NINGUÉM NASCE MULHER, TORNA-SE
MULHER
09/04/2019
“Amar é ter um pássaro pousado nos
dedos”. Rubem Alves, um de seus poetas preferidos. Desta vez discordaria dele.
Pelo menos do restante da frase “... a qualquer momento ele pode voar”. Ele pensava
em Fatinha. A namorada romântica, iludida com suas frases de efeito. Lia Manoel
de Barros, lia Bandeira, Quintana, tantos outros. Repetia habilmente poemas
irmanados de lirismo. Mas o seu dizer, palavras soavam falso. Homens assim
também usam poesia. Assim enjaulava as vítimas. Fatinha, doce e ingênua, se
derretia vendo-o declamar versos, estrofes, poemas inteiros e ele vaticinado, a
certeza de ter conquistado a presa. Fatinha, o bicho domesticado, criada em
redoma no interior do estado. O namorado endeusado pela mocinha de coração
generoso. Fatinha cumpria à risca o papel de boa moça respeitosa das convenções
e Vogel, ela acreditava, pássaro autêntico.
Vogel caminhava firme, na certeza de
dar o golpe certeiro, devagar, a conta gotas. O rei do gado, pai de Fatinha, o considerava
bom partido para a filha. Vogel vinha dos lados de Mato Grosso e o sobrenome
que furtara dava conhecimento de família oligárquica dominadora de terras
locais, oriundas de antigas grilagens, terras públicas, terra de São José, que caia
nas mãos de espertos. O rei do gado assim também fizera, amealhando aqui e ali
pedaços de terras devolutas e outras de pequenos agricultores que, se ousassem
questionar, tinham a família eliminada a bala, obrigados a deixar a terra. As
mulheres não se metiam nesses assuntos, predestinada a elas a herança e não a
palavra. Mudas, opacas, sem cor, amarelecidas, mulher objeto de uso e enfeite.
Fatinha desconhecida desses temas, ouvia apenas o coração. Aceitou tornar-se a
mulher que ele sonhara, soprou ele no seu ouvido.
O casório teceu a contos de fadas,
bordado por Fatinha e corroborado pela mãe e pelo pai, que faziam sim, os
gostos da filha. Fatinha nos ares, em voos fantasiosos com o deus Cupido, o
deus do seu coração estava prestes a ter o corpo virgem e franzino.
No famoso hotel, Vogel abriu a porta
do aposento, Fatinha entrou sem a pompa habitual. Ela sonhara que ele a
carregaria nas asas. Vogel, assim que trancou a porta do quarto, puxou-lhe pelos
cabelos e a ira traduziu suas palavras:
― Nem um pio ou arrebento essa
carinha de bonequinha do papai. ― em seguida, rasgou-lhe o vestido. Fatinha,
olhar apavorado, antes de abrir a boca, ganhou uma bofetada. ― cala a boca!
Jogou-a na cama, retirando a roupa à
força, rasgou-lhe a calcinha, introduziu o membro ereto sem o ritual sonhado
pela moça. No grito vermelho, Fatinha viu o demônio sobrevoando em cima de si e
desmaiou. Ficou grávida nesse dia. Ele não mais se interessou pela presa,
casou-se com direito aos bens, isso que importava. Grávida, Fatinha saiu de
casa, tornou-se mulher. Dona do próprio nariz, estudou, formou-se, conseguiu
emprego, sustentava o lar. Vogel destituiu-lhe a fantasia e o estrago emocional
tratado em consultório psicoterápico por longos anos. Desconfiada, disfarçava
a perda imaculada com sorrisos e brincadeiras no ambiente de trabalho.
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