domingo, 5 de julho de 2020

afinidades (CENA 19)

            29 06 2020
― Luiza, pode ficar um pouco aqui em casa quando vier com compras? ― Osvaldo enviou mensagem e em seguida ela respondeu:
― Valdo, esqueceu do corona? É deixar as compras e sair rápido. Não posso nem entrar, não convém.
― Faz exceção, está bem? Traz roupa extra e logo que chegar vai pro banho e mesmo assim a gente mantém distância, prometo. Tenho surpresa. Eu não mordo, não, fica tranquila. ― Osvaldo digitou risada.
― Não prometo nada. A gente não pode vacilar nos cuidados. Amanhã, depois das cinco chego na sua casa. Abraço. ― Luiza saiu do aplicativo.

Luiza tocou campainha. Osvaldo abriu a porta e logo deu passos para trás, dizendo:
― O álcool e papel toalha estão próximos à porta. Passe nas mãos e nas sacolas, por favor. Tem um chinelo pra você, largue o calçado do lado de fora, e borrife um pouco de álcool nele, pra garantir. Trouxe roupa, né? Não fale ainda, vai direto pro banheiro sem tocar em nada. Lá tem um saco pra você colocar roupa suja, viu? ― Luiza meneou a cabeça.
Enquanto isso, Osvaldo limpou as mercadorias. Preparou o ambiente da sala e com respiração compassada, viu quando Luiza saiu do banho enxugando o cabelo, a pele morena de origem indígena sobressaía na roupa clara. Ela colocou a toalha no saco e lacrou, passou álcool no volume, nas mãos e com riso amistoso, sentou onde ele indicava. À mesa, água, copo, prato, talheres, guardanapo, tudo simples e organizado. Após tomar o líquido, colocou máscara limpa.
― Valdo, que atrevimento nosso. Parecemos dois adolescentes irresponsáveis. Você é louco! Eu sou louca! ― Os dois mascarados riram.
― Luiza, não creio. Tomamos todas precauções, a gente escuta coisas piores acontecendo ao redor. E é tão bom ter alguém pra conversar, mesmo que a essa distância. Conta as novidades.
― Tem razão quando diz que acontecem coisas absurdas. Tenho presenciado cada atitude que, se o vírus estivesse por perto, sei não, só Deus pra proteger. ― E começou a contar enquanto Osvaldo ia e voltava à cozinha:

Luiza foi com a amiga até a imobiliária. Com a pandemia, a moça não teve opção e rescindiu contrato do pequeno apartamento, pois sem dinheiro e emprego precário cancelado, voltou morar com a mãe. As duas usaram álcool nas mãos conforme exigiu a moça da recepção. Notaram que a recepcionista usava a máscara abaixo do nariz e enquanto buscava dados no computador, tocava mão na face e máscara o tempo todo. As amigas se entreolharam e logo foram avisadas que a chamada seria por nome. A amiga de Luiza, ansiosa, não permitiu que ela tocasse em nada, nem sentasse, e cautelosas conversavam o restritamente necessário. Ficaram observando. O local preparado para atendimento aos clientes com faixas pelo chão delimitando distância preventiva. Elas viam pessoas desobedecendo o limite e ficando cara a cara com atendente, ou conversando animadamente com máscaras finas e mal colocadas. Em seguida, chegou um casal, a mulher carregando bebê, de máscara abaixo do nariz, o marido e o bebê sem nenhuma proteção. A mulher sentou numa cadeira sem pedir limpeza, automaticamente. Que loucura desses dois, trazer bebê num período tão crítico. Não devem ter com quem deixar, Luiza comentou. Quando chamada, Luiza acompanhou amiga e sequer sentaram. Respeitaram a faixa e logo perguntaram à atendente se era possível a finalização do contrato por email, quanto mais rápido a gente sair, melhor. A moça disse que sim. Estranharam não ter álcool gel à mesa e perguntaram. A atendente comentou, os funcionários correm mais riscos que cliente, pois ficamos aqui dia inteiro, com a mesma máscara, e somente nos primeiros dias tinha álcool gel às mesas, agora somente na recepção. As amigas visualizaram à frente uma senhora idosa portando máscara de qualidade, a todo momento arrumava e, às vezes, puxava a máscara para boa respirada. Saíram do local comentando, como está perigoso para quem precisa trabalhar.
Logo em seguida se dirigiram ao cartório para reconhecimento de firma, mesmo na pandemia, um serviço essencial. Ao chegar, álcool gel nas mãos. Convidadas a sentar, solicitaram higienização das cadeiras e ficaram antenadas. Chegou um senhor assobiando até à entrada. Colocou máscara quando à porta. O braço direito imobilizado por tipoia dificultou a limpeza das mãos. A moça mostrou a cadeira para ele, que se sentou e colocou o envelope numa mesa próxima que nem sequer sabia se limpa. Passou o álcool nas mãos e pegou o objeto. Em atendimento no primeiro guichê, outro senhor de idade conversava desde que elas chegaram, e por mais de quinze minutos, com máscara comum, tagarelava. A atendente escutava. Noutro guichê a responsável atendia mulher vistosa com mais de sessenta anos, e em seguida disse alto para a colega, falei pra ela que é a terceira pessoa hoje a pedir pra casar de novo. E a senhora respondeu, é a terceira vez que tento. Olha o preço aí pra mim, que se for caro vou desistir e ficar sem casar mesmo. A moça do primeiro guichê, onde agora estavam Luiza e a amiga, respondeu, isso é barato. O importante é tentar, não importa quanto. O que vale é buscar felicidade. Na saída Luiza comentou com a amiga, aquelas trabalhadoras estão com máscara inadequada, a área entre nariz e rosto a descoberto, se aparecer alguém com corona são presas fáceis.

― Então é assim, Valdo. A pessoa necessita trabalhar e corre alto risco enquanto o patrão pensa apenas em lucrar, não importa às custas de quem.
― Que animação daquela sessentona, hein, Luiza! ― Parou de falar e fez silêncio ao pegar e colocar vasilha com canjica bem quentinha à mesa. Distanciou-se e disse, ― a canela está aí, se quiser mais. Vamos comemorar!

― Eu nem penso nisso mais. Casamento já era pra mim. ― Luiza, que de pensativa após a frase, deu risada ao ver a fumaça perfumando o ambiente, ― que surpresa estupenda, como adivinhou minha paixão por festa junina?

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