sexta-feira, 4 de outubro de 2019

a que ponto chegamos


01/10/2019
‘O amor é amor quando não espera nem tormenta.’ Flora ficou pensando na frase do médico assim que entregou a receita a ela. Não teve coragem para desvendar por que chegara àquele ponto ― desacreditar no amor. Entrou em casa e aquele silêncio. Ele não estava. Lenta, caminhou alguns passos, pendurou o casaco e bolsa. Tomou o remédio para ver se conseguia alívio. Não tinha vontade de nada, jogou um pé de sapato longe e o outro pegou com a mão e atirou no enfeite de Ludovico. O troféu que estava na estante. O jogador segurando a bola dourada acima da cabeça. O objeto espatifou. A raiva e os rancores palpitavam ainda mais vorazes após a conversa com o doutor. Ainda martelava em seu pensamento cada sentimento que não conseguia expressar e transformado de modo perverso no seu dia a dia.
Deitou no sofá e sorriu ao lembrar da cena.
Eles se encontrando a primeira vez. O esbarrão, e o rapaz ágil agarrando sua cintura para evitar o tombo. Olhos nos olhos. Tanto ele quanto ela desconcertados, mas uma chama iluminava. Passeavam distraídos no Circo Garcia. O chão de terra, as barraquinhas de jogos e brindes, a pipoca, os animais habilidosos ao comando, tanta diversão e a concentração dispersa aos mil estímulos. Os amigos de Ludovico começaram a zoar, enquanto as meninas junto de Flora com risadinhas cúmplices, pois elas também trocaram nos olhos os olhos. Distanciaram em seus grupinhos e o ti-ti-ti geral. Flertes antenados e ao mesmo tempo dissimulados. O olhar sedutor. O toque no cabelo ao colocar a mecha atrás da orelha. O virar o rosto para despistar interesse. O andar mais caprichado chamando a novo encontro. O circo permaneceria durante quinze dias e a noite sempre prometia paixão além das disputas nas barraquinhas.
Flora parou de sorrir, o rosto amuou-se às lembranças que surgiam.
Ludovico passou a gritar com ela. Flora não conseguia descobrir para onde foi o rapaz gentil que conhecera. Tantos anos de casamento, a situação estremeceu o relacionamento. Ela dependente dele, não saiu de casa. Ele acomodado ao seu status de homem casado, permaneceu. Cada qual em seu quarto. Passaram a não se falar. Assim foi por mais vinte anos. O silêncio depressivo esbarrava em cada coração. A mágoa intensa por milhões de pequenas coisas que ambos já não sabiam discernir. O orgulho imperava e o perdão não bateu à porta. Até que Ludovico morreu. Com a morte do marido, considerou que sua tristeza seria eliminada. Mas sentia falta dele. A casa se tornou ainda mais vazia. Ela esperou tanto. Ele atormentou tanto. Agora, com a morte de Ludovico, descobriu que ainda o amava.

Nenhum comentário:

Postar um comentário