quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Página em branco?

26/10/2019
Folha em branco, como brotar o conto?
Sentou ao computador. Quinze minutos. Vinte. Trinta. E nada. Ao conflito juntou angústia e as tão comuns, ansiedade e tensão. Em seguida, agitação. Levantou, sentou, levantou e iniciou...
Como é mesmo a palavra? Foi ao dicionário digital à procura de sinônimo específico. Lá estavam: passadas, pegadas, passagens, movimentos, marcha, andar.  Levantou e iniciou pisadelas ao redor da mesa. Quem sabe caminhando o tema brotasse. Sem sinal.
Desligou o aparelho e saiu.
Durante o trajeto passou por duas mulheres de meia idade, vestidas com roupas de ginástica:
― Ela não sabe o que fazer quando...
Elíada não ouviu o restante. À frente, atravessou uma calçada em reforma, tropeçou no fio de nylon que marcava o prumo. Linha invisível aos olhos cansados. Continuou a marcha. O ponto de ônibus cheio de trabalhadores que saiam das obras. Ao ver uma enorme folha de palmeira cheia d’água, entornou a água e virou a folha, pensou ‘não se pode dar moleza ao mosquito que provoca Dengue, Zika e Chikungunya’.
A tarde nublada passou a límpida. Parou na academia da cidade, exercitou e escutou o moço ao celular, nada entendeu. Tem muitos haitianos trabalhando próximo ao local. Seguiu até à praia caminhando logo atrás de um casal com duas crianças:
― Quero ir ali. ― a menininha exigindo.
― O brinquedo está fechado lá dentro. Não tem ninguém. ― A mãe explicou com calma.
― Para abrir é preciso chave. A gente não tem a chave. ― o irmãozinho completou.
― Não tem jeito. Está fechado. Maracujá! ― O marido apontou.
― É maracujá? Quantos brotos. ― A mulher respondeu.
Na lateral havia uma cerca viva da trepadeira Alamanda, de flores amarelas. Elíada riu consigo mesma, pois ambas plantas sequer se assemelhavam.
Entrou na passarela. Pisou na areia. Olhou a paisagem, o mar então azul esbarrando no céu. Alguns banhistas se atrevendo à água fria.
De volta à casa, um casal discutia:
― Ela tem dúvida se ele conseguirá fazer o que ela deseja. Ele não é do tipo. ― A mulher disse.
Elíada chegou à esquina de casa. Os vidros das janelas pareciam limpos. Mais de perto ela notou a ilusão de ótica.
Resolveu escrever o acontecido. E enquanto escrevia, percebia que as situações poderiam auxiliar na escrita. Encontrou nuances interessantes. O olhar voltado aos diversos estímulos, captando o ambiente. A pesquisa em busca de palavras apropriadas. Jogar fora excessos, visando a limpeza. O ouvido atento. Os sentimentos que fluíam. Paisagem. Indagações sem continuidade. Diálogos. Mentira. Ironia. Ilusão de ótica.


Sentou-se exausta no banco da praça. O homem caminhou em sua direção.
― Posso me sentar?
― Claro. ― Elíada retirou o livro e a bolsa do local.
― Vejo que gosta de ler. Eu escrevo.
― Estou numa encruzilhada. Tenho a página em branco e não encontro o tom. Como consegue?
― Escrever ficção é ato de humanidade. As situações da vida. Os sentimentos. As questões existenciais. As experiências do dia a dia. Os conflitos. As frustrações. A atenção. A maldita folha em branco está à sua frente e ninguém te obriga a escrever. Mas você teima. Um dia, você irá morrer, e algo de você continuará. A literatura. Ela vive, forja histórias de todos os estilos, para todos os gostos, diversos matizes.
― Faz parecer simples, como passe de mágica.
― A simplicidade é complexa. As relações entre as pessoas. As vivências no tempo-espaço. A presença da sensibilidade, muita leitura, expressar com franqueza necessita da experiência vivida. E colocar no papel a primeira impressão é importante, depois vem a crítica, o trabalho árduo da confecção.
― Como dar vazão a isso?
― É um processo que aos poucos você vai tecendo e se envolvendo. Vai trazendo algo das experiências individuais, dos aspectos emocionais e daí construindo personagens. Eles parecem pessoas de verdade, por que a história é criada a partir da dor, da sensação do que se passa à pele. É fruto da imaginação humana. A personagem sente, sofre, chora, ri, transmite o que você, eu, aquele sujeito ali sentimos. Crie narrativas que se irradiem a partir de seus personagens. Permita-se errar. Enfrente a página. Você a controla.
― A gente pensa que escritores nascem prontos, não é?
― Como semideuses. Mas não. A construção é intensa, dolorosa, exigente. O retorno nos dará os que nos leem. O importante mesmo para o escritor é ser lido, a incessante aventura merece continuar.


 O sonho foi interrompido com batidas à porta. Elíada assustou-se com o quarto escuro, somente a luz do computador iluminava a página em branco.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A CRISE É MORAL

22/10/2019

Sentada ao computador, ela passa horas na mesma posição, às vezes, esquece até mesmo de movimentar as pernas. O olhar se volta para fora vez em quando. O ipê-rosa ao sabor do vento. Uma única flor em pendão. Os ventos de outubro soçobram e as folhas se sentem embaladas. Resolve levantar e chegar à sacada, um princípio de tarde, quando vê o homem caminhando com dificuldade devido à idade. Escora o braço no parapeito e decide:

            ― Olá? ― diz no tom alto.
            ― Bom dia, como vai? ― o homem responde.
            ― Sabe que te invejo. Todos os dias te vejo passar, caminhando.
            ― Caminhar faz bem. É importante para a saúde.
            ― Estou precisando.
            ­― Podemos caminhar juntos.
            ― Qualquer dia vou.
            Ambos se apresentam. Ele faz questão de frisar, “com dois pês”. E continua:
            ― Aí tem café?
            ― Tem. Aparece qualquer hora. Vou gostar. O marido também.
            ― É catarinense?
            ― Mineira, de Belo Horizonte. E você?
            ― Paulista. Estou aqui há mais de quarenta anos. Conheço algumas cidades mineiras.
    ― São Paulo também tem o lado bom.
    ― Eu venho do Tribunal de contas da União, trabalhei no caso Lalau, lembra dele?
    ― Claro. Mas ainda existem muitos “lalaus” por aí.
            ― A crise é moral.
            ― De valores. Ando lendo o livro 'Privataria Tucana' e lá está cheio de “lalaus”.
   ― Falam que a crise é econômica. Mas, é moral.
   ― Qualquer dia você me chama que vamos caminhar juntos. Bater um bom papo. Aparece mesmo para o café.
   ― Até logo!

O homem continua o caminho. Ela volta ao computador.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

PROIBIDO PARA MENORES


15/10/2019
As pernas amoleceram, logo após o estremecimento do corpo. Conhecia o prazer. Poderia identificar este em especial. Várias onomatopeias saíram dos lábios em um processo que se complementava graças aos diversos sentidos. Os olhos abriam e fechavam em consonância com o prazer, o olfato trazia o aroma do tempo, o toque dos dedos na pele macia, em movimentos de vai-volta, traziam à mente tantas lembranças.

A respiração, de lenta e tranquila, acelerando progressivamente. Sentia vibrante todo o corpo, de forma convulsiva. O calor da pele. As tentativas de manter apertado junto ao corpo não possibilitava trégua e o riso de prazer se estendendo. Até um ponto em que o auge chegou. Não gostaria que tivesse fim.

O coelho pequeno e peludo em sua moradia. Ao relembrar a infância e a primeira vez que tocou o animalzinho, sentiu emoção indescritível. Ela tinha medo do toque e as pernas bambearam. O corpo tremeu à experiência. Quanta excitabilidade poder amaciar os pelos, e finalmente se atrever a tirar o bicho. Emitiu vários sons indefinidos enquanto tentava delicadamente carregar o coelho. Suava frio e a respiração de branda a acelerada. Logo ele estava em seu colo, vontade de não soltar mais. E sorria ao calor do contato. Os dois, bicho e menina, em afinidade. Lembranças.

Voltou à realidade, àquele instante déjà vu de sua existência. Experimentava sentimentos conhecidos. Abriu a portinhola e tentou segurar. O coelho se esforçava fugir, e ela, em mantê-lo sob controle. A luz irradiava o ambiente. Lembrara tempos de emoção à flor da pele. Uma visão purista da imaginação. Exatamente assim que aconteceu. Aqui, não tem mentira.

sábado, 12 de outubro de 2019

COTIDIANO


08/10/2019

Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura 


“Não tem a ver. Para que servem os amigos”. Eu passava por uma das ruas do bairro Santa Tereza e ouvi a frase que saiu da boca de um morador de rua. Ele estava sentado à beira da entrada de um bar. O outro sujeito com quem falava tinha acabado de se levantar e seguiu seu rumo.
           
            Continuei intrigada com a frase. Uma frase tão comum, mas impressa naquela fala estava a questão humana. Quando se pensa que a humanidade está perdida, que as pessoas vivem voltadas para si mesmas, só pensando e olhando o próprio umbigo, uma frase deixa a gente surpreendida. Isso, foi isso o que me aconteceu. De onde menos se esperava, saiu a frase regada à esperança. De uma pessoa que vive a falta constante de tudo: moradia, alimentação, saúde, familiares, sem elo com a realidade social. Aquela pessoa fez que a palavra abarcasse a dimensão do que ali estava inscrito.

            Temos consciência de que qualquer pessoa que viva em sociedade, tanto do bem quanto do mal, tem momentos em que o amigo exerça influência sobre ela, ou que nesse papel esteja envolvido interesses, jogos, ou ainda, ganhos secundários de dizer-se amiga.

Naquele momento não levei nada disso em consideração. Apenas ali estava um ser fragilizado em um momento da vida e que mesmo assim, disse a frase que soou como um hino. Entrou em meus ouvidos como melodia. A inspirar. Ainda existe a possibilidade do ser humano ir longe.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

a que ponto chegamos


01/10/2019
‘O amor é amor quando não espera nem tormenta.’ Flora ficou pensando na frase do médico assim que entregou a receita a ela. Não teve coragem para desvendar por que chegara àquele ponto ― desacreditar no amor. Entrou em casa e aquele silêncio. Ele não estava. Lenta, caminhou alguns passos, pendurou o casaco e bolsa. Tomou o remédio para ver se conseguia alívio. Não tinha vontade de nada, jogou um pé de sapato longe e o outro pegou com a mão e atirou no enfeite de Ludovico. O troféu que estava na estante. O jogador segurando a bola dourada acima da cabeça. O objeto espatifou. A raiva e os rancores palpitavam ainda mais vorazes após a conversa com o doutor. Ainda martelava em seu pensamento cada sentimento que não conseguia expressar e transformado de modo perverso no seu dia a dia.
Deitou no sofá e sorriu ao lembrar da cena.
Eles se encontrando a primeira vez. O esbarrão, e o rapaz ágil agarrando sua cintura para evitar o tombo. Olhos nos olhos. Tanto ele quanto ela desconcertados, mas uma chama iluminava. Passeavam distraídos no Circo Garcia. O chão de terra, as barraquinhas de jogos e brindes, a pipoca, os animais habilidosos ao comando, tanta diversão e a concentração dispersa aos mil estímulos. Os amigos de Ludovico começaram a zoar, enquanto as meninas junto de Flora com risadinhas cúmplices, pois elas também trocaram nos olhos os olhos. Distanciaram em seus grupinhos e o ti-ti-ti geral. Flertes antenados e ao mesmo tempo dissimulados. O olhar sedutor. O toque no cabelo ao colocar a mecha atrás da orelha. O virar o rosto para despistar interesse. O andar mais caprichado chamando a novo encontro. O circo permaneceria durante quinze dias e a noite sempre prometia paixão além das disputas nas barraquinhas.
Flora parou de sorrir, o rosto amuou-se às lembranças que surgiam.
Ludovico passou a gritar com ela. Flora não conseguia descobrir para onde foi o rapaz gentil que conhecera. Tantos anos de casamento, a situação estremeceu o relacionamento. Ela dependente dele, não saiu de casa. Ele acomodado ao seu status de homem casado, permaneceu. Cada qual em seu quarto. Passaram a não se falar. Assim foi por mais vinte anos. O silêncio depressivo esbarrava em cada coração. A mágoa intensa por milhões de pequenas coisas que ambos já não sabiam discernir. O orgulho imperava e o perdão não bateu à porta. Até que Ludovico morreu. Com a morte do marido, considerou que sua tristeza seria eliminada. Mas sentia falta dele. A casa se tornou ainda mais vazia. Ela esperou tanto. Ele atormentou tanto. Agora, com a morte de Ludovico, descobriu que ainda o amava.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

EM TRÂNSITO


            24/09/2019
   O ônibus chegou. Pediu educadamente para sentar ao que o homem completou “bem-vinda”. Com sorriso nos lábios ela demonstrou curiosidade:
            ― O senhor é muito gentil.
            ― Cordialidade é sinal de respeito.
            ― Esse hábito parece caindo por terra. O povo anda perdido.
            ― Tempos complicados. Mas dou um jeito, me distraio vindo por essas bandas. Todo dia vou no alto da Serra.
            ― Tem uma vista da cidade belo-horizontina muito atraente, ― Cândida respondeu.
            ― Olha que moro do outro lado da cidade. Como é seu nome?
            A mulher respondeu amável. Gostava de bate-papo no trajeto para casa. O velho, cabelos grisalhos em grande volume, postura aberta em meio ao caos urbano.
            ― Pois é, Cândida, gosto de conversar. Mas não é para ver a paisagem, não!
            ― Eu também curto um bom papo.
            ― Encontro passageiros interessantes no trajeto de ônibus.
   ― A maioria das pessoas não aproveita os instantes.
            ― A desconfiança tomou conta.
            ― As pessoas estão solitárias e o tempo todo no celular.
            ― Nos meus oitenta e dois anos, concluí, tenho que aproveitar o encontro.
            ― Gostei muito de falar com você!
    ― Também, Cândida!
    ― Meu ponto está próximo.
    ― Quem sabe nos veremos.
    ― Mas não disse por que vem ao alto da Serra?
            ― Vou comprar erva. Gosto de fumar uma maconha. ― Falou baixinho.