domingo, 21 de março de 2021

o pobre reflete dores e aflições de Maria e José (CENA 45)

 

21/03/2021

        Dona Cotinha saiu da janela e se encaminhou até à porta. Recebeu as mulheres à distância protetiva, pois sem máscara.

       Dona Cotinha vivia sozinha antes da pandemia dar seu arregaçado riso destruidor e a filha viera viver com ela após perder emprego e não ter como pagar aluguel. Nem sei dizer pra vocês, meninas como ando me sentindo. Às vezes me pego pensando qual é o objetivo viver enclausurada, sem convivência com vizinhos e amigos, sem nossas folias da comunidade, ah! como faz falta. Tem hora que sinto uma lentidão no passear do relógio, o corpo nem querendo obedecer e fazer o que tem de ser feito em casa, parece que ando anestesiada e caminhando que nem autômato para lá e cá. Que vida essa que ‘tamo’ vivendo, hein, é muito louco tudo que a gente presencia. 

       Nosso povo com tanta dificuldade de viver e só se escuta nas rádios e tevês que os ricos tão cada dia ainda mais ricos, pra vocês verem, meninas. Por que eles não têm solidariedade por nós?

      Eu fico me perguntando. Pra que serve tanto dinheiro se cada vez nem pobre, nem rico tem acesso a lugar nenhum por causa das quarentenas que vão e vem, pra quê? Para onde a gente tá caminhando com tanto retrocesso em nossas vidas?

     As forças de polícia também vêm pra periferia e matam os nossos tanto quanto o covid e desrespeitam ordens sem ninguém além de nós reclamar. Tá difícil.

       Cheguei na velhice achando que poderia descansar da lida exaustiva de criar os filhos, agora vejo meus filhos dependendo de ajuda miserável desse programa de governo por estarem desempregados. Minha filha mais nova, na flor da idade não encontra trabalho de jeito nenhum, e olha que ela teve estudos graças aos programas do governo de antes de 2016. Agora esses terríveis que vieram depois só querem destruir tudo o que nos deu chance de diminuir um pouco a dor da pobreza.

― Concordo com’a senhora, as coisas voltaram a ser muito difíceis pra nós da periferia. Talvez quando essa dificuldade chegar na classe média, ela se levante e vá pra rua fazer o que a gente sempre fez e que ela usufrui quando a gente consegue. Não vou arredar pé daqui mais não, cansei, como a senhora diz que está cansada. Essa turma da classe média se juntou aos ricos e à mídia para destruir nosso país, agora eles resolvam o diabo que plantaram.

Rosária se afastou da conversa enquanto Bia discutia os problemas diários. Parecia enxugar os olhos, teve impressão Bia que seguiu seu distanciamento até o portão.

Após assistência a Dona Cotinha, Bia e Rosária foram pelo estreito caminho até a próxima casinha.

― Ruza, que que houve? algum problema? posso te ajudar?

― Enquanto você conversava com Dona Cotinha, fiquei pensando no prefixo ‘inha’ do nome dela. Afastei para não interromper a conversa.

― Dona Cotinha é conhecida. Vizinha de minha casa da infância. Nossos pais são próximos e quando mudou de lá, os pais de Josué foram morar na casa. Ela é como parente. Aliás, nosso povoado é muito unido e graças a isso temos conseguido conviver com as dificuldades atuais. Que te fez associar o ‘inha’ de Dona Cotinha?

― Lembrei do nome que costumavam dar à minha mãe. ― Rosária então foi contando a história.

 

Casebre em polvorosa. Afinal chegara o Natal. Todos esperávamos com euforia a nossa mãe laboriosa dar jeitinho que tivéssemos dias felizes. A mãe se esforçava um bocado a mais, lavava roupas ali, faxinava dacolá e no dia do bom menino, lá estava a esperada surpresa das crianças, que sapecas corriam pra rua a mostrar o que o bom velhinho escolhera. No fundo sabíamos vinda de nosso pai e nossa mãe.

Não importava o chão pobre, ali o amor era ordem natural vinda de Dona Santa e do sorriso prestativo do Seu Jair (nem tudo é perfeito!). Os cinco filhos pequeninos, saltando idade ano a ano a partir dos dois em escadinha. Dona Santa. Nome que lhe puseram, pois do tempo de auxiliar de enfermagem trouxera o manejo na aplicação de injeção. Quando os vizinhos necessitavam lá estava ela com a caixinha de metal e seringa esterilizada de casa em casa, onde lhe acenassem. O nome veio daí, do prazer em servir a comunidade em redor. Dona Santa ou Santinha não tem preço, diziam. Era gratuidade no rosto amigo, sempre disposta, sempre risonha, não riso escancarado e vulgar, mas a risada dos bons, dos afetuosos, dos coirmãos. Tratava a todos com o respeito que todos mereciam.

Até mesmo Seu Manoel, de quem era inquilina, tratava Dona Santa com jeito especial. Seu Manoel e seu filho Noel residentes na chácara em cerca aos barracos que alugava, chamava a molecada para folia, correria, brincadeiras e no final, amontoada nas mangueiras e goiabeiras, ou catando pitangas e jabuticabas saía lambuzada, e o sotaque do português se expressava ‘ora, ora, pois, pois’.

            A gente dá muito valor a mãe da gente. Não era diferente lá em casa, onde a mulher do lar comandava hora do banho fazendo o possível na economia da preciosa água. Arrumava a gente como princesa e príncipe daquele reino. Ali a gente brincava até ela designar hora de dormir.

            Em nossa casa sempre havia festa. A família reunida entre vizinhos que da família se tornaram era motivo de festa. A convivência e as palavras expressão de amizade. Lugar de proximidade e escuta, minorando o suor do dia a dia do povo trabalhador. Era ali guarita hospitaleira.

E a gente se alegrava ver a mãe dar risadas, o vibrante corpo exalar prazer com’a vida construída ao esforço. A gente via, às vezes, ela ao canto em silêncio. A solidão está em todas as pessoas. A solidão estava em minha mãe. Dona Santa que viera de Goiás Velho. Vai ver saudade do Rio Tocantins, de proezas de menina que ficaram lá trás quando o pai permitia brincadeira, do momento que de cima da árvore o corpo flexível voava e aos gritos de liberdade mergulhava no rio. Saudade que mesmo gente crescida não esquece.

Quando penso em natal penso em minha mãe. Seus natais eram tão diferenciados, simples e ousados e todos ficaram em minha memória. Dona Santa vive. Nossa mãe vive.

 

― Nossa, que história, Ruza. Legal ter mãe com nome de santinha. Você contando a gente vê a aparente e santa pobreza, que nem a da Sagrada Família. O povo pobre reflete as dores e aflições de Maria e José nos esforços em proteger ao filho de Cristo. Então hoje que vivemos tanta tragédia com a covid, é tão visível a miséria em redor, né! Por que quem é bem aquinhoado não solidariza com nossa dor, Ruza?

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