GÊNESIS TECNOLÓGICO
30/04/2019
À
medida que lia a mensagem no whatsapp o coração acelerava. Quando terminou a
leitura lágrimas emergiram. Não conversava
com ninguém. Ninguém estava à sua frente. Eram apenas mensagens de um ser
tecnológico, o celular, que reproduzia palavra e linguagem ao toque do
teclado. E sofria ao ler?
Do outro lado a pessoa que enviara a
mensagem, esta sim de carne e osso, mas o celular, aparelho sem
sentimento, sem emoção, sem pingo de sensibilidade e humanidade.
Chorou durante algum tempo. Há tanto tempo
não chorava. Não que achasse
incorreto fazê-lo, mas com qual objetivo? Limpeza dos olhos, limpeza da
angústia, ou satisfação pelo derramamento? Na verdade definiu que a pressão
interior estava intensa. Talvez lágrimas
depressivas, talvez lágrimas de tristeza, talvez lágrimas de alegria.
Quisera
estar lá enquanto a mensagem se processava. Imaginava.
Imaginou Mafalda frente ao computador.
Novos
tempos, onde a máquina vem substituindo pessoas, convivência. Oito horas de
trabalho frente à luz fria que lhe rebatia nos olhos. Aceitou o trabalho nas
condições impostas: contrato, sem direitos trabalhistas, necessidade de
torna-se Mafalda, ela própria a própria empresária e trabalhadora, salário abaixo do de
mercado. O celular indicava mensagens ativas, não poderia verificar mensagens
pessoais no período de trabalho, apenas aquelas destinadas à solução do
problema empresarial. No intervalo para descanso, Mafalda leu a mensagem da mãe.
Mãe: Não sei se poderei viajar, dependerá do que está se
desenvolvendo neste momento, sua irmã não anda nada bem, seu pai fazendo
exames. Não comentei com ninguém a intenção de viajar, e dependendo do
desfechar, talvez deva cancelar.
Durante a tarde a mãe distraíra-se com atividades. Até esquecera
que enviara a dúvida para a filha, tão preocupada com preparativos que lhe
infernizavam a mente: fazer isso, deixar aquilo, prazo de pagamento, não
esquecer o IR, o que levar, como levar, como contar, qual momento, como
receberão a notícia, enfim, deixar tudo organizado para que gerissem o que
era sua responsabilidade.
Olhou o celular, nova gênese que se imiscuiu entre
nós, entre todo mundo, em mim, na mãe, em Mafalda, trazendo consequências tão nefastas, e por
outro lado dando oportunidade de comunicar-se com quem está à distância. A mãe colocou a senha pessoal para entrar no mundo virtual. O mundo frio, de
técnicas algorítmicas que resultam em informação onde quer que as pessoas
estejam. A mãe entrou, e on line, inicialmente fria também, objetiva, ler mensagens,
tantos grupos, tantos aplicativos, tantas manobras para alcançar a alma humana e
ao mesmo tempo se distanciar dela. Em seguida, a mãe abriu o whatsapp da filha.
Filha: Mãe, você vai
fazer a viagem sim. Para de se preocupar com todo mundo, afinal você tem o direito de pensar em si mesma. As pessoas não são suas dependentes a
vida inteira. Não se atreva a cancelar a viagem que planeja a
tanto tempo.
A mãe ficou imaginando a filha escrevendo cada palavra, e demonstrando ansiedade na busca das letras na rapidez do século XXI. Lágrimas e soluços, chegara ao fim da mensagem sensibilizada.
Percebera, tivera a impressão de que agora ocorria o inverso, ela era a filha. A filha, a mãe.