sábado, 30 de dezembro de 2017

NELSON


NELSON

23/10/2017

   Lembrou do conto A Felicidade Clandestina, da Clarice Lispector. O conto a levou à sapatilha de cetim vermelho. Sapatilha que lhe trouxe lembrança da amiga da mãe. Da amiga que tinha uma filha, prima de Nelson.

   Conheceu Nelson na festa de família, na casa dele. Barracão espaçoso no Sagrada Família. Ele aos vinte anos. Ela despontando quatorze. Festa animada, hora dançante por todo domingo.

   Nelson, cento e cinquenta quilos naquele enorme corpanzil. Olhava Nelson dançar. Olhava Nelson sorrir. Olhava Nelson cantar. Olhava Nelson na moda. Olhava Nelson.

   Nelson mostrava suingue, sensualidade, animação pela vida e contagiava enquanto cantava samba. Transmitia certeza do gostar-se, segurança de dar inveja. Ela, magrela, corpo por formar-se, sentimento de valer menos misturado a timidez.

   Olhar vibrava.

   O palco, a pequena sala. Sentada no sofá, atenta aos movimentos. Ele joga corpo, balança mão, roda a moça no domínio do salão. Que inveja da namorada!

   Domingo curto a tanta excitação.

   Trinta anos depois.


   Estação Horto Florestal. Ela entra no metrô. Não tem cadeira vaga. Segura a barra de proteção. Ao elevar o olhar, NELSON. O passado em filme rápido. A realidade: Nelson abatido, pálido, magro.

   ― Oi! Sou filha da Dona Santa, lembra? Amiga da Chica, mãe da Sônia, lembra?

   ― Não consigo me lembrar.

   ― Dona Santa, ou Branca, outro apelido dela.

   ― Ah, da Branca! Me lembro, sim. Ela, como vai?

   ― Partiu faz tempo.

   Próxima estação.

   ― Desço aqui. Tchau!, disse Nelson.

   Encontra Sônia seis meses depois. Pergunta por Nelson.

   ― Nelson fez redução do estômago.

   ― Encontrei com ele no metrô faz pouco tempo.

   ― Quando? Ele partiu a seis meses. Não se cuidava. Tinha diabetes. Era rebelde. Sônia continuava falando: se ele tivesse responsabilidade pela saúde, se conhecesse mais sobre a doença, a prevenção, consequências etc etc...

   Sônia movimentando lábio, ela pensando em Nelson, o que vive nela.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

EM NOME DO PAI


EM NOME DO PAI
16/10/2017

   Era um bonito menino. Fez questão tivesse o mesmo nome do pai. Apaixonada por quem lhe dera o fruto do amor maior do mundo. O nome do pai era horrível. O amor é cego, surdo, mudo e a sorridente mulher embala a doce criança nos braços e o esposo nunca de chegar.

  O dia encerrou-se. Sozinha na cidade grande dependia das providências que o marido ficara responsável. Iriam para o quartinho simples de pensão na redondeza. Santa Efigênia era lotada desse tipo de hospedagem. Aguardava. Ansiedade lhe diminuía leite. O bebê, graúdo, exigia em forte choro. Fraca pelo trabalho de parto, se esforçava oferecer ao seu bebê a segurança, amor, carinho incondicional, leite...

   O hospital público sem mordomia. As precariedades velhas conhecidas dos que vinham do interior das Minas Gerais. A cidadezinha não oferecia condições para mães terem o parto seguro. Faltava de um tudo até para atendimentos triviais. Não quis arriscar e viajar mais 400 km até cidade mais próxima, pois lá estava na mesma condição. A van da prefeitura sacolejando os passageiros em tratamento de saúde na Capital. Quase 800 km depois, chegavam a Belo Horizonte. O trabalho de parto iniciara antes de adentrar a cidade com dores se intensificando.

   Mãe e criança se apagaram na noite iluminada,  que num vago olhar a mulher admirara antes de se entregar. Filho chegando, saindo-lhe das entranhas e emanando ar santíssimo, cabelos encaracolados, ao redor da cabeça aura iluminando-lhe bochechas rosadas. O pai, santo companheiro, atento às solicitações, segurava trapos de algodão aconchegando criança. Ao lado, improvisado berço forrado de palha. Estavam na cocheira onde o patrão protegia animais da fazenda. Aos sons, como sinos, animais bendiziam o dia e movimentavam patas ajoelhando e dando graça à bem-aventurança. Cabras, burricos, galinhas, marrecos, patinhos, companheiros da lida se aproximando, movimentavam mãos em sinal da cruz. Sentiam o bendito presente. Maria. Era Maria e sentia-se segura. Fechou os olhos frente a exaustão. 

   Estrelas iluminando a noite.

   A enfermeira a acorda. A criança tem fome. Oferta-lhe alimento e mãozinhas acariciam. Em seguida, a enfermeira diz que não poderá mais ocupar o leito, outra mulher aguarda na grande fila do dia. Enrola a criança na única manta que levara e desce para aguardar o marido. 

   Obtém alta do hospital. Não tem dinheiro. A van só retornará dois dias depois. O celular ficou com o marido que nunca mais apareceu.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A PRIMAVERA COMPENSA

A PRIMAVERA COMPENSA
09/10/2017

          Colocou os pés sobre a areia da Ilha de Santa Cruz e a suavidade da água fez que acordasse do cansaço da viagem que durou cinquenta dias. A mão forte do sujeito mal encarado lhe apertou o pulso jogando-a no cercado onde estavam outros recolhidos para a fazenda do Visconde Primavel.

      No outro dia, conduzida à roça com escravas antigas que depositavam sementes sob olhar do responsável de prontidão ao que se negasse a trabalhar. Com trejeito, coçava couro cabeludo, vinha-lhe caroço a mão, enterrava na terra.

       Sementes presas aos cabelos, lembrança da mãe África.

       Chuvas vieram.

      Aos primeiros meses do ano seguinte farta colheita de feijão pôde abrandar dor da pátria. Através do paladar, o guisado acompanhado da carne desprezada pela casa grande e  ao ritmo de danças e cantos africanos. 

       Sons ecoavam nas noites e a senzala em festa agradecendo a fartura através de batuque. Os fazendeiros ouviam sussurros tristes embalando canções e comentavam, como pode, esse povo feito para o trabalho suado e mandado obediente, ainda entoar canções?

        O grito da alma fora da casa grande.

        Ana dançava na roda. Comemorava o milagre da semeadura na primavera e agora, a colheita que alimentará seu povo esperançoso de melhores ventos. A gamela, no tamborete ao canto, recheada de flores, amor-perfeito e violeta, servia de iguarias comestíveis lançadas à boca, suavizando marcas.


         O aroma rescendia a canela, cravo e perfumes da floresta nativa.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

MODELO DE VAN GOGH

   O dia continuou em bonança. Assisti o filme Com Amor Van Gogh. Lindo e triste ao mesmo tempo. Incrível como o diretor conseguiu captar através das pinturas, história de vida do grande mestre Van Gogh. 

   Durante o filme, pude reconhecer a história lida sobre o pintor. A expressividade de seus quadros tiveram mais a contar. Sobre esse ponto de vista possibilitou releitura dos sentimentos vivenciados por aquele homem intenso.

   Saí do cinema com a certeza de que iria assistir mais de uma vez. Rever com calma as imagens, já que a busca por compreender os diálogos interferiam nos lances importantes.

  Nem sei o que expressar daquele momento. Tão empolgada com desenrolar da história e técnica utilizada que quase não sentia a respiração. Afinal, desde a primeira postagem do blog, Van Gogh faz parte do roteiro de inspiração. Gênio reconhecido somente após morte, continua vivo nas mais de 800 pinturas que expressam a visão de mundo nos lugares em que passou os poucos anos de vida, contando a história com intensidade de cores e movimentos de pincel.

   Pura emoção.

   Chego imaginar que era mentira, tudo o que eu sentia ontem. Nenhum desânimo e cansaço me ronda! 

   Sinto a melodia do final do filme. Por pouco tempo fantasiei estar em Paris, em Arles, nos Campos de Trigo, sentada conversando com Dr. Gachet enquanto ouvia ao piano a jovem filha e em frente, VAN GOGH pintando.   

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

BONANÇA COM A LEITURA


   Bastante tempo não posto novidades. Estão rareando. A gente se torna tão seletiva que poucas coisas se tornam excepcionais. Característica de quem passou da idade. Os tempos se servem de maturidade demais.

   É até chato. Maturidade. Porque se associa tal característica, fundamental ao processo do tornar-se adulto, a seriedade, compenetração, responsabilidade exagerada, não cometer deslizes. Que tolice! Agindo assim o que se perde, além da juventude, é espontaneidade, o que realmente é uma pena. É bom ser natural, se abrir sem medo e resistência.

   É mais fácil escrever do que exercitar. Essa é a verdade. Situações vão te pegando pelo cabelo (apesar de curtíssimo ou mesmo sem ele) e quando se vê, o redemoinho do cotidiano te puxa acima e abaixo, subindo e descendo montanha. Sem pausa para descanso e reflexão. E olha que nem força se tem para isso. Quem tem a idade se reconhece.

   Bem, depois da expiação a bonança. Tenho lido excelentes livros no pouco tempo que resta durante a semana. Um dos que me tomou o juízo, de nem conseguir fechar para outras atividades, foi KINDRED Laços de Sangue, da escritora norte-americana Octavia E. Butler, , Editora Morro Branco, 2017. Considerada a grande dama da ficção científica. A leveza da escrita faz que a gente sinta a personagem principal e caminhe junto com ela em todo processo. A personagem é negra e volta no tempo onde o processo de escravidão está vivo e acompanha o horror das atrocidades. Apesar das dores, a personagem transmite esperança, tem consciência de seus direitos, o empoderamento feminino presente, etc. Em dois dias terminei a leitura. Cada escritor tem seu estilo, mas o jeito de escrever dela me fez associar ao livro O Velho e o Mar, do Hemingway. Nenhum rebuscamento de linguagem, sem excessos e direto ao que interessa. 

   Deliciosa experiência. E ainda, a dica da escritora: "Primeiro, esqueça inspiração. Hábito é algo mais confiável. Ele irá sustentá-lo, caso esteja inspirado, ou não. Irá ajudá-lo a terminar e polir suas histórias. Inspiração, não. Hábito é a persistência na prática." (pág.436).      

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

TRADUÇÃO


TRADUÇÃO
02/10/2017

     Ele estava a curta distância. Não mais que cinquenta passos. A moça, mão a cintura, olhava para ele. Ele tentou traduzir o significado do gesto. Ele não enxergava nítido o rosto. Mas sabia quem era. Porte inegável. O cabelo lhe descia em leve cacheado negro brilhante. Jeito de espanhola, ombros nus, vestido em simples rodado e estampado em flores vermelho vivo, calçado para sapateado.

     Piscou forçosamente. Olhos iam da languidez à nitidez. O fluir de sentimentos em línguas de fogo. Face queimando, suor a descer a testa. Mãos ao alto, em performance, esperando outras se juntarem as dela.
     
     O comando inundou a moça de música e ela iniciou o gingado. Primeiramente o ritmado dos pés. Aos poucos, incorporando-se, a melodia do flamenco. Dominada pelo espírito que luta, tem esperança, pede passagem, as castanholas em delírio. Vibração cigana ao comando da alma.

     Ele a alcança e toca-lhe firme a cintura e ao compasso, rodopiam harmonicamente. No giro final, ela cai em seus braços emitindo um suspiro. Ao canto da boca o líquido avermelhado.