quarta-feira, 30 de junho de 2021

é isto, mas não deveria ser (CENA 48)

 

30/06/2021

            Estava empolgado. Disse a si mesmo: ‘você vive de empolgação. Às vezes na acomodação.’ Olhou para o livro que aguardava leitura. Interrompeu o vídeo que começara assistir para pegar o almoço, quatro da tarde e sem comer ainda. Riu de seus comportamentos. A instabilidade agora tão nítida e perceptível. Apenas vivia. Vive. As causas e consequências desse processo são os relatos de vida.

Osvaldo ouviu a campainha e saiu do aconchego da varanda após o almoço apagando a bituca de cigarro.

 Ei, Dodô! Veio cedo com as compras. Daqui a pouco terá descanso, daqui umas duas semanas estarei imunizado com a segunda dose e não incomodarei mais a você, Luiza e Ritinha. ― Osvaldo ia falando enquanto Dodô espalhava a compra perto da porta e limpava os objetos. ― Seu chinelo está aqui. Deixa que termino, entra e vai lavar as mãos. Fiz canjica pra nós.

Após tanto tempo de pandemia eles já não usavam máscara quando estavam à distância segura dentro de casa com janelas abertas.

― Valdo, eu tinha estranhado você não fazer pedido de ingredientes pra festa junina individual como fez ano passado. Mas o seu São João está atrasado, hoje são 30 dias de junho.

― Sabe, Dodô, os dias, semanas, meses e pelo jeito chegará anos e essa epidemia não tem fim. Afora tantas dores, quase 520 mil mortes, ouvi que são na realidade mais de 700 mil mortes se tudo fosse notificado, energias instáveis por todo esse processo que a gente vem vivenciando, assomadas às corrupções do e no governo, agora envolvendo até compras de vacinas conforme a CPI, às exigências do povo nas ruas vêm crescendo a cada encontro, tantas tragédias, desrespeito aos indígenas, matanças no Rio de Janeiro, no Amazonas, em tantos outros lugares, a venda por preço de banana das nossas últimas riquezas, esse tempo que vivemos é a barbárie. É traição e deslealdade aos cidadãos. O executivo, o legislativo, o judiciário, a cada dia nos deixam mais deprimidos pela falta de respostas dignas de instituições que deveriam honrar a vida dos brasileiros. ― Osvaldo ficou com respiração difícil e fez pausa. Em seguida continuou:

― Não aguento mais. Nem tenho astral pra festa junina, mas fiz a canjica. Espera aí, vou esquentar porque o frio está congelante, nove graus, coitada de você que ainda teve de vir aqui.

― Que isso, Valdo, tá me estranhando. Amigos atravessam oceanos, mares, lugares e apesar dos pesares ainda somos privilegiados, estamos vivos, e nossas irmãs e irmãos que se foram, hein? Quanta loucura vivencio todo santo dia. Fake news anda às turras por aí, inda mais com a queda do “minto muito” ― Dodô e Osvaldo relaxaram com risadas. 

― Canjica saindo fumegando.

― Huuumm! Tem que me contar o segredo. A canjica está deliciosa.

― Não conta pra ninguém, coloco pitada de noz moscada.

― Uau, está saborosíssima!

Enquanto comiam à distância prudente, interrompiam para conversa fiada.

― Valdo, lembra aquele amigo meu que anda escrevendo uma novela? Acho que comentei com você. Ele me perguntou esses dias o que eu achava do casamento com muitos anos de convivência. O personagem que ele descreve está na nossa faixa de idade.

― Dodô, você está sendo irônica! É bem mais jovem que eu. Relembro uma conversa nossa ano passado, quando veio aqui, talvez julho ou agosto ... e em pensamento veio-lhe a cena ...

 

― Gostou do poema do anjo pornográfico que te enviei, Dodô? ― Osvaldo inquiriu enquanto higienizava as mercadorias na cozinha. ― Credo em cruz, com essa pandemia tô vendo quanta sujeira vem, olha só! ― Dodô se aproximou da porta e ele mostrou o papel toalha úmido de álcool, imundo.

― Anjo pornográfico? Quem? Dalton Trevisan? Nelson Rodrigues? Você me enviou algo deles? Não lembro.

Osvaldo então declamou:

“...

exércitos correndo através

de ruas de sangue

brandindo garrafas de vinho

baionetando e fodendo

virgens.

...

há tamanha solidão no mundo

que você pode vê-la no movimento lento dos

braços de um relógio.

 

pessoas tão cansadas

mutiladas

tanto pelo amor quanto pelo desamor.

 

as pessoas simplesmente não são boas umas com as outras

cara a cara.

 

os ricos não são bons para os ricos

os pobres não são bons para os pobres.

 

estamos com medo.

...

 

ou do terror de uma pessoa

sofrendo sozinha

num lugar qualquer

 

intocada

incomunicável

 

regando uma planta.

 

As pessoas não são boas umas com as outras.

 

― O poema chama-se “o estouro”. Bukowski repete esta última frase três vezes. Dá pra sentir a dor, essa ênfase martela na nossa mente, ― e continua a declamação após as três frases iguais:


suponho que nunca serão.

não peço que sejam.

 

mas às vezes eu penso sobre

isso.

 

as contas dos rosários balançarão

as nuvens nublarão

 

e o assassino degolará a criança

como se desse uma mordida numa casquinha de sorvete.

...

tem que haver um caminho.

 

com certeza deve haver um caminho sobre o qual ainda

não pensamos.

...

 

quem colocou este cérebro em mim?

 

ele chora

ele demanda

ele diz que há uma chance.

...”.

 

            ― Ah! Não sabia que o poeta estadunidense, Charles Bukowski, era chamado anjo pornográfico. Adorei o poema, mas discordo dele, não me sinto sozinha. Já te contei que sempre gostei de morar sozinha e já cinquentona casei, vivi com meu marido por alguns anos um casamento interessante e aventureiro, devido problemas cardíacos ele se foi. Novamente me vi sozinha.

― Não é o seu caso, certamente. Mas existe muitas pessoas sozinhas, solitárias, sem ninguém. ‘Viver sozinha’ é diferente de ‘morar sozinha’.

― Como uma pessoa com medo iria se preocupar em regar uma planta?

― Talvez seja a forma dela se livrar do medo.

Dodô ficou pensativa. Osvaldo finalizou.

― Os poetas usam a palavra carregada de significação, capaz de provocar, modificar, iluminar a realidade do mundo. ― Em seguida mudou de assunto:

― Nós temos o demônio pornográfico, né? ‘O demônio anda desgovernado por nossa boa terra, triste realidade, mas o que esperar de um presidente que falou 34 (trinta e quatro) palavrões numa reunião ministerial. E agrediu a imprensa mais de 200 (duzentas) vezes por não aceitar qualquer tipo de crítica.’ Você viu a última, quando perguntado sobre o dinheiro recebido pela esposa? Uma pergunta que esperamos resposta. ‘A palavra aqui revela pobreza de vocabulário, cultura rasteira e falta de argumento. É isto, mas não deveria ser.’

― Valdo, a coisa está feia. Como o caso da garotinha de dez anos, que decepção, instituições que deveriam protegê-la, olha o que fizeram. Quer dizer, o ministério dos direitos humanos, o hospital público, uma tal professora e até um tal padre usaram palavras sobre a menininha como se comessem casquinha de sorvete. Mulher, criança, não são mercadorias. O que esse governo pensa? Nós estamos cansadas de ser usadas como bode expiatório para a fraqueza de homens e até mulheres desse tipo.

― Quantas crianças, meninas e meninos violentados todos os dias neste país. Que família tradicional é essa que permite tais tratamentos e não luta por políticas públicas de proteção a elas? ― Osvaldo complementou.

― É isto, como você disse, mas não deveria ser.

Os dois amigos desconsolados com a miséria do mundo, da qual os poetas bem conhecem, emudeceram-se, e pensativos ficaram com palavras engasgadas. Osvaldo com espírito inconstante e paz inquieta deu voz:

― Encontraremos o caminho e a hora não tarda.

 

Osvaldo se envolveu na névoa da lembrança e se assustou com Dodô perguntando:

― O que diria para o meu amigo escritor, sobre convivência no casamento? Ele acha possível o casal não ter mais afinidades físicas, e ainda existir o amor espiritual.

― Pensei em mim também. ― Osvaldo respondeu. ― Por que as mulheres se cansam de fazer sexo e os homens não?

― Acho que as mulheres assumem os gostos dos homens e topam fazer sexo quando eles querem e como gostam. Mas não vejo a contrapartida do lado deles ― que são a atenção carinhosa, a expressão do afeto. Parecem que só pensam “naquilo”. Esquecem que para ter o que querem, devem fazer um esforço e dar à mulher o que ela sente falta, que é carinho, atenção, afeto. A gente se esforça para agradar o companheiro, por que ele não pode se esforçar para agradar a gente? Por que o homem não enxerga que tem parcela importante para a igualdade de desejos? Assim ambos ficariam satisfeitos. O homem no estilo de pouco diálogo, dificuldade de se abrir, de expressar sensibilidade, fica preso ao seu único interesse egoísta, sexo como instinto apenas. Quais são suas conjecturas?

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