ACTUM SANCTUM I
11/03/2019
Encontrou
a filha no corredor superior. Antes de descer a escadaria comentou:
―
Cheguei à conclusão que estou em processo de Alzheimer.
―
Por quê?
―
Tenho esquecido as coisas com muita frequência, coisas mínimas que começo a
fazer, me distraio com outras e quando me lembro, é somente muito depois. ― E
continuou, ― Ouvi falar que tem algumas coisas que os doentes vão deixando de
fazer, por exemplo, fazer amor, ter relação sexual. Não sinto falta.
―
Ah, mas isso eu concordo. Quando tiver essa idade acho que também não terei
vontade. A pessoa deve ficar cansada.
―
O pior mesmo é perder a autonomia, isso é triste, saber que vocês decidirão
sobre a minha vida. ― Disse a mãe, enquanto descia os degraus e parou na metade
ao ouvir a filha:
―
Procure fazer coisas diferentes.
―
Eu vivo procurando e fazendo. Idiomas, ... ― foi relatando as atividades
extras. ― Tem jeito não, o que tiver de ser, será!
Chegou
à cozinha. Lembrou-se de que tinha colocado as embalagens de carne sobre a pia,
para separar em pequenas quantidades e guardar no freezer, isso há uma hora. A
carne já não estava lá, sobre a pia. Abriu o freezer e as carnes separadas e acondicionadas,
como ela sempre fizera. Dessa vez não foi ela. Pensou: “Que bom, fizeram o
trabalho, aprenderam.”
Preparou
algo rápido para seu jantar. De tempos para cá, não se preocupava em arrumar
refeição para mais ninguém. Todos crescidos e o marido preparava a própria,
apenas salada leve. Ela agora entendia o significado de conversa recente com
ele:
―
Sabe, estranho o que está acontecendo comigo. Eu não procuro vir para a
cozinha e fazer o almoço, não me preocupo se tem alguém para almoçar, ou se não
tem. Preparo somente a hora que me dá vontade e quem não estiver satisfeito,
que faça a própria refeição.
Sentou-se
à mesa, foi rasgando devagar o pão no molho branco com carne. E no pensamento,
analisava os lapsos recentes: “estava desmazelada consigo mesma, a casa
desleixada, já não via tanta limpeza e ela não via necessidade de limpar. Não
tinha o interesse, que antes julgava até exagerado, de saber o dia a dia de
cada um, de se reunir com eles à mesa, de participar das conversas familiares,
de estar atenta às solicitações. Apenas permanecia em suas atividades.”
Atividades
que estavam mais espaçadas, adiadas, quantas leituras por ler, quantos livros
por escrever e começados, a nova história interessante e necessitando digitação
para não perder o fio da meada. Nada. Nada era importante. Era como se o tempo,
o tempo da fantasia, fosse ganhando espaço, e nem tinha vontade de ir para a
cama. Queria ficar ali, na varanda, deitada na rede, sem objetivo nenhum, olhando
a chuva e ouvindo os barulhos da noite.
Dera
também para fechar a porta do quarto e por lá ficar. O marido lhe perguntou:
―
Por que agora você sempre fecha a porta?
―
O barulho caseiro me incomoda. Quando fecho a porta, sinto que se abre um mundo
novo, sem barulho, sem confusão, sem preocupação, tudo ficou do lado de fora da
porta. Assim, espero a inspiração. Eu entro aqui, esqueço obrigações, marido,
filhos, cachorros, todo o tempo para uso exclusivo. Estou achando proveitosa a
experiência e dando razão dos meninos gostarem das portas fechadas.
Terminou de jantar. Verificou o que faria para o almoço do dia seguinte. Fechou a porta
do quarto. Queria escrever. Sentou e esperou.
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