13/07/2020
Osvaldo
falou sem virar o rosto para Luiza após o trago mais puxado e a fumaça sair aos
poucos entre palavra, como se libertasse de prisão interior.
―
Também tenho me perguntado tanto sobre o que ando fazendo da vida, mas nesse
momento específico em que vive nosso país, minha história é tão sem importância
perto de tanta catástrofe coletiva no cotidiano. A perda de vida das pessoas
mais carentes da sociedade em contraste com a desfaçatez e riso sarcástico de turmas
de classe alta, as turmas que nunca crescem, sempre menores, idiotas, evocam
mediocridade que se alarga nesses tempos. Além disso, a elite do atraso não
evolui e sempre enxerga somente a própria cara, como Narciso, incapaz de
reconhecer que país paupérrimo, decadente e que não cuida de sua gente traz
consequências piores.
Como
dar importância ao que me fere, se dia e noite temos notícias de capangas,
capitães do mato, milicianos, grileiros, ferindo a nossa gente muito mais
fundo, e principalmente com a perda da vida e as instituições continuam
ausentes e colaboram com tais empreitadas. Agora ainda pior, a instituição
responsável pelo cuidado de povos originários, um deles o seu povo,
Luiza, a instituição responsável colabora para o crime, finge não ver, vai retirando
a proteção necessária de indígenas e quilombolas, desses povos com direito inscrito
na Constituição e esfacelado nesse governo. O Brasil não merece o Brasil com
essa “força” que governa atualmente. É de uma burrice de não enxergar o próprio
nariz.
Como
preocupar com meu sono, a insônia, os pesadelos, eu que estou preso aqui nesse
minúsculo lugar e nem idade tenho que me habilite a luta, a boa luta. Lá fora
há pessoas que não conseguem dormir a muito, bem antes da pandemia, agora está
mais exacerbado, quantas pessoas expulsas das ocupações urbanas e rurais,
quantas famílias já não dormem há muitos, muitos séculos. Somos um país
escravocrata e devemos sim e muito aos povos originários, e ainda mais e mais pois os
pobres em sua maioria são negros e pardos, mulheres, essa população não tem
nada de minoria, essa população é maioria.
Os
meus risos e desejos são tão risíveis neste momento. Os parentes dos tantos que
morreram e continuam morrendo, os ditos periféricos, os invisíveis, esses não
têm condição de risos nos dias que correm, junto às lamas que já conhecemos,
agora enlameados pela inércia de nada se fazer por aqueles que são levados pela
pandemia do corona, inércia do governo, que muitos já consideram
genocida.
Você
e as meninas vem aqui, me trazem alimentos para o corpo. Enquanto grande
maioria está faminta e não tem escolha, não tem escolha porque não tem
dinheiro, não tem dinheiro apesar de existir alimento para comprar. O alimento
necessário para sobrevivência não é mercadoria, é direito de todos, não apenas
de ricos.
Eu
posso reclamar de algo? Não mereço sequer a pergunta, me soa egoísta, minha
saúde precária ainda faz de mim uma pessoa privilegiada, da minoria branca, que
tem a propriedade privada, aposentadoria. Quantos não têm isso e nem terão por
causa dessas escolhas do governo pelo capital financeiro, pelo neoliberalismo
cruel. O governo quer destruir, é no que pensa, piorar ainda mais até que o
povo mesmo diga, melhor vender pois traz prejuízo, é o que o corpo ministerial
vem fazendo, dilapidando, desmontando, enfraquecendo, eliminando as poucas
políticas públicas que levamos trinta anos para construir. Sei que a regressão
custará caro ao país e como sempre o povo pagará a conta, os pobres ficarão
mais pobres, a classe média ficará pobre também, mas ainda se julga da elite,
dá vontade de rir dessa classe que é uma comédia e tão ignorante.
Aliás,
te compreendo perfeitamente quando diz que está triste, deprimida e sem ação
nesse momento. Eu o sinto. Mas e quantos não têm direito sequer de ter esses
sentimentos. Eles precisam criar movimento para a sobrevivência, para apesar de
tudo sobreviverem. Eles têm de caminhar na lama. Eles têm de caminhar no sangue
que jorra no campo e nas cidades. Onde? Aonde estão os mais simples e que querem
apenas viver. Eles querem apenas o direito de viver! É pedir muito?
―
Valdo, você compreendeu, muito bom ter alguém que me
entenda, e se preocupa com o coletivo. Você não pode cobrar tanto de você,
ajuda no que pode, é solidário com a mãe do Bilico que por ser imigrante está desempregada e vive naquele pobre casebre, ajuda com cesta básica as pessoas do povoado da
Prainha. Você faz muito com a pequena aposentadoria. É importante a gente estar
atenta aos nossos privilégios, mas quantas pessoas estão aí preocupadas é com o bar, o salão, a academia, se vai abrir, quantos são os insanos,
Valdo, e que convivem tão próximos de nós e para nosso pasmo? É vergonhoso esse
momento que vivemos, vamos regredir e muito, talvez vinte anos ou mais por
causa de decisões egoístas de governo que não sabe o que é amor, respeito,
solidariedade, compromisso e muito mais. ― Luiza respondeu e continuou.
―
Quantos estão como nós, fazendo o possível e ainda assim se sentindo pequeno?
Mas é esse pequeno grão de solidariedade que vai levando possibilidade de vida
aos imensos rincões aonde está o melhor do Brasil. Vamos continuar nossa
estrada, Valdo, vamos resistir. O povo não desiste.
A
vontade de Luiza é correr até Osvaldo, mas compreensiva dos riscos, apenas levantou os braços na direção dele como se fosse dar um grande abraço amigo e disse:
― Vamos ser fortes e lutar e resistir e chamar todos à luta pela vida e liberdade de viver, a liberdade construída pelo povo. Vamos Valdo, ser rebeldia!
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