terça-feira, 31 de dezembro de 2019

CONFRATERNIZAÇÃO E AMIZADE (CENA 9)

26/12/2019
               ― Ei Ritinha, podemos contar com você no amigo oculto de natal e na confraternização com a turma da esquina?
             ― Não vou perder por nada desse mundo, Valdo.
          Então aproveita e escolhe seu amigo oculto. Lembrancinha simples porque as coisas andam apertadas para todos nós. Valor simbólico, o importante é a nossa reunião. ― Balançou o pacote com os nomes e Ritinha fechou os olhos enquanto escolhia.

            ― Vai chamar a Luiza e a Dodô?

          ― Daqui vou na copiadora e na loja ver com elas. Também convidamos a mãe e o Bilico e o pessoal da farmácia. O encontro será animado, ao ar livre, no quarteirão fechado onde a gente joga xadrez. Vamos enfeitar tudo, precisamos de ajudante, hein!

            ― Posso contribuir depois do trabalho.

            Osvaldo encabeçou a festa, definindo os comes e bebes que cada um ficara incumbido de levar. Sem bebida alcoólica. No dia marcado, depois do expediente normal, a farra foi geral com as marchinhas típicas salvas no pendrive e som emprestado.

            A velhinha olhando de cima aquela pequena multidão entre sorrisos, empolgação, pequenos grupos e tanta conversa, ouvia apenas uma zoeira. Ela sempre acompanhava o encontro da turma de xadrez lá de cima, presa à solidão dos que moram e vivem sem ninguém. Vaidosa, antes de chegar à janela, se aprontou, passou maquiagem na face enrugada. Gostava do batom bem vermelho, o perfume forte e a roupinha clássica dos bons anos.

            Osvaldo se desdobrava para tudo sair nos conformes, nem parecia ofegante e até esquecia de acender cigarro. Passeava entre os grupinhos, empolgado com o encontro “muito bom comer o doce junto com os amigos enquanto continuamos a lutar o amargo dos tempos” pensou. Passou rente a Bilico e mexeu em seus cabelos negros, enquanto a mãe oferecia o de comer e beber, na fartura daquele dia. A turma esquecia por alguns minutos os diversos problemas e irmanados no afeto e boa vontade dos que são próximos. Todos com algum problema por solucionar, diversas perguntas sem respostas, crises batendo à porta, mas ali juntos, fortalecidos no elo da convivência. De repente, ao iniciar conversa com o grupinho da farmácia, Osvaldo enxergou a senhorinha à janela. A mulher assustou-se e puxou a cortina. Osvaldo imaginou que ele pelo menos podia contar com a família emprestada, a turma da esquina, mas aquela mulher nunca viu em companhia de alguém. Ela retornou à janela e o acenar do homem chamando-a para se juntar a eles. Agradeceu com a vozinha fraca o convite e continuou a contemplar a algazarra de adultos, parecendo os tempos de criança.

            ― Está na hora do sorteio do amigo oculto, Valdo. Senão fica tarde e perco meu ônibus, e outro somente duas horas depois, vamos logo ― disse um dos amigos aposentados. Osvaldo volveu o olhar e com a mão no ombro amigo, deu uma olhadela rápida para os próprios pés e não os enxergou.

          ― Quer ser o primeiro? ― Osvaldo falou e o amigo deu de ombros concordando. Posicionados no círculo entre três mesinhas de jogos, iniciou a tradicional adivinhação de quem era o amigo após dicas “O meu amigo oculto é assim, assado, desse tipo, e tal” e decorreu até o último receber a lembrancinha em meio às gostosas gargalhadas de dizeres irônicos.

            No grupo de algumas mulheres os assuntos eram diversos, e o que chamou atenção foi o comentário de Dodô:

            ― O senhor ao lado direito de Osvaldo está me enchendo a paciência. Quer porque quer sair comigo e vem todo serelepe para meu lado, pegando em meu braço, despistando e colocando a mão na minha cintura. Não sei mais o que dizer para ele sem ofender. Os homens parecem não ter desconfiômetro, vem para cima da gente com tudo, sem respeitar os limites da educação. Não gosto desses tipos que não escutam, não aceitam ser desprezados. Além disso é velho demais.

            Elas observavam um dos grupos de aposentados conversar alterado sobre time que foi para a primeira divisão e qual caiu para segundona. De brincadeirinhas um com o outro, como se moleques fossem.

            ― Seu requebrado seduz, Dodô. Quem me dera essa ginga baiana na minha praia. Claro, com homem que eu escolho. ― Falou Luiza. ― Também não suporto assédio de forma alguma, até o gerente alertei para o cuidado no trato com funcionários e ele está tomando jeito. Que isso, hein gente, que trabalhão ser mulher, bicho homem parece que só vê bunda.

            As mulheres em risadas quando Osvaldo chegou para saber se a festa estava legal. Ao que responderam em coro “muito boa e divertida” e trocaram olhares e risinhos que ele não compreendeu.

            ― Meninas, o que não querem me contar?

           ― Valdo, tudo tranquilo. É papo nosso, preocupa não, viu! ― Soltou Ritinha, toda sorrisos. ― Está querendo auxílio?

            ― Nada, somente andando e conversando com todo mundo. Olha ali aquele rapaz que às vezes almoço com ele, trabalha perto daqui, disse que não sabia se teria tempo, pois a festinha na repartição foi hoje também. Vou lá bater um papo com ele, depois volto, divirtam-se!

            ― Rapaz, que bom apareceu ao nosso encontro.

           ― A festa da repartição está no finalzinho, e depois que o povo bebe umas e outras, as coisas passam do limite e então lembrei do seu encontro, Osvaldo. Não vi você no almoço por esses dias, mudou de restaurante? ― O rapaz em questão, todo tradicional, jeito tímido, mas ao mesmo tempo habilidoso nas piadas, segundo ele próprio, ainda seria comediante de stand up.

            Geração diferente e se davam bem. O rapaz apreciava papo interessante e entre os jovens de sua idade o papo versava em tecnologia e nada sobre existência, sobre objetivo de vida, sobre o outro e a convivência social. Percebia que procurava amizade entre adultos.

          ― Ano que vem participa do nosso amigo oculto, tenho certeza que vai gostar e te apresentarei os amigos da esquina, tanto os aposentados quanto o pessoal das lojas próximas, a turma é agradável, simples e unida.

          ― Quando for almoçar você me conta como fazem. Passei para felicitar bom natal e ano novo, que nossos encontros de almoço continuem e a gente troque mais ideias, viu amigo! ― O jovem deu forte abraço em Osvaldo, que ficou meio sem jeito. Aquele jovem não tinha vergonha de abraçar outro homem como ele tinha.

            ― Andei ocupado e nem tive pausa para almoço. Continuo almoçando lá e a gente vai se ver sim.

            O jovem se distanciou e fez que lembrasse de Taquinho com a mesma idade, o irmão carinhoso e expansivo. A nesga de tristeza envolveu seu espírito, mas um tapa nas costas o tirou de seus pensamentos e foi ver por que solicitavam sua presença.

            ― Valdo vai dizer algumas palavras antes do fim da festa, gente. Atenção! ― Falou Ritinha, gesticulando os braços.

        ― Mas, Ritinha, não preparei nada. Você é a responsável pelo encerramento, querendo fugir da raia? ― Osvaldo sorrindo. ― Bem vamos ver o que sai, não é!

         O homem andou no círculo de amigos com o jeito pesadão, mas pisando macio, enquanto calculava palavras, subiu no banco de cimento com ajuda de alguns, posicionado com visão de todos. Agradeceu a presença indispensável de cada um, de cada uma, sem o que a festa não teria brilho. Ponderou novo silêncio e

            ― Vocês trazem de mim o melhor, e nessa convivência amiga posso me apoiar. Tal como a verdadeira democracia que precisa se apoiar nos desejos e fantasias de seu povo. Enquanto estamos juntos, vocês, eu, todos deixamos de lado o descontentamento por aqueles que não respeitam compromissos firmados e adotam decisões voltadas ao interesse de poucos. ― Precisou respirar, continuou:

― Ousamos construir esse encontro utilizando a rede de tecnologia para organizar o momento festivo, e vimos quanto isso pode gerar frutos às outras áreas. Torço que nos tornemos mais ativistas durante todo o ano e cuidemos uns dos outros. Em nossas conversas constantes falamos sobre autonomia. Opinamos e verificamos como a Internet foi e está sendo usada, de modo inverso aos nossos desejos e necessidades. Parece que faço discurso político? Mas, vejam, vocês se arrancaram de casa, vieram até aqui, estão presentes, envolvidos e atentos. Esse entrosamento entre nós tem a capacidade de dar visibilidade aos nossos problemas, compartilhar o que nos aflige, nos dá potência e força para os reveses à frente ― nova respirada.

― Estamos mais fortes quando temos tais gestos. Somos sujeitos que definem uma ação em torno do projeto que nos interessa. E depois das festas de final e início de ano, quais serão os projetos? Vamos abrir espaço para possibilidades. Este é o recado, vamos fortalecer a conexão entre nossa comunidade para outras ações com a participação de todos. Nessa coreografia afinada podemos dar pontapés certeiros à construção do que queremos, do que é possível e de direito de todos. O que acham, vamos juntos?

            O grupinho ao lado de Osvaldo gritou:

           ― Osvaldo, Osvaldo! Valdo é o nosso candidato! ― A pequena multidão em palmas, inclusive a velhinha.

           ― Que isso, pessoal, não tenho ambição, mas unidos somamos, isso tenho certeza! ― Desceu do banco escorando nos ombros amigos, pediu um copo com água, pois as palavras exerceram forte emoção.


           Quando o encontro se encerrou, abraços, desejos, sorrisos e bênçãos de amizade leal transmitiam energia vindoura.

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