― Também tenho me perguntado tanto sobre o que ando fazendo da vida, mas nesse momento específico em que vive nosso país, minha história é tão sem importância perto de tanta catástrofe coletiva no cotidiano. A perda de vida das pessoas mais carentes da sociedade em contraste com a desfaçatez e riso sarcástico de turmas de classe alta, as turmas que nunca crescem, sempre menores, idiotas, evocam mediocridade que se alarga nesses tempos. Além disso, a elite do atraso não evolui e sempre enxerga somente a própria cara, como Narciso, incapaz de reconhecer que país paupérrimo, decadente e que não cuida de sua gente traz consequências piores.

Como dar importância ao que me fere, se dia e noite temos notícias de capangas, capitães do mato, milicianos, grileiros, ferindo a nossa gente muito mais fundo, e principalmente com a perda da vida e as instituições continuam ausentes e colaboram com tais empreitadas. Agora ainda pior, a instituição responsável pelo cuidado de povos originários, um deles o seu povo, Luiza, a instituição responsável colabora para o crime, finge não ver, vai retirando a proteção necessária de indígenas e quilombolas, desses povos com direito inscrito na Constituição e esfacelado nesse governo. O Brasil não merece o Brasil com essa “força” que governa atualmente. É de uma burrice de não enxergar o próprio nariz.

Como preocupar com meu sono, a insônia, os pesadelos, eu que estou preso aqui nesse minúsculo lugar e nem idade tenho que me habilite a luta, a boa luta. Lá fora há pessoas que não conseguem dormir a muito, bem antes da pandemia, agora está mais exacerbado, quantas pessoas expulsas das ocupações urbanas e rurais, quantas famílias já não dormem há muitos, muitos séculos. Somos um país escravocrata e devemos sim e muito aos povos originários, e ainda mais e mais pois os pobres em sua maioria são negros e pardos, mulheres, essa população não tem nada de minoria, essa população é maioria.

Os meus risos e desejos são tão risíveis neste momento. Os parentes dos tantos que morreram e continuam morrendo, os ditos periféricos, os invisíveis, esses não têm condição de risos nos dias que correm, junto às lamas que já conhecemos, agora enlameados pela inércia de nada se fazer por aqueles que são levados pela pandemia do corona, inércia do governo, que muitos já consideram genocida.

Você e as meninas vem aqui, me trazem alimentos para o corpo. Enquanto grande maioria está faminta e não tem escolha, não tem escolha porque não tem dinheiro, não tem dinheiro apesar de existir alimento para comprar. O alimento necessário para sobrevivência não é mercadoria, é direito de todos, não apenas de ricos.

Eu posso reclamar de algo? Não mereço sequer a pergunta, me soa egoísta, minha saúde precária ainda faz de mim uma pessoa privilegiada, da minoria branca, que tem a propriedade privada, aposentadoria. Quantos não têm isso e nem terão por causa dessas escolhas do governo pelo capital financeiro, pelo neoliberalismo cruel. O governo quer destruir, é no que pensa, piorar ainda mais até que o povo mesmo diga, melhor vender pois traz prejuízo, é o que o corpo ministerial vem fazendo, dilapidando, desmontando, enfraquecendo, eliminando as poucas políticas públicas que levamos trinta anos para construir. Sei que a regressão custará caro ao país e como sempre o povo pagará a conta, os pobres ficarão mais pobres, a classe média ficará pobre também, mas ainda se julga da elite, dá vontade de rir dessa classe que é uma comédia e tão ignorante.

Aliás, te compreendo perfeitamente quando diz que está triste, deprimida e sem ação nesse momento. Eu o sinto. Mas e quantos não têm direito sequer de ter esses sentimentos. Eles precisam criar movimento para a sobrevivência, para apesar de tudo sobreviverem. Eles têm de caminhar na lama. Eles têm de caminhar no sangue que jorra no campo e nas cidades. Onde? Aonde estão os mais simples e que querem apenas viver. Eles querem apenas o direito de viver! É pedir muito?

― Valdo, você compreendeu, muito bom ter alguém que me entenda, e se preocupa com o coletivo. Você não pode cobrar tanto de você, ajuda no que pode, é solidário com a mãe do Bilico que por ser imigrante está desempregada e vive naquele pobre casebre, ajuda com cesta básica as pessoas do povoado da Prainha. Você faz muito com a pequena aposentadoria. É importante a gente estar atenta aos nossos privilégios, mas quantas pessoas estão aí preocupadas é com o bar, o salão, a academia, se vai abrir, quantos são os insanos, Valdo, e que convivem tão próximos de nós e para nosso pasmo? É vergonhoso esse momento que vivemos, vamos regredir e muito, talvez vinte anos ou mais por causa de decisões egoístas de governo que não sabe o que é amor, respeito, solidariedade, compromisso e muito mais. ― Luiza respondeu e continuou.

― Quantos estão como nós, fazendo o possível e ainda assim se sentindo pequeno? Mas é esse pequeno grão de solidariedade que vai levando possibilidade de vida aos imensos rincões aonde está o melhor do Brasil. Vamos continuar nossa estrada, Valdo, vamos resistir. O povo não desiste.

A vontade de Luiza é correr até Osvaldo, mas compreensiva dos riscos, apenas levantou os braços na direção dele como se fosse dar um grande abraço amigo e disse:

― Vamos ser fortes e lutar e resistir e chamar todos à luta pela vida e liberdade de viver, a liberdade construída pelo povo. Vamos Valdo, ser rebeldia!

quinta-feira, 9 de julho de 2020

intimidades (CENA 20)

06/07/2020

            Osvaldo e Luiza saborearam a delícia junina em silêncio. Depois colocaram as máscaras.

― E pensar, Valdo, que as coisas lá fora estão tão terríveis, mais de cinquenta e sete mil mortes até ontem, vinte oito de junho, que horror! Já pensou se contabilizado o real?

― Dizem que se pode multiplicar por dez, outros dizem cinco. O número é assustador. Incrível é Taiwan com quatrocentos e quarenta casos e sete mortes. Eles ficaram dois meses sem casos. Lá houve ação rápida e efetiva do governo e população colaborou, além de terem estrutura organizada. Enquanto aqui...

― Continua a desinformação. ― Luiza completou.

            Osvaldo foi à cozinha e trouxe dois copos com bebida quente. Levou à mesa e o aroma fez que fugissem por instantes.

― Até quentão! Cozinheiro de mão cheia, hum, que delícia esse cheiro de gengibre! Não posso beber muito, tenho de ir pra casa.

― Fiz pé de moleque também, sobremesa. O quentão está fraquinho, usei cachaça de Minas, afinal, festa junina sem estilo mineiro não tem graça, uai. Mas agora te confesso que a vontade mesmo é de pitar. Vamos pra varanda? Fico num cantinho e você mais próxima à porta, leva seu copo.

A cadeira confortável, a bebida, o encontro.

― Que delícia de canto, Valdo, você tem razão de gostar daqui, que paisagem! Essa mata aqui detrás faz a gente querer ficar quietinha e esquecer as agruras. No meu, vejo só aridez do concreto.

― Posso fumar descansado. Não fumo lá dentro, coloquei essa regra e cumpro. Na verdade, deveria mesmo é cortar esse maldito, sou fraco e descuidado comigo. Fico aqui conversando com ele, imaginando às vezes a presença doce de minha mãe e de meu irmão. Sinto falta deles.

― Valdo, você não é de falar sobre sua vida, né, entendo, tem tanta coisa que fica cravada na garganta.

― Senti algo quando toquei sobre casamento. Você ficou pensativa. Já se casou alguma vez?

― Vim pra cá em busca de paz, Valdo. Tentei esquecer a história do meu passado, mas ela me persegue aonde vou.

― Oh Luiza, desculpa meu atrevimento.

― Pra você não tenho receio de falar da minha experiência. Tudo que quiser perguntar pode falar sem medo de me magoar. Esses dias ando muito emotiva, muitas coisas me entristecem com a situação que vivemos. Fico triste com filme, música... Mas vai passar. Eu vou melhorar e quem sabe te falo talvez numa próxima vez. Vai ser bom desabafar. É bom ter um amigo tão longe de casa.

domingo, 5 de julho de 2020

afinidades (CENA 19)

            29 06 2020
― Luiza, pode ficar um pouco aqui em casa quando vier com compras? ― Osvaldo enviou mensagem e em seguida ela respondeu:
― Valdo, esqueceu do corona? É deixar as compras e sair rápido. Não posso nem entrar, não convém.
― Faz exceção, está bem? Traz roupa extra e logo que chegar vai pro banho e mesmo assim a gente mantém distância, prometo. Tenho surpresa. Eu não mordo, não, fica tranquila. ― Osvaldo digitou risada.
― Não prometo nada. A gente não pode vacilar nos cuidados. Amanhã, depois das cinco chego na sua casa. Abraço. ― Luiza saiu do aplicativo.

Luiza tocou campainha. Osvaldo abriu a porta e logo deu passos para trás, dizendo:
― O álcool e papel toalha estão próximos à porta. Passe nas mãos e nas sacolas, por favor. Tem um chinelo pra você, largue o calçado do lado de fora, e borrife um pouco de álcool nele, pra garantir. Trouxe roupa, né? Não fale ainda, vai direto pro banheiro sem tocar em nada. Lá tem um saco pra você colocar roupa suja, viu? ― Luiza meneou a cabeça.
Enquanto isso, Osvaldo limpou as mercadorias. Preparou o ambiente da sala e com respiração compassada, viu quando Luiza saiu do banho enxugando o cabelo, a pele morena de origem indígena sobressaía na roupa clara. Ela colocou a toalha no saco e lacrou, passou álcool no volume, nas mãos e com riso amistoso, sentou onde ele indicava. À mesa, água, copo, prato, talheres, guardanapo, tudo simples e organizado. Após tomar o líquido, colocou máscara limpa.
― Valdo, que atrevimento nosso. Parecemos dois adolescentes irresponsáveis. Você é louco! Eu sou louca! ― Os dois mascarados riram.
― Luiza, não creio. Tomamos todas precauções, a gente escuta coisas piores acontecendo ao redor. E é tão bom ter alguém pra conversar, mesmo que a essa distância. Conta as novidades.
― Tem razão quando diz que acontecem coisas absurdas. Tenho presenciado cada atitude que, se o vírus estivesse por perto, sei não, só Deus pra proteger. ― E começou a contar enquanto Osvaldo ia e voltava à cozinha:

Luiza foi com a amiga até a imobiliária. Com a pandemia, a moça não teve opção e rescindiu contrato do pequeno apartamento, pois sem dinheiro e emprego precário cancelado, voltou morar com a mãe. As duas usaram álcool nas mãos conforme exigiu a moça da recepção. Notaram que a recepcionista usava a máscara abaixo do nariz e enquanto buscava dados no computador, tocava mão na face e máscara o tempo todo. As amigas se entreolharam e logo foram avisadas que a chamada seria por nome. A amiga de Luiza, ansiosa, não permitiu que ela tocasse em nada, nem sentasse, e cautelosas conversavam o restritamente necessário. Ficaram observando. O local preparado para atendimento aos clientes com faixas pelo chão delimitando distância preventiva. Elas viam pessoas desobedecendo o limite e ficando cara a cara com atendente, ou conversando animadamente com máscaras finas e mal colocadas. Em seguida, chegou um casal, a mulher carregando bebê, de máscara abaixo do nariz, o marido e o bebê sem nenhuma proteção. A mulher sentou numa cadeira sem pedir limpeza, automaticamente. Que loucura desses dois, trazer bebê num período tão crítico. Não devem ter com quem deixar, Luiza comentou. Quando chamada, Luiza acompanhou amiga e sequer sentaram. Respeitaram a faixa e logo perguntaram à atendente se era possível a finalização do contrato por email, quanto mais rápido a gente sair, melhor. A moça disse que sim. Estranharam não ter álcool gel à mesa e perguntaram. A atendente comentou, os funcionários correm mais riscos que cliente, pois ficamos aqui dia inteiro, com a mesma máscara, e somente nos primeiros dias tinha álcool gel às mesas, agora somente na recepção. As amigas visualizaram à frente uma senhora idosa portando máscara de qualidade, a todo momento arrumava e, às vezes, puxava a máscara para boa respirada. Saíram do local comentando, como está perigoso para quem precisa trabalhar.
Logo em seguida se dirigiram ao cartório para reconhecimento de firma, mesmo na pandemia, um serviço essencial. Ao chegar, álcool gel nas mãos. Convidadas a sentar, solicitaram higienização das cadeiras e ficaram antenadas. Chegou um senhor assobiando até à entrada. Colocou máscara quando à porta. O braço direito imobilizado por tipoia dificultou a limpeza das mãos. A moça mostrou a cadeira para ele, que se sentou e colocou o envelope numa mesa próxima que nem sequer sabia se limpa. Passou o álcool nas mãos e pegou o objeto. Em atendimento no primeiro guichê, outro senhor de idade conversava desde que elas chegaram, e por mais de quinze minutos, com máscara comum, tagarelava. A atendente escutava. Noutro guichê a responsável atendia mulher vistosa com mais de sessenta anos, e em seguida disse alto para a colega, falei pra ela que é a terceira pessoa hoje a pedir pra casar de novo. E a senhora respondeu, é a terceira vez que tento. Olha o preço aí pra mim, que se for caro vou desistir e ficar sem casar mesmo. A moça do primeiro guichê, onde agora estavam Luiza e a amiga, respondeu, isso é barato. O importante é tentar, não importa quanto. O que vale é buscar felicidade. Na saída Luiza comentou com a amiga, aquelas trabalhadoras estão com máscara inadequada, a área entre nariz e rosto a descoberto, se aparecer alguém com corona são presas fáceis.

― Então é assim, Valdo. A pessoa necessita trabalhar e corre alto risco enquanto o patrão pensa apenas em lucrar, não importa às custas de quem.
― Que animação daquela sessentona, hein, Luiza! ― Parou de falar e fez silêncio ao pegar e colocar vasilha com canjica bem quentinha à mesa. Distanciou-se e disse, ― a canela está aí, se quiser mais. Vamos comemorar!

― Eu nem penso nisso mais. Casamento já era pra mim. ― Luiza, que de pensativa após a frase, deu risada ao ver a fumaça perfumando o ambiente, ― que surpresa estupenda, como adivinhou minha paixão por festa junina?