domingo, 24 de março de 2019

IDADE DE SENHORA V

IDADE DE SENHORA V
03/03/2019

  Cheguei à consulta com o fisioterapeuta responsável pelo método Musculação Terapêutica. Fui entrando e ele me dizendo que faríamos avaliação inicial, fundamental para definiação das estratégias. Mal escutei o que me dissera, olhava fixo para seus pés, pois pareciam pés de pato.

   ― Que tênis interessante, ainda não tinha visto igual. ― Falei.

   
   ― Também acho, e muito confortáveis, calçando cada dedo separadamente, os Five Fingers. A empresa que lançou-os é artesanal, não tem condições para grandes demandas. Acabou que grandes marcas passaram a fabricar com nomes diferentes, são os novos tempos.

   ― O mercado é agressivo, compreendo perfeitamente. Não vi nas lojas.


   ― Pela Internet você encontrará marcas à escolha. A gente se sente descalço. Não troco por outro modelo, disse o profissional, retomando o tema principal, ― vamos ao exame.

   
   Relatei o tombo, a quebra do disco vertebral, a questão da osteoporose, a exigência de exercícios físicos enquanto viver, o gostar de musculação. E ainda, mencionei que o médico tinha dito que o disco quebrou devido músculos flácidos. Expliquei que nunca deixei de exercitar a região abdominal e pernas desde a juventude, apenas outros exercícios eu estava relapsa. Ele complementou:

   ― Talvez por isso o trauma não foi pior. Se não se exercitasse de forma alguma, a fratura poderia ser mais intensa. Isso a protegeu. Este pode ser o outro lado.


   ― Não tinha pensado por esse ângulo.


   ― Pois é, devemos olhar por diversos ângulos. Vamos aos exercícios. Exercício de força com mãos, pernas, controle dos tendões... Esse aplicativo/programa foi criado por Dr Spa.


   ― Esse nome me soou familiar, devo ter visto na rede.


   ― Faço pouco marketing, minha preocupação é a saúde.


   ― Quando vou saber o resultado?


   ― A secretária entrará em contado com a senhora. ― Ele se despediu e em seguida, entrou a próxima cliente.

domingo, 17 de março de 2019

O GATO

O GATO
07/12/2018
            Levantou cedo. Abriu a porta do quarto que dava acesso à varanda no primeiro andar. Manhã nublosa. Buscou caderno e caneta. As árvores no lugar. A primeira árvore, a buganvília entre telhados, mareava seus olhos de vermelho intenso, quase um tom vinho tinto. A segunda árvore, toda alaranjada em tom forte, vibrava mais à frente. Árvore que povoou a infância, jogando ao chão botões e quando se pisava neles, espirravam longe o líquido – “Xixi de gato”. Ao lado uma linda palmeira. A terceira árvore, um ipê amarelo sem floração. Os ipês daqui, do Sul, não florescem com a intensidade dos da terra natal. Além do que, o ipê está dominado por ramas de maracujá.
            Enquanto escrevia, sentada na cama, um pintassilgo cantava sem parar. Escutava sons de outros pássaros, a passarinhada entoava o canto da manhã.
            A quarta árvore que lhe chamara atenção, estava bem verdinha. Na época de florada emoldurava-se, cacheada de flores amarelas em pendão, tão magníficas que ofuscavam. E pensar que pedira ao jardineiro que a cortasse, pois desconhecia o pendão, devido à sombra na horta. O jardineiro não a escutara.
            Olhou ao fundo um tronco dessa árvore. Viu um gato. Um gato preto descansando. Olhava fixamente e ainda o gato. Olhar luminoso, olhos que brilhavam em sua direção. Espiavam. Insistentemente. O gato descansava e observava a obsessão da mulher a sequentes perguntas: será mesmo um gato? será imaginação? Abriu mais os olhos, olhos míopes, e a imagem de gato permanecia. Não quis buscar os óculos. Um gato preto de olhos amendoados de paralisar.
            Enquanto persistia olhar, pensamentos divagavam. Estava tão difícil a aceitação. Por mais que refletisse não conseguia assimilar o ódio. Ódio que distanciava a convivência. Pessoas escolheram algo cujos valores e princípios diferiam dos coerentes.
            O ódio. O gato olhava com assombro. Como se visse o fundo, o fundo oco da mulher. Um ódio do dia seguinte. Que persistia. Iria embora? Não sabia o que era ódio. A não ser quando criança, depois de boa surra da mãe. Desenvolveu depois de velha?
           O gato olhava fixo. Não se mexia. Não se movia. Apenas observava com olhares inquisidores. Até que ela percebera, o gato não era um gato, e sim um pedaço do tronco.
Mas que importava. Ela via o gato!

sábado, 16 de março de 2019

ACTUM SANCTUM I


ACTUM SANCTUM I
11/03/2019
Encontrou a filha no corredor superior. Antes de descer a escadaria comentou:
― Cheguei à conclusão que estou em processo de Alzheimer.
― Por quê?
― Tenho esquecido as coisas com muita frequência, coisas mínimas que começo a fazer, me distraio com outras e quando me lembro, é somente muito depois. ― E continuou, ― Ouvi falar que tem algumas coisas que os doentes vão deixando de fazer, por exemplo, fazer amor, ter relação sexual. Não sinto falta.
― Ah, mas isso eu concordo. Quando tiver essa idade acho que também não terei vontade. A pessoa deve ficar cansada.
― O pior mesmo é perder a autonomia, isso é triste, saber que vocês decidirão sobre a minha vida. ― Disse a mãe, enquanto descia os degraus e parou na metade ao ouvir a filha:
― Procure fazer coisas diferentes.
― Eu vivo procurando e fazendo. Idiomas, ... ― foi relatando as atividades extras. ― Tem jeito não, o que tiver de ser, será!
Chegou à cozinha. Lembrou-se de que tinha colocado as embalagens de carne sobre a pia, para separar em pequenas quantidades e guardar no freezer, isso há uma hora. A carne já não estava lá, sobre a pia. Abriu o freezer e as carnes separadas e acondicionadas, como ela sempre fizera. Dessa vez não foi ela. Pensou: “Que bom, fizeram o trabalho, aprenderam.”
Preparou algo rápido para seu jantar. De tempos para cá, não se preocupava em arrumar refeição para mais ninguém. Todos crescidos e o marido preparava a própria, apenas salada leve. Ela agora entendia o significado de conversa recente com ele:
― Sabe, estranho o que está acontecendo comigo. Eu não procuro vir para a cozinha e fazer o almoço, não me preocupo se tem alguém para almoçar, ou se não tem. Preparo somente a hora que me dá vontade e quem não estiver satisfeito, que faça a própria refeição.
Sentou-se à mesa, foi rasgando devagar o pão no molho branco com carne. E no pensamento, analisava os lapsos recentes: “estava desmazelada consigo mesma, a casa desleixada, já não via tanta limpeza e ela não via necessidade de limpar. Não tinha o interesse, que antes julgava até exagerado, de saber o dia a dia de cada um, de se reunir com eles à mesa, de participar das conversas familiares, de estar atenta às solicitações. Apenas permanecia em suas atividades.”
Atividades que estavam mais espaçadas, adiadas, quantas leituras por ler, quantos livros por escrever e começados, a nova história interessante e necessitando digitação para não perder o fio da meada. Nada. Nada era importante. Era como se o tempo, o tempo da fantasia, fosse ganhando espaço, e nem tinha vontade de ir para a cama. Queria ficar ali, na varanda, deitada na rede, sem objetivo nenhum, olhando a chuva e ouvindo os barulhos da noite.
Dera também para fechar a porta do quarto e por lá ficar. O marido lhe perguntou:
― Por que agora você sempre fecha a porta?
― O barulho caseiro me incomoda. Quando fecho a porta, sinto que se abre um mundo novo, sem barulho, sem confusão, sem preocupação, tudo ficou do lado de fora da porta. Assim, espero a inspiração. Eu entro aqui, esqueço obrigações, marido, filhos, cachorros, todo o tempo para uso exclusivo. Estou achando proveitosa a experiência e dando razão dos meninos gostarem das portas fechadas.
Terminou de jantar. Verificou o que faria para o almoço do dia seguinte. Fechou a porta do quarto. Queria escrever. Sentou e esperou.