29 06 2020
―
Luiza, pode ficar um pouco aqui em casa quando vier com compras? ― Osvaldo
enviou mensagem e em seguida ela respondeu:
―
Valdo, esqueceu do corona? É deixar as compras e sair rápido. Não posso nem
entrar, não convém.
―
Faz exceção, está bem? Traz roupa extra e logo que chegar vai pro banho e mesmo
assim a gente mantém distância, prometo. Tenho surpresa. Eu não mordo, não, fica
tranquila. ― Osvaldo digitou risada.
―
Não prometo nada. A gente não pode vacilar nos cuidados. Amanhã, depois das
cinco chego na sua casa. Abraço. ― Luiza saiu do aplicativo.
Luiza
tocou campainha. Osvaldo abriu a porta e logo deu passos para trás, dizendo:
―
O álcool e papel toalha estão próximos à porta. Passe nas mãos e nas sacolas,
por favor. Tem um chinelo pra você, largue o calçado do lado de fora, e borrife
um pouco de álcool nele, pra garantir. Trouxe roupa, né? Não fale ainda,
vai direto pro banheiro sem tocar em nada. Lá tem um saco pra você colocar roupa
suja, viu? ― Luiza meneou a cabeça.
Enquanto
isso, Osvaldo limpou as mercadorias. Preparou o ambiente da sala e com respiração
compassada, viu quando Luiza saiu do banho enxugando o cabelo, a pele morena de
origem indígena sobressaía na roupa clara. Ela colocou a toalha no saco e
lacrou, passou álcool no volume, nas mãos e com riso amistoso, sentou onde ele indicava.
À mesa, água, copo, prato, talheres, guardanapo, tudo simples e organizado.
Após tomar o líquido, colocou máscara limpa.
―
Valdo, que atrevimento nosso. Parecemos dois adolescentes irresponsáveis. Você
é louco! Eu sou louca! ― Os dois mascarados riram.
―
Luiza, não creio. Tomamos todas precauções, a gente escuta coisas piores
acontecendo ao redor. E é tão bom ter alguém pra conversar, mesmo que a essa
distância. Conta as novidades.
―
Tem razão quando diz que acontecem coisas absurdas. Tenho presenciado cada
atitude que, se o vírus estivesse por perto, sei não, só Deus pra proteger. ― E
começou a contar enquanto Osvaldo ia e voltava à cozinha:
Luiza
foi com a amiga até a imobiliária. Com a pandemia, a moça não teve opção e rescindiu
contrato do pequeno apartamento, pois sem dinheiro e emprego precário cancelado, voltou morar com a mãe. As duas usaram álcool nas mãos conforme exigiu a moça
da recepção. Notaram que a recepcionista usava a máscara abaixo do nariz e enquanto
buscava dados no computador, tocava mão na face e máscara o tempo todo. As
amigas se entreolharam e logo foram avisadas que a chamada seria por nome. A
amiga de Luiza, ansiosa, não permitiu que ela tocasse em nada, nem sentasse, e cautelosas
conversavam o restritamente necessário. Ficaram observando. O local preparado
para atendimento aos clientes com faixas pelo chão delimitando distância
preventiva. Elas viam pessoas desobedecendo o limite e ficando cara a cara com
atendente, ou conversando animadamente com máscaras finas e mal colocadas. Em
seguida, chegou um casal, a mulher carregando bebê, de máscara abaixo do nariz, o marido e o bebê sem nenhuma proteção. A mulher sentou numa cadeira sem pedir
limpeza, automaticamente. Que loucura desses dois, trazer bebê num período tão
crítico. Não devem ter com quem deixar, Luiza comentou. Quando chamada, Luiza
acompanhou amiga e sequer sentaram. Respeitaram a faixa e logo perguntaram à
atendente se era possível a finalização do contrato por email, quanto mais
rápido a gente sair, melhor. A moça disse que sim. Estranharam não ter álcool
gel à mesa e perguntaram. A atendente comentou, os funcionários correm mais
riscos que cliente, pois ficamos aqui dia inteiro, com a mesma máscara, e somente
nos primeiros dias tinha álcool gel às mesas, agora somente na recepção. As
amigas visualizaram à frente uma senhora idosa portando máscara de qualidade, a
todo momento arrumava e, às vezes, puxava a máscara para boa respirada. Saíram
do local comentando, como está perigoso para quem precisa trabalhar.
Logo
em seguida se dirigiram ao cartório para reconhecimento de firma, mesmo na
pandemia, um serviço essencial. Ao chegar, álcool gel nas mãos. Convidadas a
sentar, solicitaram higienização das cadeiras e ficaram antenadas. Chegou um
senhor assobiando até à entrada. Colocou máscara quando à porta. O braço
direito imobilizado por tipoia dificultou a limpeza das mãos. A moça mostrou a
cadeira para ele, que se sentou e colocou o envelope numa mesa próxima que nem sequer
sabia se limpa. Passou o álcool nas mãos e pegou o objeto. Em atendimento
no primeiro guichê, outro senhor de idade conversava desde que elas chegaram, e
por mais de quinze minutos, com máscara comum, tagarelava. A atendente
escutava. Noutro guichê a responsável atendia mulher vistosa com mais de
sessenta anos, e em seguida disse alto para a colega, falei pra ela que é a
terceira pessoa hoje a pedir pra casar de novo. E a senhora respondeu, é a
terceira vez que tento. Olha o preço aí pra mim, que se for caro vou desistir e
ficar sem casar mesmo. A moça do primeiro guichê, onde agora estavam Luiza e a
amiga, respondeu, isso é barato. O importante é tentar, não importa quanto. O
que vale é buscar felicidade. Na saída Luiza comentou com a amiga, aquelas
trabalhadoras estão com máscara inadequada, a área entre nariz e rosto a descoberto,
se aparecer alguém com corona são presas fáceis.
―
Então é assim, Valdo. A pessoa necessita trabalhar e corre alto risco enquanto o
patrão pensa apenas em lucrar, não importa às custas de quem.
―
Que animação daquela sessentona, hein, Luiza! ― Parou de falar e fez silêncio ao
pegar e colocar vasilha com canjica bem quentinha à mesa. Distanciou-se e disse,
― a canela está aí, se quiser mais. Vamos comemorar!
―
Eu nem penso nisso mais. Casamento já era pra mim. ― Luiza, que de pensativa
após a frase, deu risada ao ver a fumaça perfumando o ambiente, ― que surpresa
estupenda, como adivinhou minha paixão por festa junina?
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