01/10/2019
‘O
amor é amor quando não espera nem tormenta.’ Flora ficou pensando na frase do
médico assim que entregou a receita a ela. Não teve coragem para desvendar por
que chegara àquele ponto ― desacreditar no amor. Entrou em casa e aquele
silêncio. Ele não estava. Lenta, caminhou alguns passos, pendurou o casaco e
bolsa. Tomou o remédio para ver se conseguia alívio. Não tinha vontade de nada,
jogou um pé de sapato longe e o outro pegou com a mão e atirou no enfeite de Ludovico.
O troféu que estava na estante. O jogador segurando a bola dourada acima da
cabeça. O objeto espatifou. A raiva e os rancores palpitavam ainda mais vorazes
após a conversa com o doutor. Ainda martelava em seu pensamento cada sentimento
que não conseguia expressar e transformado de modo perverso no seu dia a dia.
Deitou
no sofá e sorriu ao lembrar da cena.
Eles
se encontrando a primeira vez. O esbarrão, e o rapaz ágil agarrando sua cintura
para evitar o tombo. Olhos nos olhos. Tanto ele quanto ela desconcertados, mas
uma chama iluminava. Passeavam distraídos no Circo Garcia. O chão de terra, as barraquinhas
de jogos e brindes, a pipoca, os animais habilidosos ao comando, tanta diversão
e a concentração dispersa aos mil estímulos. Os amigos de Ludovico começaram a
zoar, enquanto as meninas junto de Flora com risadinhas cúmplices, pois elas
também trocaram nos olhos os olhos. Distanciaram em seus grupinhos e o ti-ti-ti
geral. Flertes antenados e ao mesmo tempo dissimulados. O olhar sedutor. O
toque no cabelo ao colocar a mecha atrás da orelha. O virar o rosto para
despistar interesse. O andar mais caprichado chamando a novo encontro. O circo
permaneceria durante quinze dias e a noite sempre prometia paixão além das
disputas nas barraquinhas.
Flora
parou de sorrir, o rosto amuou-se às lembranças que surgiam.
Ludovico
passou a gritar com ela. Flora não conseguia descobrir para onde foi o rapaz
gentil que conhecera. Tantos anos de casamento, a situação estremeceu o
relacionamento. Ela dependente dele, não saiu de casa. Ele acomodado ao seu
status de homem casado, permaneceu. Cada qual em seu quarto. Passaram a não se
falar. Assim foi por mais vinte anos. O silêncio depressivo esbarrava em cada coração.
A mágoa intensa por milhões de pequenas coisas que ambos já não sabiam
discernir. O orgulho imperava e o perdão não bateu à porta. Até que Ludovico morreu.
Com a morte do marido, considerou que sua tristeza seria eliminada. Mas sentia
falta dele. A casa se tornou ainda mais vazia. Ela esperou tanto. Ele atormentou tanto. Agora, com a
morte de Ludovico, descobriu que ainda o amava.
Nenhum comentário:
Postar um comentário