quarta-feira, 31 de março de 2021

aos que têm sede de viver (CENA 46)

 

31/03/2021

― Sinceramente, Bia, que catástrofe esse vinte de fevereiro com quase 250 mil mortes. O que será que vem? Dormindo a gente penetra numa fundura de dor. Essa noite acordei em sobressalto, imagina que...

 

Poeira ao vento. Quando se quer qualquer coisa tem de procurar? Pois que ela procurava na aroeira, a do canto do quintal. Ouvira falar das proezas da quitanda, além de pimenta rosa o tronco é tiro e queda pras doenças do estômago, muitas e até do vulgo estômago virado, de até cachorro tinha. Nisso foi inventar de catar casca do tronco pra fazer chá e destemida não ouviu o que a avó tinha contado muito tempo de trás no quintal, no tempo de sua meninice, de em certas noites, quem visse, rezava muita novena e novena sem fio de parada pra modo de levar pra longe as mazelas. Porque a gente que olhasse ficava abobada e não emitia sombra de palavra, nem obrigada. Isso é coisa de vó, solene no contar da prosa. 

Ela não se abestalhava com poeira pouca. A vida aí inteira para se caminhar pra frente. Reza boa arreda pé do medo.  Era de noite e não sabia se de certa noite. Foi toda sorriso, desceu a escada pé ante pé, sem se esgueirar, cheia de hábil amor por si. Nada há de me avexar que sô muito é mulher macho, mesmo sendo fêmea, cabra arretada e com umas rezas, zelo de fé e crédito na glória divina, eu sem espanto me garanto. E como silêncio ia quieto, imaginava que não se sabe o que a vida está dizendo, mas quando se levanta e se põe a caminhar, sabe que não está só. 

Ela pegou o vazio e preencheu com música. Laranja madura na beira da estrada. Tá bichada. A própria voz escutada. Mas diziam que aquilo assombrava até cabra macho e que deixava à mostra o coração, o peito abrisse e lhe visse as entranhas em fel que tanto amarga. Certo que haveria de achar e reconhecer a arvinha mesmo naquele breu. Às vezes a escuridão serve pra alumiar e curar nossas cegueiras e pode colocar os demônios para fora enquanto é tempo. 

Quando de cara no tronco que procurava, ela viu surgir de trás um meio rosto. O meio rosto trazia meia face de palhaço de alegria de circo, enganava mas num era. Era cara de patetice feito laranja bichada e sorrira abobalhado oferecendo como dádiva a palurdice pra patriota ouvir quando não tem miolo nem senso, nem se liga duas ideias, na verdade bufonea e atrofia o intelecto. Era esse o tipo e quando olhasse se transformasse em um. Puro espelho. Ela, por demais curiosa, fechava a mente e a meia fronte desapareceu ao seu cantar o credo, reza altaneira. 

Visualizou do outro lado do tronco e quando meia face de demônio se atreveu mostrar satânicas unhas e dentes e abriu a bocarra tentando engoli-la numa gosma verde oliva, ela disse, sai monstro, eu digo não. Eu me vou que esperar não é saber. Escutou a voz vinda dos tempos. É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. Rezou padre nosso, ave Maria e pernas para que te quero, não aceitava ser mentecapta e na carreira a lua alumiou e adentrou em casa sem voz na goela, sã e salva.

 

― Ruza, você padeceu durante o sono. A realidade açoita a gente e de noite arde. Sonhei uma noite dessas um troço sem pé nem cabeça que vou te contar. Não é só você que anda fustigada durante a noite...

 

O tormento atravessava. As pessoas atingidas estavam como se não se conhecessem mais. Os ‘normais’ que na verdade sempre foram estranhos ficaram ainda mais estranhos. Alguns poucos desses estranhos mais inquietos e indecisos, alguns outros se moldaram à aparência de soldados desalentados com a cabeça ensanguentada em vermelho vinho. Dispostos lutar por nada ou coisa nenhuma que valesse e destruir a quem tropeçasse ou discordasse.

Dentro de casa as gentes se achavam seguras. Não antenaram para ameaça. Bem ao meio do terreiro, sentada na praça, em cadeira alta, sua alteza ‘M exigia milhões, milhos gigantes com bastante grão que reluzia ouro, prata, para colocar nos balcões junto com as laranjas lima. Sua alteza enchia a bolsa e os bolsos. Ao seu comando o bobo da corte pulava, corria, fazia e acontecia. O olhar global de soslaio se remexia com o cristalino do olho opaco e vidrado também queria milhão.

            Do outro lado do terreiro mortos andavam mais vivos do que os mortos-vivos estranhos sem reação nenhuma. A área plana empapuçada de caminhantes em andrajos no fantasmagórico trajeto. Cheiro e morticínio. Havia muitos mortos-vivos sem rosto e de barriga vazia, mas esses ninguém via.

   A chegada de bacurau fez a tormenta arrefecer e a ave em seu voo precipitou o cair de chuva estrelando flores-de-esperança, flores-de-beleza aqui acolá e mais tantas flores em pétalas azuis, brancas, rosas, multicores espalharam-se no chão antes árido. O pássaro vivera o pânico e acenava voo com intuito de espalhar o mínimo, nada além do mínimo néctar e faria lima espremer para distribuição aos que sede têm de viver.

 

― Bia, seu sonho é mais louco que o meu. Quando é que vem sonho com paisagem tranquila aonde se possa respirar à sombra de árvore, ouvir o passarinhar, sentir o crec crec de folhas e descansar dessa longa jornada?

― Depois que Josué me contou o pesadelo dele com uma ave, acho que fiquei impressionada. Existe pedras no caminho, Ruza, muitas.

As mulheres se despediram. Bia abriu o portão e ainda acenou à Rosária que falou:

― Vê se lembra sonho ameno. ― E deu um riso enquanto caminhava. ― A gente se vê no próximo sábado então.

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