terça-feira, 28 de setembro de 2021

o decorrer do tempo (CENA 50)

 


27/09/2021

            ― Quer mais canjica? ― Osvaldo perguntou, e agora era vez de Dodô andar atracada em pensamentos aéreos, voa com certeza, disse Osvaldo em voz amena a si. A mulher arisca, atrevida e que gostava de contar as aventuras com o marido andava longe.

Ele então tascou fogo noutro amaldiçoado cigarro e ambos se alienaram entre cinzas e o acinzentado da fumaça. Acendeu mais outro assim que a bituca se esvaia. Era bom estar em companhia amiga. Lembrou-se de Luiza, do rapaz e da avoada mulher ao seu lado, Dodô. Pessoas que faziam o tempo amenizar-se enquanto lá fora a batalha era a sobrevivência. Alguns minutos que ganhavam tanta importância, o afago de amizades que não imaginaria surgirem em sua vida solitária. Cada uma tinha algo especial e admitia a si que nesse momento de tamanha atormentação para o país, essas pessoas acrescentavam significado à sua existência. Luiza com sua doçura e ao mesmo tempo firmeza nas decisões, uma autêntica mulher que se revelava a ele tão terna. O toque em sua pele lhe trazia lembranças, as quais não soube de que tipo. Dodô, ao contrário, levava-o a suas viagens, especificando cada detalhe, cada trajeto, cada decisão para obter mais adrenalina e com ela seguia energizado e com ânsia de conhecer mais e mais lugares fantásticos e agora estava ali aconchegada com os pezinhos no pilar da sacada, como uma garota selvagem. Dodô trazia aspectos que libertava enquanto falava aos cântaros. Era bom escutar. Interrompeu o pensamento e olhou para ela que ainda ia alhures.

Então veio a figura do rapaz, outro contador de histórias, mas de jeito jocoso nos stand-ups da vida, mostrava ironia, sarcasmo e arrebatava-o em risadas, ah, como a juventude traz alegria aos momentos mais inusitados. Ele fora um jovem com a timidez emperrando sua espontaneidade. O rapaz não, troçava de qualquer simples evento. Tinha um carinho indefinido por aquele rapaz, gostava de não dizer o seu nome, rapaz traduzia sua performance.

Estranhou seu ensimesmamento e riu, isso não era novidade alguma. E quando virou o rosto, Dodô o observava.

― Valdo, você estava longe e sorridente ou é impressão minha?

― Dodô, gostaria de te perguntar a mesma coisa, porque fiquei um tempo te olhando e você navegava.

Os dois riram.

― Tenho de caçar rumo, trabalho amanhã.

― Pra que pressa, Dodô, tem alguém te esperando?

― Até gostaria, às vezes sinto falta de companhia.

― Dorme aqui, tá tarde. O quarto está arrumadinho e é só pegar toalha no armário. Vai, deixa de cerimônia, não é trabalho nenhum. Daqui você vai para o trabalho e não precisa sair e enfrentar a pandemia. O quarto e o apartamento em si são acolhedores, você é bem-vinda.

― Ah, Valdo, convite tentador, bom que a gente pode continuar com um pouco mais de prosa nesse ambiente zen de sua sacada, que delícia. Vou até pegar mais canjica depois.

Osvaldo quase deixou escapulir que Luiza quando dormira por lá considerou isso também, não, não sei se Luiza comentou com Dodô, pensou.

Ambos continuaram em suas epopeias. Viagem ad interim.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

falar e silenciar (CENA 49)

12/08/2021

O aflorar de questionamentos, que anteriormente na correria do dia a dia, na ansiedade e exigência da vida, não tinha tempo requerido para reflexão, agora, presos em casa ou na necessidade de estar às ruas com todas as prevenções devido as variantes que se multiplicam, anda em auge. O humano sujeitado a se ler e a se revelar em busca de adaptação. A pandemia exacerbou angústias. Pessoas exauridas com o isolamento imposto para sobrevivência. Escolhas se estreitando.

Os dois amigos sentindo na pele tanta mudança e cada qual sentado em um canto, tanto por dizer ou silenciar. Dodô olhar atento para Osvaldo aguardando resposta. Era como se ele estivesse voltado completamente para dentro de si e esquecido donde estava, por onde caminhava, ondeado por redemoinhos.

― Osvaldo, aonde você está? O que diria para meu amigo escritor?

― Hã! Oi! O quê? ― Osvaldo voltou o rosto em direção de Dodô. ― Bem... eu poderia dar quatro respostas e existiriam outras mais. Vamos lá!

Em se tratando de literatura, todas as possibilidades estão em aberto, a depender de qual ponto trafega o escritor e suas intenções, se romântico, se realista, ou surrealista, até nonsense caberia entre aspas.

De outro lado, a idade não deveria ser argumento para aceitação do cômodo. Enquanto houver vida, correr risco em busca do novo deveria ser a tônica. Um novo amor, uma nova paixão, deixar o outro seguir seu destino a novas emoções, até mesmo novo compromisso sem a seriedade de antes pode ser um ponto de exclamação, ou até nenhum relacionamento, por que não!

Dado minha experiência com esposa em tratamento de saúde, sexo deixara de complementar o amor nos últimos tempos do casamento. O corpo cansado não está à procura de orgasmo. Nesse aspecto apelo ao prático. É possível viver sem sexo, mas sem o afeto de um abraço, do toque que abarca tantas emoções, vejo com reticências.

E ainda, considerando o que seu amigo acha possível, um casal sem afinidade física mas com amor espiritual, penso que nem um amigo meu quando lhe pegam a dar conselho e dizer ‘se eu fosse você...’ ele geralmente responde: ‘se você fosse eu, agiria da mesma forma, porque você seria eu’. Afinal, cada casal e cada um é único e decide o que quer da vida. E, às vezes, decide até não escolher e deixar o tempo correr.

Quanto às conjecturas sobre o gosto das mulheres e dos homens não deixo interrogação. Tanto mulher quanto homem quer é ser feliz. Quer amar e ser amado. Ambos buscam a felicidade. Não estão em lados opostos... claro, insisto, falo em nome daquele compromissado na relação a dois. De forma que existe o hiato ― a questão do diálogo ― as pessoas têm de falar o que sentem de verdade. Nem sempre o silenciar é provedor de sabedoria. Às vezes é síntese de fuga. A análise de monólogo interior abarca apenas o uno. Ponto final. Dessa vez falei demais, ― Osvaldo solta boa risada.

― Se eu não escrevesse os itens na minha agenda, não conseguiria relembrá-los para o meu amigo. Muito bom. O que a experiência acrescenta em nós, hein, detalhes que eu mesma não tinha antenado. Apesar de entender que acontece do jogo amoroso, às vezes, ser competitivo e de um não dar chance ao outro, querer ser poder. Aí, a entrelinha da relação é o que muito se vê.

Dodô e Osvaldo continuaram a lambiscar canjica e cada um com a vista para a natureza verde. Depois Osvaldo pigarreou, e ainda assim, lascou fogo no cigarro lamentando o vício. Dodô pensativa se era hora de riscar estrada.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

é isto, mas não deveria ser (CENA 48)

 

30/06/2021

            Estava empolgado. Disse a si mesmo: ‘você vive de empolgação. Às vezes na acomodação.’ Olhou para o livro que aguardava leitura. Interrompeu o vídeo que começara assistir para pegar o almoço, quatro da tarde e sem comer ainda. Riu de seus comportamentos. A instabilidade agora tão nítida e perceptível. Apenas vivia. Vive. As causas e consequências desse processo são os relatos de vida.

Osvaldo ouviu a campainha e saiu do aconchego da varanda após o almoço apagando a bituca de cigarro.

 Ei, Dodô! Veio cedo com as compras. Daqui a pouco terá descanso, daqui umas duas semanas estarei imunizado com a segunda dose e não incomodarei mais a você, Luiza e Ritinha. ― Osvaldo ia falando enquanto Dodô espalhava a compra perto da porta e limpava os objetos. ― Seu chinelo está aqui. Deixa que termino, entra e vai lavar as mãos. Fiz canjica pra nós.

Após tanto tempo de pandemia eles já não usavam máscara quando estavam à distância segura dentro de casa com janelas abertas.

― Valdo, eu tinha estranhado você não fazer pedido de ingredientes pra festa junina individual como fez ano passado. Mas o seu São João está atrasado, hoje são 30 dias de junho.

― Sabe, Dodô, os dias, semanas, meses e pelo jeito chegará anos e essa epidemia não tem fim. Afora tantas dores, quase 520 mil mortes, ouvi que são na realidade mais de 700 mil mortes se tudo fosse notificado, energias instáveis por todo esse processo que a gente vem vivenciando, assomadas às corrupções do e no governo, agora envolvendo até compras de vacinas conforme a CPI, às exigências do povo nas ruas vêm crescendo a cada encontro, tantas tragédias, desrespeito aos indígenas, matanças no Rio de Janeiro, no Amazonas, em tantos outros lugares, a venda por preço de banana das nossas últimas riquezas, esse tempo que vivemos é a barbárie. É traição e deslealdade aos cidadãos. O executivo, o legislativo, o judiciário, a cada dia nos deixam mais deprimidos pela falta de respostas dignas de instituições que deveriam honrar a vida dos brasileiros. ― Osvaldo ficou com respiração difícil e fez pausa. Em seguida continuou:

― Não aguento mais. Nem tenho astral pra festa junina, mas fiz a canjica. Espera aí, vou esquentar porque o frio está congelante, nove graus, coitada de você que ainda teve de vir aqui.

― Que isso, Valdo, tá me estranhando. Amigos atravessam oceanos, mares, lugares e apesar dos pesares ainda somos privilegiados, estamos vivos, e nossas irmãs e irmãos que se foram, hein? Quanta loucura vivencio todo santo dia. Fake news anda às turras por aí, inda mais com a queda do “minto muito” ― Dodô e Osvaldo relaxaram com risadas. 

― Canjica saindo fumegando.

― Huuumm! Tem que me contar o segredo. A canjica está deliciosa.

― Não conta pra ninguém, coloco pitada de noz moscada.

― Uau, está saborosíssima!

Enquanto comiam à distância prudente, interrompiam para conversa fiada.

― Valdo, lembra aquele amigo meu que anda escrevendo uma novela? Acho que comentei com você. Ele me perguntou esses dias o que eu achava do casamento com muitos anos de convivência. O personagem que ele descreve está na nossa faixa de idade.

― Dodô, você está sendo irônica! É bem mais jovem que eu. Relembro uma conversa nossa ano passado, quando veio aqui, talvez julho ou agosto ... e em pensamento veio-lhe a cena ...

 

― Gostou do poema do anjo pornográfico que te enviei, Dodô? ― Osvaldo inquiriu enquanto higienizava as mercadorias na cozinha. ― Credo em cruz, com essa pandemia tô vendo quanta sujeira vem, olha só! ― Dodô se aproximou da porta e ele mostrou o papel toalha úmido de álcool, imundo.

― Anjo pornográfico? Quem? Dalton Trevisan? Nelson Rodrigues? Você me enviou algo deles? Não lembro.

Osvaldo então declamou:

“...

exércitos correndo através

de ruas de sangue

brandindo garrafas de vinho

baionetando e fodendo

virgens.

...

há tamanha solidão no mundo

que você pode vê-la no movimento lento dos

braços de um relógio.

 

pessoas tão cansadas

mutiladas

tanto pelo amor quanto pelo desamor.

 

as pessoas simplesmente não são boas umas com as outras

cara a cara.

 

os ricos não são bons para os ricos

os pobres não são bons para os pobres.

 

estamos com medo.

...

 

ou do terror de uma pessoa

sofrendo sozinha

num lugar qualquer

 

intocada

incomunicável

 

regando uma planta.

 

As pessoas não são boas umas com as outras.

 

― O poema chama-se “o estouro”. Bukowski repete esta última frase três vezes. Dá pra sentir a dor, essa ênfase martela na nossa mente, ― e continua a declamação após as três frases iguais:


suponho que nunca serão.

não peço que sejam.

 

mas às vezes eu penso sobre

isso.

 

as contas dos rosários balançarão

as nuvens nublarão

 

e o assassino degolará a criança

como se desse uma mordida numa casquinha de sorvete.

...

tem que haver um caminho.

 

com certeza deve haver um caminho sobre o qual ainda

não pensamos.

...

 

quem colocou este cérebro em mim?

 

ele chora

ele demanda

ele diz que há uma chance.

...”.

 

            ― Ah! Não sabia que o poeta estadunidense, Charles Bukowski, era chamado anjo pornográfico. Adorei o poema, mas discordo dele, não me sinto sozinha. Já te contei que sempre gostei de morar sozinha e já cinquentona casei, vivi com meu marido por alguns anos um casamento interessante e aventureiro, devido problemas cardíacos ele se foi. Novamente me vi sozinha.

― Não é o seu caso, certamente. Mas existe muitas pessoas sozinhas, solitárias, sem ninguém. ‘Viver sozinha’ é diferente de ‘morar sozinha’.

― Como uma pessoa com medo iria se preocupar em regar uma planta?

― Talvez seja a forma dela se livrar do medo.

Dodô ficou pensativa. Osvaldo finalizou.

― Os poetas usam a palavra carregada de significação, capaz de provocar, modificar, iluminar a realidade do mundo. ― Em seguida mudou de assunto:

― Nós temos o demônio pornográfico, né? ‘O demônio anda desgovernado por nossa boa terra, triste realidade, mas o que esperar de um presidente que falou 34 (trinta e quatro) palavrões numa reunião ministerial. E agrediu a imprensa mais de 200 (duzentas) vezes por não aceitar qualquer tipo de crítica.’ Você viu a última, quando perguntado sobre o dinheiro recebido pela esposa? Uma pergunta que esperamos resposta. ‘A palavra aqui revela pobreza de vocabulário, cultura rasteira e falta de argumento. É isto, mas não deveria ser.’

― Valdo, a coisa está feia. Como o caso da garotinha de dez anos, que decepção, instituições que deveriam protegê-la, olha o que fizeram. Quer dizer, o ministério dos direitos humanos, o hospital público, uma tal professora e até um tal padre usaram palavras sobre a menininha como se comessem casquinha de sorvete. Mulher, criança, não são mercadorias. O que esse governo pensa? Nós estamos cansadas de ser usadas como bode expiatório para a fraqueza de homens e até mulheres desse tipo.

― Quantas crianças, meninas e meninos violentados todos os dias neste país. Que família tradicional é essa que permite tais tratamentos e não luta por políticas públicas de proteção a elas? ― Osvaldo complementou.

― É isto, como você disse, mas não deveria ser.

Os dois amigos desconsolados com a miséria do mundo, da qual os poetas bem conhecem, emudeceram-se, e pensativos ficaram com palavras engasgadas. Osvaldo com espírito inconstante e paz inquieta deu voz:

― Encontraremos o caminho e a hora não tarda.

 

Osvaldo se envolveu na névoa da lembrança e se assustou com Dodô perguntando:

― O que diria para o meu amigo escritor, sobre convivência no casamento? Ele acha possível o casal não ter mais afinidades físicas, e ainda existir o amor espiritual.

― Pensei em mim também. ― Osvaldo respondeu. ― Por que as mulheres se cansam de fazer sexo e os homens não?

― Acho que as mulheres assumem os gostos dos homens e topam fazer sexo quando eles querem e como gostam. Mas não vejo a contrapartida do lado deles ― que são a atenção carinhosa, a expressão do afeto. Parecem que só pensam “naquilo”. Esquecem que para ter o que querem, devem fazer um esforço e dar à mulher o que ela sente falta, que é carinho, atenção, afeto. A gente se esforça para agradar o companheiro, por que ele não pode se esforçar para agradar a gente? Por que o homem não enxerga que tem parcela importante para a igualdade de desejos? Assim ambos ficariam satisfeitos. O homem no estilo de pouco diálogo, dificuldade de se abrir, de expressar sensibilidade, fica preso ao seu único interesse egoísta, sexo como instinto apenas. Quais são suas conjecturas?

quarta-feira, 5 de maio de 2021

não se perca na multidão – 1 ano e 60 dias em foco (CENA 47)

 

05/05/2021

Em três de março, Bia relembrara passeio que fizera ano passado, quando a pandemia ainda não pedia tantos cuidados como hoje. Hoje é necessário para quem valora a vida. A noite parecia estrelada como àquele dia em que saíra para um passeio com Josué, onde ela notara a mudança repentina de falta de público.

― Josué, a noite mostra o ocaso, veja só que céu. Somente nossa realidade transformou-se de tal forma que chego a relacionar ao caos. Um caos provocado por inábil atuação do governo, desde o início a gente vê. Não somente eu, você também, todas as pessoas, das mais simples às mais esclarecidas, todo mundo está vendo. Apenas o segmento amalucado continua abilolado e sai por aí sem prevenção. Como estará aquele comércio?

― Tem... muitos locais fechados, placas de aluga ou vende. Muitos faliram. Tiveram ajuda governamental?

Sentou-se enquanto Josué foi pegar cerveja na geladeira.

― Está bebendo quase todo dia. Isso não é bom, diminui imunidade.

― Bia, esse é meu fim de noite completo há ano. Comemoro que ainda vivo, sei lá amanhã. Já não aguento a estreiteza de caminhos. Não vislumbro esperança por mais que eu diga, calma Josué, esperançar, esperançar. Com as variantes da doença sendo criadas devido a extensão de casos, ninguém está livre de parar em UTI e pior, não ter leito, não ter oxigênio, como aconteceu em Manaus. As pessoas amarradas às camas e nem medicamento para sedação. Eu quero o direito de viver e a conduta de governos é cada vez gastar menos com a saúde e o SUS. Isso tem de mudar, urgente. ― A conversa girava em torno das transformações exigidas pela onda pandêmica no mundo. ― Já se viu que sociedades que investem em saúde têm seu diferencial, veja Cuba, por mais que a ilha seja sacaneada com as restrições dos países, a saúde é um bem que a cidadania pode contar. Esse neoliberalismo maluco que beneficia só poderosos tem que ter fim.

― Será que este ano poderei ir à Manifestação de oito de março, das Mulheres?

― Provável tenha eventos on line, mas presencial, duvido.

― Além de arriscado, tem as regras de restrição.  Que ano esse, entramos bem.

― Bem lá no fundo do poço. Continuo trabalhar porque ninguém me auxilia em nada não. Eu que não corro atrás pra ver. O presidente esteve aqui em férias e gastou rio de dinheiro que poderia me ajudar e aos outros pescadores, mas as mordomias não chegam em nós. E ainda aglomerou trazendo vírus pra cidade.

― O que os pobres podem fazer? Trabalhar é única solução, continuar a pesca hoje para ter comida amanhã. Não tenho cartão corporativo pra abater contas.

Às vezes o silêncio era a conversa em sua linguagem de muito dizer. Cada dia o silêncio de cada um em sua ilha se tornava imenso. Bia olhava, observava o marido, a conversa que não fluía e continuava indecifrável. Josué aconchegado ao seu lugar costumeiro, o guardar a si conhecido, perguntas não respondidas com maior intensidade. A mulher levantou, resgatou vasilhames da mesa e foi à pia. Um silêncio que era vasto a cada dia por saberem apenas daquele dia. O amanhã nebuloso.

Em dezessete de março deu-se um ano de pandemia pela anotação em sua agenda. Quando houve a quarentena local. Bia disse, como é estranho. Primeiro ano que se recordava não comprar agenda. Usara a mesma, a de 2020, escrevera ao lado apenas a mudança dos dias da semana. E esse dia, uma quarta-feira em 2021, era o segundo maior em quantidade de mortes em apenas um dia, quase 2.800. O Brasil totalizava mais de 285 mil mortes.

Enquanto isso, os ônibus continuavam abarrotados de trabalhadores. A burguesia ia às passeatas de carrões pedindo que não houvesse quarentena, pensando em seus negócios. As mortes aumentavam à medida em que a medida irresponsável era adotada. Calma e caldo de galinha não alimentavam pensamentos, pois as catástrofes iam avolumando. As pessoas estavam exaustas, o corpo médico de todo e qualquer lugar do país trabalhava sob forte pressão e sem descanso todos os dias. Eis que em 24 de março o Brasil chegou aos mais de 300 mil mortos e mais de 12.183.000 milhões de casos (provável subnotificado).

O ano difícil em 2020 para quem não tinha trabalho, mas conseguiu auxílio emergencial de 600 reais foi tolerável. Em 2021, ainda nesta data, milhões de trabalhadores sequer tinham qualquer auxílio. O governo iria começar em abril e com valor de apenas 170 reais, em média. Muitas pessoas foram cortadas do auxílio, apesar do desemprego ser ainda maior. E fechamento de muitas indústrias. E o povo não era escutado pelas instituições que ficavam em seu individualismo, esquecendo-se do papel de nação, o cuidado com seu povo.

O presidente continuava negacionista, ainda dizia, o povo ia ver que ele tem razão, errados são governadores e mídia que insistem no isolamento. Os dias não pareciam os mesmos porque a cada dia o número de mortes assustava pelo aumento diário. E, além disso, pessoas estavam sofrendo repressão dos órgãos de governo por expressar a realidade nua e crua ao olhar de qualquer um.  O presidente dizendo a curva vai abaixar. E reclamava de usar máscara. E continuava aglomerar.

― Que está escutando, Toninho?

― Ai, mãe, continuam as trágicas notícias e nem mesmo algo para alento da gente. Continuamos dançando à base de fake news de um lado e notícia cruel em todo fim de noite com aumento diário de mortes a cada dia. Parece não ter fim nossa agonia.

― Filho, sei que você está esgotado, ansioso.

― Ando tendo pesadelos. Amigos indo embora, amigos de amigos, parentes próximos de nós. Quando grito, me vejo dentro do buraco, em pânico, às vezes chorando, pois mãe, ninguém está livre da coisa. ― Toninho continuou:

― Está difícil sonhar neste país. Pés plantados no chão é algo difícil entre nós, porque hoje é três de maio e são mais de 408 mil mortes. O Brasil está perplexo e ao mesmo tempo moribundo. Isso é loucura! Mãe, pra onde caminhamos?

sábado, 3 de abril de 2021

quatr’estações dum coração mineirin

 


30/03/2021

        ou to no momento d'um jeito ou d'otro que ocêis num podi maginar. num sei se ocêis po ver ão mesmo tempo essi treim que si passá com eu. é sardade que num teim palavra boa dixpressar. às vêiz sintu um nó no gogó que amarga só no ingulir. teim vêiz que num sintu nada e num sei ixplicar por quê essas coisa se achega e depois disaparece que neim maria fumaça. ficu que neim locu na janela guardano minh’ prima Vera chegá pensano que se ela se proxima é porque o tempo vai cê doci pra nóis uai. sei que é goísmo de genti que teim ventu na cachola e vai pensá na prima c’otro zóio mais é meu zóio ora. in ver no andá dela a carma serená in vorta de eu e as nuve inscura indu imbora quand’ela vem vinu pra modi de mi fazê companhia. meu Deuzin do céu eu ficu gualzin esses anjo lá no teto d’ingreja parece que voo e neim sintu passá as quatr’estação e um tiquin perdidu ficu ganguejanu ‘on cô tô? on cô vô? on cô vim?

quarta-feira, 31 de março de 2021

aos que têm sede de viver (CENA 46)

 

31/03/2021

― Sinceramente, Bia, que catástrofe esse vinte de fevereiro com quase 250 mil mortes. O que será que vem? Dormindo a gente penetra numa fundura de dor. Essa noite acordei em sobressalto, imagina que...

 

Poeira ao vento. Quando se quer qualquer coisa tem de procurar? Pois que ela procurava na aroeira, a do canto do quintal. Ouvira falar das proezas da quitanda, além de pimenta rosa o tronco é tiro e queda pras doenças do estômago, muitas e até do vulgo estômago virado, de até cachorro tinha. Nisso foi inventar de catar casca do tronco pra fazer chá e destemida não ouviu o que a avó tinha contado muito tempo de trás no quintal, no tempo de sua meninice, de em certas noites, quem visse, rezava muita novena e novena sem fio de parada pra modo de levar pra longe as mazelas. Porque a gente que olhasse ficava abobada e não emitia sombra de palavra, nem obrigada. Isso é coisa de vó, solene no contar da prosa. 

Ela não se abestalhava com poeira pouca. A vida aí inteira para se caminhar pra frente. Reza boa arreda pé do medo.  Era de noite e não sabia se de certa noite. Foi toda sorriso, desceu a escada pé ante pé, sem se esgueirar, cheia de hábil amor por si. Nada há de me avexar que sô muito é mulher macho, mesmo sendo fêmea, cabra arretada e com umas rezas, zelo de fé e crédito na glória divina, eu sem espanto me garanto. E como silêncio ia quieto, imaginava que não se sabe o que a vida está dizendo, mas quando se levanta e se põe a caminhar, sabe que não está só. 

Ela pegou o vazio e preencheu com música. Laranja madura na beira da estrada. Tá bichada. A própria voz escutada. Mas diziam que aquilo assombrava até cabra macho e que deixava à mostra o coração, o peito abrisse e lhe visse as entranhas em fel que tanto amarga. Certo que haveria de achar e reconhecer a arvinha mesmo naquele breu. Às vezes a escuridão serve pra alumiar e curar nossas cegueiras e pode colocar os demônios para fora enquanto é tempo. 

Quando de cara no tronco que procurava, ela viu surgir de trás um meio rosto. O meio rosto trazia meia face de palhaço de alegria de circo, enganava mas num era. Era cara de patetice feito laranja bichada e sorrira abobalhado oferecendo como dádiva a palurdice pra patriota ouvir quando não tem miolo nem senso, nem se liga duas ideias, na verdade bufonea e atrofia o intelecto. Era esse o tipo e quando olhasse se transformasse em um. Puro espelho. Ela, por demais curiosa, fechava a mente e a meia fronte desapareceu ao seu cantar o credo, reza altaneira. 

Visualizou do outro lado do tronco e quando meia face de demônio se atreveu mostrar satânicas unhas e dentes e abriu a bocarra tentando engoli-la numa gosma verde oliva, ela disse, sai monstro, eu digo não. Eu me vou que esperar não é saber. Escutou a voz vinda dos tempos. É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. Rezou padre nosso, ave Maria e pernas para que te quero, não aceitava ser mentecapta e na carreira a lua alumiou e adentrou em casa sem voz na goela, sã e salva.

 

― Ruza, você padeceu durante o sono. A realidade açoita a gente e de noite arde. Sonhei uma noite dessas um troço sem pé nem cabeça que vou te contar. Não é só você que anda fustigada durante a noite...

 

O tormento atravessava. As pessoas atingidas estavam como se não se conhecessem mais. Os ‘normais’ que na verdade sempre foram estranhos ficaram ainda mais estranhos. Alguns poucos desses estranhos mais inquietos e indecisos, alguns outros se moldaram à aparência de soldados desalentados com a cabeça ensanguentada em vermelho vinho. Dispostos lutar por nada ou coisa nenhuma que valesse e destruir a quem tropeçasse ou discordasse.

Dentro de casa as gentes se achavam seguras. Não antenaram para ameaça. Bem ao meio do terreiro, sentada na praça, em cadeira alta, sua alteza ‘M exigia milhões, milhos gigantes com bastante grão que reluzia ouro, prata, para colocar nos balcões junto com as laranjas lima. Sua alteza enchia a bolsa e os bolsos. Ao seu comando o bobo da corte pulava, corria, fazia e acontecia. O olhar global de soslaio se remexia com o cristalino do olho opaco e vidrado também queria milhão.

            Do outro lado do terreiro mortos andavam mais vivos do que os mortos-vivos estranhos sem reação nenhuma. A área plana empapuçada de caminhantes em andrajos no fantasmagórico trajeto. Cheiro e morticínio. Havia muitos mortos-vivos sem rosto e de barriga vazia, mas esses ninguém via.

   A chegada de bacurau fez a tormenta arrefecer e a ave em seu voo precipitou o cair de chuva estrelando flores-de-esperança, flores-de-beleza aqui acolá e mais tantas flores em pétalas azuis, brancas, rosas, multicores espalharam-se no chão antes árido. O pássaro vivera o pânico e acenava voo com intuito de espalhar o mínimo, nada além do mínimo néctar e faria lima espremer para distribuição aos que sede têm de viver.

 

― Bia, seu sonho é mais louco que o meu. Quando é que vem sonho com paisagem tranquila aonde se possa respirar à sombra de árvore, ouvir o passarinhar, sentir o crec crec de folhas e descansar dessa longa jornada?

― Depois que Josué me contou o pesadelo dele com uma ave, acho que fiquei impressionada. Existe pedras no caminho, Ruza, muitas.

As mulheres se despediram. Bia abriu o portão e ainda acenou à Rosária que falou:

― Vê se lembra sonho ameno. ― E deu um riso enquanto caminhava. ― A gente se vê no próximo sábado então.

domingo, 21 de março de 2021

o pobre reflete dores e aflições de Maria e José (CENA 45)

 

21/03/2021

        Dona Cotinha saiu da janela e se encaminhou até à porta. Recebeu as mulheres à distância protetiva, pois sem máscara.

       Dona Cotinha vivia sozinha antes da pandemia dar seu arregaçado riso destruidor e a filha viera viver com ela após perder emprego e não ter como pagar aluguel. Nem sei dizer pra vocês, meninas como ando me sentindo. Às vezes me pego pensando qual é o objetivo viver enclausurada, sem convivência com vizinhos e amigos, sem nossas folias da comunidade, ah! como faz falta. Tem hora que sinto uma lentidão no passear do relógio, o corpo nem querendo obedecer e fazer o que tem de ser feito em casa, parece que ando anestesiada e caminhando que nem autômato para lá e cá. Que vida essa que ‘tamo’ vivendo, hein, é muito louco tudo que a gente presencia. 

       Nosso povo com tanta dificuldade de viver e só se escuta nas rádios e tevês que os ricos tão cada dia ainda mais ricos, pra vocês verem, meninas. Por que eles não têm solidariedade por nós?

      Eu fico me perguntando. Pra que serve tanto dinheiro se cada vez nem pobre, nem rico tem acesso a lugar nenhum por causa das quarentenas que vão e vem, pra quê? Para onde a gente tá caminhando com tanto retrocesso em nossas vidas?

     As forças de polícia também vêm pra periferia e matam os nossos tanto quanto o covid e desrespeitam ordens sem ninguém além de nós reclamar. Tá difícil.

       Cheguei na velhice achando que poderia descansar da lida exaustiva de criar os filhos, agora vejo meus filhos dependendo de ajuda miserável desse programa de governo por estarem desempregados. Minha filha mais nova, na flor da idade não encontra trabalho de jeito nenhum, e olha que ela teve estudos graças aos programas do governo de antes de 2016. Agora esses terríveis que vieram depois só querem destruir tudo o que nos deu chance de diminuir um pouco a dor da pobreza.

― Concordo com’a senhora, as coisas voltaram a ser muito difíceis pra nós da periferia. Talvez quando essa dificuldade chegar na classe média, ela se levante e vá pra rua fazer o que a gente sempre fez e que ela usufrui quando a gente consegue. Não vou arredar pé daqui mais não, cansei, como a senhora diz que está cansada. Essa turma da classe média se juntou aos ricos e à mídia para destruir nosso país, agora eles resolvam o diabo que plantaram.

Rosária se afastou da conversa enquanto Bia discutia os problemas diários. Parecia enxugar os olhos, teve impressão Bia que seguiu seu distanciamento até o portão.

Após assistência a Dona Cotinha, Bia e Rosária foram pelo estreito caminho até a próxima casinha.

― Ruza, que que houve? algum problema? posso te ajudar?

― Enquanto você conversava com Dona Cotinha, fiquei pensando no prefixo ‘inha’ do nome dela. Afastei para não interromper a conversa.

― Dona Cotinha é conhecida. Vizinha de minha casa da infância. Nossos pais são próximos e quando mudou de lá, os pais de Josué foram morar na casa. Ela é como parente. Aliás, nosso povoado é muito unido e graças a isso temos conseguido conviver com as dificuldades atuais. Que te fez associar o ‘inha’ de Dona Cotinha?

― Lembrei do nome que costumavam dar à minha mãe. ― Rosária então foi contando a história.

 

Casebre em polvorosa. Afinal chegara o Natal. Todos esperávamos com euforia a nossa mãe laboriosa dar jeitinho que tivéssemos dias felizes. A mãe se esforçava um bocado a mais, lavava roupas ali, faxinava dacolá e no dia do bom menino, lá estava a esperada surpresa das crianças, que sapecas corriam pra rua a mostrar o que o bom velhinho escolhera. No fundo sabíamos vinda de nosso pai e nossa mãe.

Não importava o chão pobre, ali o amor era ordem natural vinda de Dona Santa e do sorriso prestativo do Seu Jair (nem tudo é perfeito!). Os cinco filhos pequeninos, saltando idade ano a ano a partir dos dois em escadinha. Dona Santa. Nome que lhe puseram, pois do tempo de auxiliar de enfermagem trouxera o manejo na aplicação de injeção. Quando os vizinhos necessitavam lá estava ela com a caixinha de metal e seringa esterilizada de casa em casa, onde lhe acenassem. O nome veio daí, do prazer em servir a comunidade em redor. Dona Santa ou Santinha não tem preço, diziam. Era gratuidade no rosto amigo, sempre disposta, sempre risonha, não riso escancarado e vulgar, mas a risada dos bons, dos afetuosos, dos coirmãos. Tratava a todos com o respeito que todos mereciam.

Até mesmo Seu Manoel, de quem era inquilina, tratava Dona Santa com jeito especial. Seu Manoel e seu filho Noel residentes na chácara em cerca aos barracos que alugava, chamava a molecada para folia, correria, brincadeiras e no final, amontoada nas mangueiras e goiabeiras, ou catando pitangas e jabuticabas saía lambuzada, e o sotaque do português se expressava ‘ora, ora, pois, pois’.

            A gente dá muito valor a mãe da gente. Não era diferente lá em casa, onde a mulher do lar comandava hora do banho fazendo o possível na economia da preciosa água. Arrumava a gente como princesa e príncipe daquele reino. Ali a gente brincava até ela designar hora de dormir.

            Em nossa casa sempre havia festa. A família reunida entre vizinhos que da família se tornaram era motivo de festa. A convivência e as palavras expressão de amizade. Lugar de proximidade e escuta, minorando o suor do dia a dia do povo trabalhador. Era ali guarita hospitaleira.

E a gente se alegrava ver a mãe dar risadas, o vibrante corpo exalar prazer com’a vida construída ao esforço. A gente via, às vezes, ela ao canto em silêncio. A solidão está em todas as pessoas. A solidão estava em minha mãe. Dona Santa que viera de Goiás Velho. Vai ver saudade do Rio Tocantins, de proezas de menina que ficaram lá trás quando o pai permitia brincadeira, do momento que de cima da árvore o corpo flexível voava e aos gritos de liberdade mergulhava no rio. Saudade que mesmo gente crescida não esquece.

Quando penso em natal penso em minha mãe. Seus natais eram tão diferenciados, simples e ousados e todos ficaram em minha memória. Dona Santa vive. Nossa mãe vive.

 

― Nossa, que história, Ruza. Legal ter mãe com nome de santinha. Você contando a gente vê a aparente e santa pobreza, que nem a da Sagrada Família. O povo pobre reflete as dores e aflições de Maria e José nos esforços em proteger ao filho de Cristo. Então hoje que vivemos tanta tragédia com a covid, é tão visível a miséria em redor, né! Por que quem é bem aquinhoado não solidariza com nossa dor, Ruza?

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

soltando os cachorros (CENA 44)

 


23/02/2021

 

‘A cachorrinha pegou a latir,

nesse ofício que quase todo cão tem,

de ser presumido valente.

Com licença de João Guimarães Rosa’ e

Adélia Prado

 

― O que vem nos revelando esse começo de 2021, Bia, dá pra enlouquecer. Caminhamos pra duzentos e cinquenta mil mortes pelo corona num contínuo descaso desse governo às nossas vidas. Vinte de fevereiro e ouço só notícia ruim, e corro daqui dacolá do povoado para ajudar as famílias. Além de Manaus sem respirar, aumento de casos em tantos outros lugares também. E aparecem as variantes do corona. E as dúvidas das vacinas não dar conta da mudança do vírus. Tanta fake ainda, a cloroquina ainda, a ivermectina ainda, a teimosia em não usar máscara, a ... Precisamos de basta.

― Basta, isso mesmo Ruza, basta, está difícil viver esse clima, estamos esgotadas mas esse esgotamento não é de cansaço, é de ver a inércia desse governo e legislativo que não dão conta de evitar os desastres da pandemia, que até hoje não definiram o auxílio emergencial e querem aprovar a merreca de 250 reais, um abuso, com tanta gente em dificuldade e sem opção.  Agora pra despistar, somente falam do tal deputado preso por vociferar contra instituições. Enquanto isso as pessoas morrem, não têm vacinas, o governo não têm planos, estamos ao Deus dará. Queremos clareza sobre vacinação, quantidade de vacina para todos brasileiros. Não é esse miúdo que reverberam nas notícias que nem dá pra vacinar muita gente. Precisamos aprumar.

― Exigimos elegância, respeito e consideração para com o povo. O povo não é tratado assim. Aqueles que vendem nossas riquezas são tratados com elegância, respeito e consideração. É absurdo. Aquela cantora diz ‘é muito difícil lidar com esse culto de morte dessa época que vivemos’. Está certa. Caos e nada além de caos. Em nossa cidade os leitos entraram em saturação, estão lotados. Quanta incompetência, cadê a ótima logística que alardeiam pelo país?

― Desde quando começou o ano não temos um pingo de paz, somente desastre e desatino nesse país largado e sem ninguém para pegar o leme, credo viu, ando de cuca quente, procuro ajudar, e nem assim descubro saída. O natal e ano novo passamos escondidos dentro de casa e agora está mais terrível que antes, sem as pessoas serem socorridas tanto na saúde quanto no dinheiro para o mínimo digno a cada um. Onde esses ‘gestores’ andam com a cabeça? nas nuvens?

― Não tivemos natal, ano novo, não tivemos carnaval, e nem teremos semana santa. Será o ano inteiro nessa vagareza de decisões que vêm de cima? E ainda assim existe apoiadores. Não quero crer nessa insanidade, deve ser porque são mal informados, acreditam nas fakes, só pode.

― Bia, não tem jeito. Solte os cachorros. Eu solto os cachorros também. Já estou com dificuldade de respirar, e se pego o corona nesse ambiente saturado dos atendimentos de saúde pública? Nem quero pensar e nem posso ficar em casa, como muitos podem estar em suas macias almofadas. Preciso trabalhar mesmo na falta de oxigênio.

            ― Ruza, ali está a casa de dona Cotinha, vamos lá saber do que ela precisa. Esse é nosso trabalho, a gente reclama mas não se acomoda, nem se acovarda, corre atrás de solução. Talvez donas de casa saberiam administrar melhor que esses aí no poder.

            ― Nem tem dúvida! Vamos lá! Dona Cotinha, tudo bem com’a senhora?

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

a luz deve brilhar a todos (CENA 43)

 

16/02/2021

            A convivência com aquele homem modificara rotina de Luiza. Tem agora um amigo. Osvaldo trazia dúvidas e contradições em seu pensamento sem vislumbre profundo do amanhã. Sentada, com pés descansando no murinho da sacada relembrara velhos tempos.

 

Luiza e Fábio curtiam a natureza verdejante abaixo da grande árvore de frutos em aspecto rosáceo-avermelhado. Apaixonados, esquecidos dos compromissos e do que a sociedade esperava de cada um. Cada um de origem diferente e naquele momento em irmandade do amor. Afinal a luz deve brilhar a todos.

Ao longe apreciavam a paisagem digna de quadro divino. As montanhas cobertas em tonalidade de pincel nos verdes caminhados entre pálido e amarelo. O céu claro com leves nuvens desenhavam estradas suaves e se imaginavam naquele local livre de preconceito. A Amazônia em sua exuberância aos caprichos da paixão.

Ela vinda de indígenas ianomâmis, ao sol lançado entre folhas trazia luz à sua pele dourada. Ele cara pálida comum boquiaberto com a beleza de mulher que conhecera no local de trabalho. Uma menina-mulher, a bem da verdade. Mas o que havia nela para transformar o dia a dia ele se perguntava. A vida dá sempre chance pra gente fazer o que quer. Queria estar com ela. Ambos em sintonia com a agreste beleza e aos poucos encontrando-se um ao outro. O desejo caminhava devagar e ela sentia o medo aparecer aos toques da mão carinhosa do namorado mesclado ao interesse de conhecer a fonte incandescente. Tinham sede. Eram jovens descobridores.

A tentação surgia e permitiam-se o estado original. Tentar tantas vezes o lema humano transpassava corpos livres. Bebiam de fonte natural.

 

Enquanto isso Osvaldo levara o vasilhame calmamente. Respirava sem sofreguidão e pudera, me esqueci de fumar tantas vezes como de hábito, até nisso Luiza me ampara. A mulher fazia a vida ganhar cores as quais pensara desaparecidas de seu cotidiano. Uma amiga nesse vale longínquo vale. Não sei por que estranhar amizade entre mulher e homem. Por que será dúvida para ela?

Cuidava da lavação da louça e viajava na água jorrando.

 

Cândida levara Osvaldo a conhecer praias da ilha, a Joaquina, Mole, Galheta, Moçambique, Daniela, Campeche, Canasvieiras, Jurerê, Ingleses e tantas outras. Os banhos ao sabor das ondas jorravam e os dois riam feito criança.

Osvaldo fascinado com a namorada. Sua perfeição acima de discussão. Na realidade respeitava-a como é. O período de bulling lhe ensinara tanta coisa. E o caráter da moça impecável. Ela sofrida do tratamento agressivo do câncer e nem assim perdera a redondeza das formas.  Os dois se pareciam e se gostavam. Era incondicional a admiração de um e de outro. A paixão elevou o afeto. Casaram-se e a fase de dor passou para ambos.

Tem razão o que se diz de tentação. A permissão de tentar tantas vezes transpassa corpos livres. Jorrava água de fonte natural.

 

Assustou-se com chegada repentina de Luiza dizendo:

― Valdo, fiquei acostumada à paz, mas a obrigação me chama. Tenho de ajeitar casa e trabalhar amanhã. Está de pé nosso encontro on line na data natalina, não é?

Osvaldo fechou a torneira. Limpou as mãos, virou para Luiza e meneou a cabeça. Ela com pertences pendurados ao ombro enviou beijo entre máscara e saiu. Ele acompanhou a saída e voltou ao enxague da louça. Após apanhou cafezinho, o cigarro e se dirigiu à varanda. Vamos ver o que nos revelará 2021, disse com rosto questionador.

domingo, 31 de janeiro de 2021

a pensar (CENA 42)

 

Foto Jaimerchagas

22/01/2021

Em cento e oitenta graus Luiza frui uma vez mais a confortante paisagem.

― Valdo, ouve! O galo anuncia novo dia e nós ainda na libertária noitada, e atrevidamente com direito a abraço. Ando apreciando esse tempo de paz na sua casa. Morar sozinha me agrada se a gente é capaz de velejar por todos os polos e depois descansar no canto escolhido, o que hoje é impossível, não é? Mas é hora de dormir, concorda?

― Lar é básico e todos têm direito. Como te disse, o quarto está arrumadinho. Vamos, me ajuda levando as coisas pra cozinha. ― Levantaram-se, colocaram máscara. ― Depois cuido da louça.

O apartamentinho de cinquenta metros quadrados, mas a tão agradável divisão dos cômodos dá amplitude. Luiza ia comentando antes de entrar no quarto. Mais uma vez quebrou rotina epidêmica e abraçou o amigo. Osvaldo desejou boa manhã e beijou-lhe os cabelos dizendo, tem manta na bancada, às madrugadas vem a friagem.

Luiza acordou com fome e abriu a porta olhando Osvaldo desaparecer pelos lados da sacada, vestido de preto, em camiseta e calça larga, e correu a observar a arrumação, ele disse:

― Armação minha. Apesar de quase meio dia imaginei que um café dá visual especial.

― E eu ainda de pijama, vou me trocar.

― Está confortável? Porque não importa. Minha roupa é tipo pijama, estamos iguais ― e apontou para si e para a banqueta. ― Como foi a noite, ou melhor, a madrugada? Quer café ou chá?

― Valdo, não estou acostumada a tanto mimo. Pra dizer a verdade, coisa difícil hoje neste país, dormi tão profundo e me entreguei a Morfeu como há muito não me permitia. ― Sorriu Luiza.

― Também não posso reclamar. O galo me guarneceu sono poético.

Terminada a refeição, Luiza pediu desculpas por ter se ocupado apenas de seus problemas.

― Todos temos histórias, Luiza. Eu te escutei. Tenho as minhas também.

― Valdo, tenho dia inteiro, esqueceu que nem trabalho hoje? Quero te ouvir. Quero te conhecer mais. Quero um amigo confidente.

― É raridade amizade profunda. Amizade com afinidade de princípios e valores. Mas se se encontra, a pessoa é felizarda. Fernando Pessoa escreveu que um amigo íntimo era seu ideal impossível devido olhar para a hipocrisia e vaziez da sociedade de conveniência, a que a gente se assusta a cada dia em nossa realidade.

― Valdo, te ouço. ― Luiza colocou alimento à boca e respirou tão fundo quanto Osvaldo. O alimento dissolvia lento.

O homem humilde, olhar de súplica, rogava bom ouvido à oração. Ofegante, comedido, inseguro com o lenitivo que Luiza oferecia. A família vivia em Belo Horizonte. Minas vive em mim em qualquer lugar que eu esteja. Ainda indeciso se continuava, instante depois revelou o acidente.

― Não me lembro de nada após o ônibus atracar nosso veículo. Quando acordei no hospital, meus pais e meu irmão, toda minha família não vivia mais. Eu tinha trinta e três. Mudei-me para a Ilha de Santa Catarina e trouxe sentimentos que me dilaceraram longos três anos. É difícil a solidão. Foi quando conheci Cândida. Inicialmente ela me lembrava antiga paixão, um carisma, atrevimento, e depois me apaixonei, ela foi meu esteio, eu largava o jeito torto que caminha comigo. ― Osvaldo interrompeu e bebeu o líquido já frio da caneca.

― Está bem? ― Luiza perguntou após breve silêncio.

― Quando a conheci tivera câncer, mas compensada e curada. Fazia acompanhamentos necessários. Tivemos um casamento bem legal. Depois a doença surgiu em outro lugar e se alastrou. Quando aconteceu tinha cinquenta seis, como você. ― Osvaldo levantou e acendeu cigarro. Foi ao canto da varanda. De lá continuou ― Vivi lutos doloridos em minha vida. Você me entende. ― Luiza assentiu.

― Por outro lado é estranho, quanto mais se vive mais se presencia tal questão difícil de lidar, não é? A morte. Nossa única certeza e o sofrimento de falar sobre. Falei de Cândida, você relembrou sua história. ― Osvaldo engasgou, mas continuou o raciocínio.

― Já as tantas mortes oriundas da pandemia não haveria se houvesse planejamento, seriedade, ética na governança. Quase cento e noventa mil mortes neste vinte e três. Vivemos atmosfera de morte de uma forma terrível de descrever. Vivemos a desumanização constante. Urge reconhecer para que se abra agenda humanizante. Que natal teremos. Nem consigo imaginar o que nos aguardará em 2021. ― Apagou a bituca, jogou no cinzeiro e sentou-se, enquanto Luiza:

― O estado ajoelha pro mercado financeiro e acata as ordens e destrói o povo, a nação. Não tem jeito da gente achar que a morte deva ser velada. A morte deve ser escancarada. Devemos exigir dignidade para nós brasileiros.

― O que disse do natal, apesar das dores que vivemos, acha possível, seria desrespeito, Valdo? Simples confraternização de natal on line? A gente poderia combinar com Dodô, Ritinha, seus amigos do grupo da esquina, se quiser, para que a gente não fique tão solitária, pois aglomeração está fora de questão. Amanhã trabalho até às dezessete. Assim, a reunião seria entre dez da noite até romper a passagem do natal. E o mesmo na entrada de ano. Acha razoável?

― Será bom rever e conviver com a turma mesmo à distância.

Osvaldo levantou, mascarou-se e ao juntar as louças, Luiza acolheu a mão na dele e o abraçou.

― Sinto tanto por nós, meu amigo. Mas você me convenceu, existe momentos amigos e inimigos. Ter amigo conforta a dor. Estou feliz por te conhecer.