26/10/2019
Folha
em branco, como brotar o conto?
Sentou
ao computador. Quinze minutos. Vinte. Trinta. E nada. Ao conflito juntou angústia
e as tão comuns, ansiedade e tensão. Em seguida, agitação. Levantou, sentou,
levantou e iniciou...
Como
é mesmo a palavra? Foi ao dicionário digital à procura de sinônimo específico.
Lá estavam: passadas, pegadas, passagens, movimentos, marcha, andar. Levantou e iniciou pisadelas ao redor da mesa.
Quem sabe caminhando o tema brotasse. Sem sinal.
Desligou
o aparelho e saiu.
Durante
o trajeto passou por duas mulheres de meia idade, vestidas com roupas de
ginástica:
―
Ela não sabe o que fazer quando...
Elíada
não ouviu o restante. À frente, atravessou uma calçada em reforma, tropeçou no
fio de nylon que marcava o prumo. Linha invisível aos olhos cansados. Continuou
a marcha. O ponto de ônibus cheio de trabalhadores que saiam das obras. Ao ver uma
enorme folha de palmeira cheia d’água, entornou a água e virou a folha, pensou ‘não se pode dar moleza
ao mosquito que provoca Dengue, Zika e Chikungunya’.
A
tarde nublada passou a límpida. Parou na academia da cidade, exercitou e
escutou o moço ao celular, nada entendeu. Tem muitos haitianos trabalhando
próximo ao local. Seguiu até à praia caminhando logo atrás de um casal com
duas crianças:
―
Quero ir ali. ― a menininha exigindo.
―
O brinquedo está fechado lá dentro. Não tem ninguém. ― A mãe explicou com
calma.
―
Para abrir é preciso chave. A gente não tem a chave. ― o irmãozinho completou.
―
Não tem jeito. Está fechado. Maracujá! ― O marido apontou.
―
É maracujá? Quantos brotos. ― A mulher respondeu.
Na
lateral havia uma cerca viva da trepadeira Alamanda, de flores amarelas. Elíada
riu consigo mesma, pois ambas plantas sequer se assemelhavam.
Entrou
na passarela. Pisou na areia. Olhou a paisagem, o mar então azul esbarrando no
céu. Alguns banhistas se atrevendo à água fria.
De
volta à casa, um casal discutia:
―
Ela tem dúvida se ele conseguirá fazer o que ela deseja. Ele não é do tipo. ― A
mulher disse.
Elíada
chegou à esquina de casa. Os vidros das janelas pareciam limpos. Mais de perto ela
notou a ilusão de ótica.
Resolveu
escrever o acontecido. E enquanto escrevia, percebia que as situações poderiam
auxiliar na escrita. Encontrou nuances interessantes. O olhar voltado aos
diversos estímulos, captando o ambiente. A pesquisa em busca de palavras
apropriadas. Jogar fora excessos, visando a limpeza. O ouvido atento. Os
sentimentos que fluíam. Paisagem. Indagações sem continuidade. Diálogos.
Mentira. Ironia. Ilusão de ótica.
Sentou-se
exausta no banco da praça. O homem caminhou em sua direção.
―
Posso me sentar?
―
Claro. ― Elíada retirou o livro e a bolsa do local.
―
Vejo que gosta de ler. Eu escrevo.
―
Estou numa encruzilhada. Tenho a página em branco e não encontro o tom. Como consegue?
―
Escrever ficção é ato de humanidade. As situações da vida. Os sentimentos. As
questões existenciais. As experiências do dia a dia. Os conflitos. As
frustrações. A atenção. A maldita folha em branco está à sua frente e ninguém
te obriga a escrever. Mas você teima. Um dia, você irá morrer, e algo de você
continuará. A literatura. Ela vive, forja histórias de todos os estilos, para
todos os gostos, diversos matizes.
―
Faz parecer simples, como passe de mágica.
―
A simplicidade é complexa. As relações entre as pessoas. As vivências no
tempo-espaço. A presença da sensibilidade, muita leitura, expressar com
franqueza necessita da experiência vivida. E colocar no papel a primeira
impressão é importante, depois vem a crítica, o trabalho árduo da confecção.
―
Como dar vazão a isso?
―
É um processo que aos poucos você vai tecendo e se envolvendo. Vai trazendo algo
das experiências individuais, dos aspectos emocionais e daí construindo
personagens. Eles parecem pessoas de verdade, por que a história é criada a
partir da dor, da sensação do que se passa à pele. É fruto da imaginação humana.
A personagem sente, sofre, chora, ri, transmite o que você, eu, aquele sujeito
ali sentimos. Crie narrativas que se irradiem a partir de seus personagens.
Permita-se errar. Enfrente a página. Você a controla.
―
A gente pensa que escritores nascem prontos, não é?
―
Como semideuses. Mas não. A construção é intensa, dolorosa, exigente. O retorno
nos dará os que nos leem. O importante mesmo para o escritor é ser lido, a
incessante aventura merece continuar.
O sonho foi interrompido com batidas à porta. Elíada
assustou-se com o quarto escuro, somente a luz do computador iluminava a página
em branco.