quarta-feira, 15 de julho de 2020

VIDA (CENA 21)

13/07/2020

Osvaldo falou sem virar o rosto para Luiza após o trago mais puxado e a fumaça sair aos poucos entre palavra, como se libertasse de prisão interior.

― Também tenho me perguntado tanto sobre o que ando fazendo da vida, mas nesse momento específico em que vive nosso país, minha história é tão sem importância perto de tanta catástrofe coletiva no cotidiano. A perda de vida das pessoas mais carentes da sociedade em contraste com a desfaçatez e riso sarcástico de turmas de classe alta, as turmas que nunca crescem, sempre menores, idiotas, evocam mediocridade que se alarga nesses tempos. Além disso, a elite do atraso não evolui e sempre enxerga somente a própria cara, como Narciso, incapaz de reconhecer que país paupérrimo, decadente e que não cuida de sua gente traz consequências piores.

Como dar importância ao que me fere, se dia e noite temos notícias de capangas, capitães do mato, milicianos, grileiros, ferindo a nossa gente muito mais fundo, e principalmente com a perda da vida e as instituições continuam ausentes e colaboram com tais empreitadas. Agora ainda pior, a instituição responsável pelo cuidado de povos originários, um deles o seu povo, Luiza, a instituição responsável colabora para o crime, finge não ver, vai retirando a proteção necessária de indígenas e quilombolas, desses povos com direito inscrito na Constituição e esfacelado nesse governo. O Brasil não merece o Brasil com essa “força” que governa atualmente. É de uma burrice de não enxergar o próprio nariz.

Como preocupar com meu sono, a insônia, os pesadelos, eu que estou preso aqui nesse minúsculo lugar e nem idade tenho que me habilite a luta, a boa luta. Lá fora há pessoas que não conseguem dormir a muito, bem antes da pandemia, agora está mais exacerbado, quantas pessoas expulsas das ocupações urbanas e rurais, quantas famílias já não dormem há muitos, muitos séculos. Somos um país escravocrata e devemos sim e muito aos povos originários, e ainda mais e mais pois os pobres em sua maioria são negros e pardos, mulheres, essa população não tem nada de minoria, essa população é maioria.

Os meus risos e desejos são tão risíveis neste momento. Os parentes dos tantos que morreram e continuam morrendo, os ditos periféricos, os invisíveis, esses não têm condição de risos nos dias que correm, junto às lamas que já conhecemos, agora enlameados pela inércia de nada se fazer por aqueles que são levados pela pandemia do corona, inércia do governo, que muitos já consideram genocida.

Você e as meninas vem aqui, me trazem alimentos para o corpo. Enquanto grande maioria está faminta e não tem escolha, não tem escolha porque não tem dinheiro, não tem dinheiro apesar de existir alimento para comprar. O alimento necessário para sobrevivência não é mercadoria, é direito de todos, não apenas de ricos.

Eu posso reclamar de algo? Não mereço sequer a pergunta, me soa egoísta, minha saúde precária ainda faz de mim uma pessoa privilegiada, da minoria branca, que tem a propriedade privada, aposentadoria. Quantos não têm isso e nem terão por causa dessas escolhas do governo pelo capital financeiro, pelo neoliberalismo cruel. O governo quer destruir, é no que pensa, piorar ainda mais até que o povo mesmo diga, melhor vender pois traz prejuízo, é o que o corpo ministerial vem fazendo, dilapidando, desmontando, enfraquecendo, eliminando as poucas políticas públicas que levamos trinta anos para construir. Sei que a regressão custará caro ao país e como sempre o povo pagará a conta, os pobres ficarão mais pobres, a classe média ficará pobre também, mas ainda se julga da elite, dá vontade de rir dessa classe que é uma comédia e tão ignorante.

Aliás, te compreendo perfeitamente quando diz que está triste, deprimida e sem ação nesse momento. Eu o sinto. Mas e quantos não têm direito sequer de ter esses sentimentos. Eles precisam criar movimento para a sobrevivência, para apesar de tudo sobreviverem. Eles têm de caminhar na lama. Eles têm de caminhar no sangue que jorra no campo e nas cidades. Onde? Aonde estão os mais simples e que querem apenas viver. Eles querem apenas o direito de viver! É pedir muito?

― Valdo, você compreendeu, muito bom ter alguém que me entenda, e se preocupa com o coletivo. Você não pode cobrar tanto de você, ajuda no que pode, é solidário com a mãe do Bilico que por ser imigrante está desempregada e vive naquele pobre casebre, ajuda com cesta básica as pessoas do povoado da Prainha. Você faz muito com a pequena aposentadoria. É importante a gente estar atenta aos nossos privilégios, mas quantas pessoas estão aí preocupadas é com o bar, o salão, a academia, se vai abrir, quantos são os insanos, Valdo, e que convivem tão próximos de nós e para nosso pasmo? É vergonhoso esse momento que vivemos, vamos regredir e muito, talvez vinte anos ou mais por causa de decisões egoístas de governo que não sabe o que é amor, respeito, solidariedade, compromisso e muito mais. ― Luiza respondeu e continuou.

― Quantos estão como nós, fazendo o possível e ainda assim se sentindo pequeno? Mas é esse pequeno grão de solidariedade que vai levando possibilidade de vida aos imensos rincões aonde está o melhor do Brasil. Vamos continuar nossa estrada, Valdo, vamos resistir. O povo não desiste.

A vontade de Luiza é correr até Osvaldo, mas compreensiva dos riscos, apenas levantou os braços na direção dele como se fosse dar um grande abraço amigo e disse:

― Vamos ser fortes e lutar e resistir e chamar todos à luta pela vida e liberdade de viver, a liberdade construída pelo povo. Vamos Valdo, ser rebeldia!

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