sábado, 24 de outubro de 2020

céu imprevisível (CENA 32)

 

17/10/2020

            E a terra nem sempre em controle. A fatalidade. O carro a frente ao de Osvaldo engatou marcha ao mesmo instante em que o choque intenso do ônibus prensou o veículo da família empurrando-o, rangendo feroz lataria contra lataria, lançando-o ao canteiro lateral e rodopiou por três vezes ao ser jogado na pista que acabara de ser liberada. Do banco traseiro do carro à frente ao de Osvaldo, ao ouvir o grande estrondo os passageiros estarrecidos  viam os rodopios acontecerem enquanto o carro se distanciava. Em questão de instante, o caos. Carros e ônibus diminuíam marcha para observar, pessoas saíam de restaurantes próximos, o ajuntamento de pessoas infernal. Coincidentemente jantava em um restaurante um radialista popular da região que correu para ver o estrago e mais tarde requisitado como testemunha, sem ter presenciado o desenrolar. Apenas viu veículo destruído, ônibus um pouco menos, mas com passageiros vitimados. A chegada de socorro, sirenes barulhentas. Pouco mais tarde, nada mais havia além do canteiro lateral quebrado, poste meio tombado, onde se via  destroços da armação em ferro e marcas no asfalto feitas pela perícia.

 

Osvaldo sentiu-se disforme. Mente e corpo. Dominado por aparente abismo em que realidade e sombra se dissociavam em meio ao esfumar até que a imagem surgia através de luz fria. Movimentou os olhos pela sala imensa vendo duas macas distantes e cada uma com um médico sentado, retirando pedacinhos de objetos da cabeça delicadamente com objeto cirúrgico e colocando em pequena bacia, enquanto conversavam, mas nada compreendia. Movimentou o corpo e viu a maca perto de si, reconheceu o irmão. Mexeu mãos, abrindo e fechando-as, esticou braço e tocou Eustáquio que parecia dormir, mas olhos bem abertos. Notou a mão cerrada e forçou cada dedo até segurar um objeto. Suspendeu e viu a chave de casa e aos poucos memória clareando em flashes que iam e vinham. Olhos marejaram. Sentiu esvair-se em imagens distorcidas. As vistas escureceram.

 

Na periférica Vila Americana moravam trabalhadores de casas simples, alguns lotes vagos, ruas sem asfalto e sem serviço de ônibus. As pessoas precisavam andar alguns quarteirões até via principal para acesso ao transporte público. Um lugar em que portas e janelas escancaradas dizia ser tranquilo. Crianças e jovens brincavam na rua, jogavam queimada, futebol, dançavam quadrilha em festas juninas ou festejavam na adolescência o vinho barato em garrafão entre a turma no período de festas de fim de ano.

Espaço para brincar não faltava. Duas casas após a da família, Osvaldo observava como ali parecia a casa da avó na roça. Um vilarejo com trilhos e barulho de trem de minutos em minutos trafegando por muitos bairros. Corria pra ver quando o trem interrompia viagem e chegava à estação da vila, apenas um retângulo em morro cimentado. Chegou a ver uma moça em desespero se jogando à frente do vagão. Ouvia casos de suicídio e de algumas pessoas alcoolizadas perderem braço ou perna por não ouvirem o sinal do trem que avizinhava. Após alguns quarteirões, muito matagal, uma área enorme com árvores de todo tamanho e espécie na fazenda do Seu Paulino, com o pasto gramado em forma de campinho onde nas folgas a trinca de meninas e meninos se encontrava para jogar futebol, rouba bandeira, queimada, pular corda, dependurar em árvore, gangorrar, gritar, conversar e algumas vezes brigar.

Quando ia para a escola seguia em cima dos trilhos ou saltando dormentes de madeira por quase vinte minutos e depois cortava caminho por várias barrocas de terra, lugar usado pela construção civil no desprezo de material. Terra rosada, bonita e interessante para crianças que brincavam livres e descalças. Nesse perímetro observava casinhas simples em meio à confusão de morros de terra, matos, árvores. O progresso ameaçava a calma. Tratores começaram eliminar tudo aquilo, expulsando moradores ao modificar o espaço urbano em foco no mercado imobiliário e na construção de grande avenida, com pista exclusiva para ônibus. Ali o preço dos impostos se elevou a tal ponto que empurrou famílias para área longínqua numa visível substituição da população pobre para o que seria transformado em bairro de classe média.

Na vila também ocorria mudança. Mudou o nome. Vila Marília. E mais tarde, com mercado imobiliário e desenvolvimento econômico também foi ocorrendo apropriação do espaço por outros mais aquinhoados, transformando-se em bairro. Poucos vizinhos permaneceram. Aos trinta e três, Osvaldo não conhecia novos moradores, casas com outro padrão, rua asfaltada e serviço de transporte público. Faltavam poucos dias para entrega da avenida e do grande shopping construído no loteamento do Seu Paulino.

 

Agora Osvaldo atravessava com a família a via transversa, ainda sem sinalização, para ida à igreja. E ao término da cerimônia, quando já no veículo, disse:

― Coloquem cinto de segurança.  ― O pai rebelde comentou que eram apenas poucos minutos até em casa, não seria necessário. O que todos concordaram.

 

Osvaldo começava acordar e a voz ao seu lado, o homem vestido de branco:

― Você e sua família sofreram acidente de trânsito e vamos te levar para fazer radiografia e ver se está tudo bem. ― Osvaldo quis saber dos familiares. O médico ponderou que faziam todos esforços, mas no momento o importante era ver como ele se encontrava. A enfermeira atravessou longo corredor com a maca, enquanto Osvaldo enxergava teto e extrema luz, ainda sonolento e sem energia pensou, como o céu é imprevisível.

 

― Ai, que que isso? ― O cigarro queimava os dedos. Osvaldo deu salto da cadeira, limpando a roupa com resquícios de cinza incandescente. ― Parece que tudo aconteceu neste momento. Todo meu corpo angustiado nessa rememorização, tal como aquele dia. Esse resgate machuca demais. Como é difícil lembrar.

Osvaldo entrou em casa, pegou água para chá se perguntando por que veio à tona?

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