quarta-feira, 5 de maio de 2021

não se perca na multidão – 1 ano e 60 dias em foco (CENA 47)

 

05/05/2021

Em três de março, Bia relembrara passeio que fizera ano passado, quando a pandemia ainda não pedia tantos cuidados como hoje. Hoje é necessário para quem valora a vida. A noite parecia estrelada como àquele dia em que saíra para um passeio com Josué, onde ela notara a mudança repentina de falta de público.

― Josué, a noite mostra o ocaso, veja só que céu. Somente nossa realidade transformou-se de tal forma que chego a relacionar ao caos. Um caos provocado por inábil atuação do governo, desde o início a gente vê. Não somente eu, você também, todas as pessoas, das mais simples às mais esclarecidas, todo mundo está vendo. Apenas o segmento amalucado continua abilolado e sai por aí sem prevenção. Como estará aquele comércio?

― Tem... muitos locais fechados, placas de aluga ou vende. Muitos faliram. Tiveram ajuda governamental?

Sentou-se enquanto Josué foi pegar cerveja na geladeira.

― Está bebendo quase todo dia. Isso não é bom, diminui imunidade.

― Bia, esse é meu fim de noite completo há ano. Comemoro que ainda vivo, sei lá amanhã. Já não aguento a estreiteza de caminhos. Não vislumbro esperança por mais que eu diga, calma Josué, esperançar, esperançar. Com as variantes da doença sendo criadas devido a extensão de casos, ninguém está livre de parar em UTI e pior, não ter leito, não ter oxigênio, como aconteceu em Manaus. As pessoas amarradas às camas e nem medicamento para sedação. Eu quero o direito de viver e a conduta de governos é cada vez gastar menos com a saúde e o SUS. Isso tem de mudar, urgente. ― A conversa girava em torno das transformações exigidas pela onda pandêmica no mundo. ― Já se viu que sociedades que investem em saúde têm seu diferencial, veja Cuba, por mais que a ilha seja sacaneada com as restrições dos países, a saúde é um bem que a cidadania pode contar. Esse neoliberalismo maluco que beneficia só poderosos tem que ter fim.

― Será que este ano poderei ir à Manifestação de oito de março, das Mulheres?

― Provável tenha eventos on line, mas presencial, duvido.

― Além de arriscado, tem as regras de restrição.  Que ano esse, entramos bem.

― Bem lá no fundo do poço. Continuo trabalhar porque ninguém me auxilia em nada não. Eu que não corro atrás pra ver. O presidente esteve aqui em férias e gastou rio de dinheiro que poderia me ajudar e aos outros pescadores, mas as mordomias não chegam em nós. E ainda aglomerou trazendo vírus pra cidade.

― O que os pobres podem fazer? Trabalhar é única solução, continuar a pesca hoje para ter comida amanhã. Não tenho cartão corporativo pra abater contas.

Às vezes o silêncio era a conversa em sua linguagem de muito dizer. Cada dia o silêncio de cada um em sua ilha se tornava imenso. Bia olhava, observava o marido, a conversa que não fluía e continuava indecifrável. Josué aconchegado ao seu lugar costumeiro, o guardar a si conhecido, perguntas não respondidas com maior intensidade. A mulher levantou, resgatou vasilhames da mesa e foi à pia. Um silêncio que era vasto a cada dia por saberem apenas daquele dia. O amanhã nebuloso.

Em dezessete de março deu-se um ano de pandemia pela anotação em sua agenda. Quando houve a quarentena local. Bia disse, como é estranho. Primeiro ano que se recordava não comprar agenda. Usara a mesma, a de 2020, escrevera ao lado apenas a mudança dos dias da semana. E esse dia, uma quarta-feira em 2021, era o segundo maior em quantidade de mortes em apenas um dia, quase 2.800. O Brasil totalizava mais de 285 mil mortes.

Enquanto isso, os ônibus continuavam abarrotados de trabalhadores. A burguesia ia às passeatas de carrões pedindo que não houvesse quarentena, pensando em seus negócios. As mortes aumentavam à medida em que a medida irresponsável era adotada. Calma e caldo de galinha não alimentavam pensamentos, pois as catástrofes iam avolumando. As pessoas estavam exaustas, o corpo médico de todo e qualquer lugar do país trabalhava sob forte pressão e sem descanso todos os dias. Eis que em 24 de março o Brasil chegou aos mais de 300 mil mortos e mais de 12.183.000 milhões de casos (provável subnotificado).

O ano difícil em 2020 para quem não tinha trabalho, mas conseguiu auxílio emergencial de 600 reais foi tolerável. Em 2021, ainda nesta data, milhões de trabalhadores sequer tinham qualquer auxílio. O governo iria começar em abril e com valor de apenas 170 reais, em média. Muitas pessoas foram cortadas do auxílio, apesar do desemprego ser ainda maior. E fechamento de muitas indústrias. E o povo não era escutado pelas instituições que ficavam em seu individualismo, esquecendo-se do papel de nação, o cuidado com seu povo.

O presidente continuava negacionista, ainda dizia, o povo ia ver que ele tem razão, errados são governadores e mídia que insistem no isolamento. Os dias não pareciam os mesmos porque a cada dia o número de mortes assustava pelo aumento diário. E, além disso, pessoas estavam sofrendo repressão dos órgãos de governo por expressar a realidade nua e crua ao olhar de qualquer um.  O presidente dizendo a curva vai abaixar. E reclamava de usar máscara. E continuava aglomerar.

― Que está escutando, Toninho?

― Ai, mãe, continuam as trágicas notícias e nem mesmo algo para alento da gente. Continuamos dançando à base de fake news de um lado e notícia cruel em todo fim de noite com aumento diário de mortes a cada dia. Parece não ter fim nossa agonia.

― Filho, sei que você está esgotado, ansioso.

― Ando tendo pesadelos. Amigos indo embora, amigos de amigos, parentes próximos de nós. Quando grito, me vejo dentro do buraco, em pânico, às vezes chorando, pois mãe, ninguém está livre da coisa. ― Toninho continuou:

― Está difícil sonhar neste país. Pés plantados no chão é algo difícil entre nós, porque hoje é três de maio e são mais de 408 mil mortes. O Brasil está perplexo e ao mesmo tempo moribundo. Isso é loucura! Mãe, pra onde caminhamos?

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