sexta-feira, 13 de novembro de 2020

as bolhas (CENA 35)

 

            01/11/2020

Bia se preparou para visita às casas na rotina solidária. Esperou por Rosária que no horário bateu palmas no portão. Mascaradas, se cumprimentaram de longe e foram, sacola no ombro com papel, caneta, água, álcool e banana como lanche.

― Bom sair de casa sem ser para trabalho, não é, Ruza?

― Nem fala, apesar da gente não poder ficar sem trabalhar, sair e conversar um pouco é bem bom.

― A gente quase nem está se falando mais nestes tempos. Ah, sabe quem Josué e eu demos de cara na pizzaria esses dias? O filho de Dona Jovem, o tal que é jogador de futebol.

― Ah sei, aquele lá gosta de dizer, meu nome é Oswaldo, mas Oswaldo com ‘W’. ― Ruza fez gesto irônico e deu risadinha. ― Como é metido, só porque joga naquele timeco acha que é grande coisa.

― Ele estava à mesa com outro casal. Josué viu primeiro e comentou comigo, mas evitei dar trela. O sujeito é da bolha do presidente. O companheiro de mesa queria entender porque ele tinha dado voto e ainda continuava apoiando. E ele disse que nada importava, o presidente poderia destruir o país que ele iria junto até o fim, até o abismo. Fiquei assustada ao ouvir e imaginando a leva de gente que pensa como ele.

― Quando é para ajudar a mãe, some. Já peguei ele dizendo pra ela se virar, pois não vive a custa dela e tem a própria vida pra resolver. Que ela pusesse Bolão pra bancar despesas, não contasse com ele. Coitada daquela mãe, quando ele aparece é pra tirar paz, grita e é agressivo com ela, vive mais preocupado com corpo sarado e roupa de marca. Lembra quando o marido saiu de casa por causa de mulher? Os meninos pequenos e ela criou sozinha. O marido voltou pra casa com eles adultos.

― Engraçado, ele é pardo, pobre, corpo franzino. Por outro lado, é machista, preconceituoso e tem pouco conhecimento, apesar de curso superior.

― As bolhas mostram nossa sociedade mais complicada do que se pensava. Tanto tempo achando estar melhorando a vida e lá vai o brasilzinho regredindo novamente.

― Bolão é tão diferente, né, tem jeito ingênuo. Sofrido, mas pessoa boa. Lembra quando a namorada trocou ele por outro? iam noivar. Ficou tão desorientado e a mãe viu o filho ali, dependurado do lado de fora da casa. A pobre mulher gritou ajuda enquanto segurava a perna do rapaz. Foi o que salvou. Eles são nossos vizinhos de cerca, mas não vi nada. No outro dia contaram dos gritos desesperados da mulher. Bolão depois disso ficou arredio e acabrunhado aos cantos.

― Tanta mãe com problema no nosso povoado, hein, Bia?

― Nem fala, naquele trecho onde vamos é lugar de muito sofrimento, cada história de deixar boca aberta. Mulheres fortes que dão volta por cima e seguram a família com mão protetora e elas nem têm apoio. Seguram a barra sozinhas.

― Quase não conheço aquele pedaço, tem tanto problema assim?

― Bem, voltando ao que a gente falava, da pizzaria, quando fui ao banheiro dei de cara com namorada do Oswaldo, uma bela mulher. Nossos olhares se encontraram e o olhar me pareceu tristonho, sofrido. Parecia cansada, observei.

― A gente sabe tão pouco das pessoas, e sendo ele machista, tenho dificuldade com homem machista, não dou conta desse comportamento. Com essa pandemia então, os problemas estão pipocando pra todo lado, difícil sobreviver nesses tempos de tanta falta, principalmente se se é mulher, negra e pobre. Preconceito por todo lado, a gente sente na pele. Precisa ir longe não.

As duas mulheres fizeram silêncio e continuaram caminhada até a encruzilhada que dava acesso às casas, quando de repente Bia disse, Ruza, pera aí, vou tirar foto dessas flores, que lindas! Estão sim, respondeu. Depois de subir degraus em pedra e terra batida, chegaram a uma das portas. Quem atendeu trazia semblante exausto. Bia perguntou como andava a situação, anotou o que a família necessitava, e a associação enviaria o que fosse possível, ainda visitariam outros barracos.

No caminho Bia contou:

Ela se casou tão nova, o marido era violento e com várias amantes. Separou e ficou quase vinte anos sem querer saber de homem, até que encontrou um viúvo e estão casados há três anos. Ele é bom homem, se preocupa perguntando se ela está bem. Com tanta labuta, essa mulher teve problemas de saúde, pressão alta, diabetes há mais de cinco anos. Ela teve de sair de casa ao largar o marido violento, foi tempo confuso, trabalhou demais. Fica muito nervosa com os filhos e o esposo atual por não respeitarem seu silêncio. Ela me disse, gosto de ficar quieta às vezes, mas sinto falta de conversar com alguém. Homens não compreendem. Tem hora que minha raiva é tanta que como muito açúcar, tomo litro de refrigerante, mesmo sabendo que é prejudicial. Ao conversar ficou mais aliviada, então sempre dou uma passada para saber como vai, os cuidados que anda tendo, não somente neste momento da pandemia.

Assim, no deserto entre uma moradia e outra, tão indecifrável, as duas mulheres caminhavam na areia quente que repicava pelo chinelo atingindo a perna. Que secura nesses tempos, uma falou.

Até chegar à outra moradia.

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