sexta-feira, 6 de março de 2020

Carnaval e o reles dia a dia no país das bananas (CENA 12)

02/03/2020
― Nega, onde já se viu começar a história pelo fim, que coisa mais destrambelhada!
      ― É que a gente aqui sentada, Zildinha, nessa idade, assistindo aos desfiles das escolas, no quentinho do lar, sem enfrentar a confusão que existe para todo lado nessa época, é pra lá de confortável. Olha, a Mangueira vai desfilar, quietinha. Depois continuo.

Senhor tenha piedade
Olhai para a terra
Veja quanta maldade
...
Eu sou da Estação primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no buraco quente
Meu nome é Jesus da Gente
...
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
...
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque, de novo, cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais na escuridão
...
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão
...
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também
...”
           
― Viu, Zildinha, A Verdade nos fará livre, a Mangueira tá muito atual. Engraçado, mudo de canal, da Globo para o SBT, para a BAND, Record e os outros, e as análises estão chinfrins, sem festa e nem crítica coerente. Tanta cautela hoje em dia, há dez anos atrás não se via tanta conversa mole desses locutores na maior festa brasileira. ― A mulher maltratava o controle remoto mudando de canal, indo às diversas emissoras. ― Oh, estão mostrando a Vigário Geral, de Sampa:
“...
Tupiniquins, Tupinambás e Potiguaras
Tamoios, Caetés e Tapajaras
É Banto, é Congo, é de Angola
Somos da tribo quilombola
...
Que segue aguerrida
Mas sempre esquecida
Por quem tem poder
...
Homem de terno pregando mentira
Desperta a ira em nome da fé
...
Vigário teu protesto é Carnaval.”

            ― Veja agora, a Águia de Ouro, que trouxe o enredo O Poder do Saber – Se saber é poder... quem sabe faz a hora, não espera acontecer – Homenagem ao educador Paulo Freire, merecidamente:

Águia em suas asas vou voar
E no caminho da sabedoria
Páginas da história desvendar
...
O tempo é meu senhor
Na busca da evolução
...
Em cada traço que rabisco no papel
Vou desenhando o meu destino
No horizonte vejo um novo alvorecer
Ao mestre meu respeito e carinho
...
Seu manto reluz o poder do saber.”

            ― Quem? ― perguntou Zildinha. ― Conheço ele?
          ― Mulher, lembra quando você foi alfabetizada pelo método dele? Você aprendia rápido e era respeitada como cidadã. Agora, estão aí a dizer que empregada tá ganhando muito e não pode, que não pode viajar de avião, que aeroporto não é lugar de pobre, tem ouvido isso não, Zildinha?
            ― Ah, aquele ministro moreno, barrigudinho e calvo que falou que eu viajo pra Disneylândia e qu’eu tava na farra?
           ― O Guedes, Zildinha, da economia. Mas olha lá o desfile, depois a gente conversa mais.
           ― Nega, você paga direitinho e respeita eu, mas tem muita patroa que explora nós, viu. Tem prédio que a gente só entra pelo elevador de serviço, como se a gente fosse diferente. Tudo igualzinho, pó de terra que não vale nada daqui a pouco, oh! Meu Cristo!
          ― Mulher, assiste ao desfile. Empregada doméstica vive viajando pra fora do Brasil, quem falou não fui eu não, hein. Vou rapidinho na cozinha pegar o lanche que fiz pra gente. Presta atenção na TV.
            Nega voltou com duas bandejas. Ajeitou sanduíche e suco leve para as duas e perguntou se perdeu alguma coisa. E passaram o tempo maravilhadas com o espetáculo das fantasias, dos passos das porta-estandartes e dos mestres-salas, carros alegóricos, tanta gente exalando alegria, paixão, amor pela escola do coração. Veio o intervalo e Zildinha começou:
            ― Tô curiosa com a história, Nega, conta logo!
           ― Olha que não sou de ficar falando de política, não. Você me conhece, Zildinha, mas que é uma vergonha esse governo que o povo colocou, nossa mãe. Avisei pra todos amigos possíveis, você é testemunha, mostrei que há trinta anos ele vive praguejando bobagens e preconceitos. Esse povo é alienado, fanático, não gosta de ler, tem preguiça de se informar, e até pessoas de nível superior sem conhecimento algum de História, não é só o povão, não, acreditam em qualquer fake news que pinta na praça, igual essas que o governo anda postando em pleno Carnaval.
         ― Recebi de uma prima uma fake que mostra que os militares apoiam ele em tudo. Será verdade, Nega?
        ― Zildinha, não acredite nessas postagens de whatsapp, são vergonhosas. Tenho um tio militar e vou perguntar isso pra ele, ele é conservador, mas é pessoa ética e responsável, não acredite em tudo que vê. Veja o exemplo da Águia de Ouro, vai ler, vai estudar História. Nada de destruir e fazer descaso de livros como anda acontecendo até no palácio. Fica escutando essas mentes curtas não, Zildinha.
           ― Mas que tem muito pastor mal intencionado, ah, isso tem.
       ― Tem maus em todo lugar, e bons em muito mais lugares. Ouça o coração, ouça sua capacidade de saber o que vale. E o que vale é a vida. Olha, voltou o desfile, nem um pio, viu madame! A minha história vou contando nos intervalos. Tenha calma.
    Nega sentiu-se transportada para o meio das alas.
            Com toda energia da mocidade, ela na avenida, sambando, brincando, gastando a juventude em meio à festa. E beijava, e abraçava, completamente livre de estereótipos e da moral burguesa. A fantasia mostrando grande parte do corpo, esbanjando alegria e despreocupação. As marchinhas e as alegorias de colombinas, de pierrôs, da turma dos blocos, o Carnaval a pleno vapor:

“... Eu quero é botar meu bloco na rua
Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua
Gingar, pra dar e vender ...”

“... Eu vou pra Maracangalha, eu vou
... Se Amália não quiser ir, eu vou só,
eu vou só, sem Amália, mas eu vou ...”

“... Ta-Hi, eu fiz tudo para você gostar de mim,
Oh meu bem não faz assim comigo não,
você tem, você tem que me dar seu coração ...”

“... Eu dei, o que foi que você deu, meu bem?
...Não digo e adivinhe se é capaz ...
Você deu seu coração?
Não dei, não dei
O meu coração não tem dono,
Vive sozinho, coitadinho, no abandono ...
Eu dei ... Diga logo, diga logo, é demais
Não digo, e adivinha se é capaz ...
Guarde um pouco para mim também ...
Eu dei...”

“... Você pensa que cachaça é água
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão ...
Pode me faltar o amor
Só não quero que me falte
A danada da cachaça...”

“Ei, você aí, me dá um dinheiro aí
... Não vai dar? Não vai dar não?
Você vai ver a grande confusão
Que vou fazer, bebendo até cair,
... Me dá, me dá, me dá, oi,
Me dá um dinheiro aí...

          ― Nega! Nega! Acorda, o desfile acabou, já tá tarde. Viu que beleza o desfile da Imperatriz? Não vi quando pegou no sono e acabou que não me contou a história de seus primeiros carnavais.
          ― Sambei, paquerei tanto em tantos carnavais, que as dores dos setenta de hoje nem me incomodam. Eu soube aproveitar, agora é a vez das jovens. Ui, devo ter ficado de mau jeito no sofá. Vamos dormir que amanhã a gente vê mais. E te conto em detalhe sobre os carnavais que dancei sem parar.

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