quinta-feira, 11 de abril de 2019

NINGUÉM NASCE MULHER, TORNA-SE MULHER



NINGUÉM NASCE MULHER, TORNA-SE MULHER
09/04/2019
            “Amar é ter um pássaro pousado nos dedos”. Rubem Alves, um de seus poetas preferidos. Desta vez discordaria dele. Pelo menos do restante da frase “... a qualquer momento ele pode voar”. Ele pensava em Fatinha. A namorada romântica, iludida com suas frases de efeito. Lia Manoel de Barros, lia Bandeira, Quintana, tantos outros. Repetia habilmente poemas irmanados de lirismo. Mas o seu dizer, palavras soavam falso. Homens assim também usam poesia. Assim enjaulava as vítimas. Fatinha, doce e ingênua, se derretia vendo-o declamar versos, estrofes, poemas inteiros e ele vaticinado, a certeza de ter conquistado a presa. Fatinha, o bicho domesticado, criada em redoma no interior do estado. O namorado endeusado pela mocinha de coração generoso. Fatinha cumpria à risca o papel de boa moça respeitosa das convenções e Vogel, ela acreditava, pássaro autêntico.
            Vogel caminhava firme, na certeza de dar o golpe certeiro, devagar, a conta gotas. O rei do gado, pai de Fatinha, o considerava bom partido para a filha. Vogel vinha dos lados de Mato Grosso e o sobrenome que furtara dava conhecimento de família oligárquica dominadora de terras locais, oriundas de antigas grilagens, terras públicas, terra de São José, que caia nas mãos de espertos. O rei do gado assim também fizera, amealhando aqui e ali pedaços de terras devolutas e outras de pequenos agricultores que, se ousassem questionar, tinham a família eliminada a bala, obrigados a deixar a terra. As mulheres não se metiam nesses assuntos, predestinada a elas a herança e não a palavra. Mudas, opacas, sem cor, amarelecidas, mulher objeto de uso e enfeite. Fatinha desconhecida desses temas, ouvia apenas o coração. Aceitou tornar-se a mulher que ele sonhara, soprou ele no seu ouvido.
            O casório teceu a contos de fadas, bordado por Fatinha e corroborado pela mãe e pelo pai, que faziam sim, os gostos da filha. Fatinha nos ares, em voos fantasiosos com o deus Cupido, o deus do seu coração estava prestes a ter o corpo virgem e franzino.
            No famoso hotel, Vogel abriu a porta do aposento, Fatinha entrou sem a pompa habitual. Ela sonhara que ele a carregaria nas asas. Vogel, assim que trancou a porta do quarto, puxou-lhe pelos cabelos e a ira traduziu suas palavras:
            ― Nem um pio ou arrebento essa carinha de bonequinha do papai. ― em seguida, rasgou-lhe o vestido. Fatinha, olhar apavorado, antes de abrir a boca, ganhou uma bofetada. ― cala a boca!
            Jogou-a na cama, retirando a roupa à força, rasgou-lhe a calcinha, introduziu o membro ereto sem o ritual sonhado pela moça. No grito vermelho, Fatinha viu o demônio sobrevoando em cima de si e desmaiou. Ficou grávida nesse dia. Ele não mais se interessou pela presa, casou-se com direito aos bens, isso que importava. Grávida, Fatinha saiu de casa, tornou-se mulher. Dona do próprio nariz, estudou, formou-se, conseguiu emprego, sustentava o lar. Vogel destituiu-lhe a fantasia e o estrago emocional tratado em consultório psicoterápico por longos anos. Desconfiada, disfarçava a perda imaculada com sorrisos e brincadeiras no ambiente de trabalho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário