sábado, 16 de novembro de 2019

Arrumou a roupa (CENA 2)

            12/11/2019
   Arrumou a roupa no corpo. Primeiro dia de trabalho. “Os tempos mudam e as exigências permanecem arcaicas. O país anda tão quente, cada vez esquentando mais e tenho que usar essa roupa sufocante atrás de uma gravata” pensou. O coração batia apressado de tantas emoções.
            Havia um aviso na porta: “Novatos. Trocar de roupa e apresentar-se ao seu gestor”. Expectativa ansiedade tensão nervosismo insegurança instabilidade desconhecimento mudança ... palavras que metiam medo. Ressabiado e assustado, obedeceu as instruções. Até o momento as cobranças foram amenas, as da mãe: “Menino, desliga esse computador, já passam da meia noite”, “Não beba se vai dirigir”, “Respeita as mulheres”, “Trata todo mundo igual” ... E do pai: “Para de se preocupar com time de futebol, enquanto o jogador ganha dinheiro, você aí gastando tempo”, “Cuida da sua vida”, “Olha a turma e presta atenção nas decisões”, “Cuidado com doenças venéreas, usa camisinha” ...
            O vestiário parecia em processo de incêndio. A sirene apitava. O turno dava início e pontualmente ele chegou ao setor de trabalho. Sentiu que iria gaguejar e engoliu fundo antes do cumprimento. O chefe deu uma olhada de cima a baixo e afirmativo observou que a roupa se adequava aos moldes da organização. Com um risinho cínico lembrou de seus primeiros passos. Merda droga cacete foda-se, palavras das quais se recordou falar consigo no primeiro dia. Aquele rapaz, ao contrário, era comportado demais para o estilo juvenil de sua época, no apogeu do sexo drogas rock and roll. O gerente remexeu na cadeira, empertigando-se, e logo chamando o assistente para transmitir a rotina ao novato. O século era XXI, mas a burocracia secular.
          O assistente se aproximou. O rapaz notou o tique, um soquinho na cintura, como se estivesse arrumando a calça e piscadelas rápidas, era jovem, roupa discreta e clássica, mas os sapatos maltratados.
― O primeiro dia aqui não é muito interessante. Vou repassar os passos do trabalho e devem ser feitos na sequência de minha orientação. Qualquer dúvida me pergunta, mas uma coisa é fundamental, e você deve estar ciente: “Esqueça de trabalhar, mas não esqueça de assinar o ponto” ― disse o profissional, enquanto caminhavam e apresentava o novato aos colegas.
     ― Aqui é proibido, proibidíssimo, tocar em política. É como se tudo estivesse em harmonia do lado de fora para não interferir na paz aqui de dentro. O ar é refrigerado e a temperatura é sempre retilínea–uniforme, nenhum alto e baixo, nenhum movimento de subida ou descida. Mantenha-se discreto e se envolva apenas com o expediente. Logo ali é a saleta de café e água. Hoje em dia anda faltando até café, mas costuma ter ao menos uma vez ao dia. Existe também a lanchonete terceirizada no térreo, você deve ter passado por ela, de nome “Freud Explica” ― continuou.
        ― Vou te contar um caso pra você ficar atento. Uma profissional, daquelas bem falantes, veio tomar café junto com dois colegas do mesmo naipe. Enquanto conversavam animados, perceberam que a mulher virou o café à boca sem prestar atenção, e logo começou a mastigar. Após alguns segundos, cuspiu na pia. Uma barata massagada e nojenta! Ela soltou o verbo: “Que bosta é essa?”, enquanto os companheiros seguravam o riso. Até o café deve ser sorvido com cuidado. ― Deu uma risadinha descontraída e seguiram.

            O rapaz escutava em silêncio. Percebeu que ali não era diferente do lado de fora. Respirou acalmando-se. Lembrou que seu lado humorista, do tipo stand up, só tinha a ganhar com as experiências naquele mundo fechado.

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