17/10/2020
E a terra
nem sempre em controle. A fatalidade. O carro a frente ao de Osvaldo engatou
marcha ao mesmo instante em que o choque intenso do ônibus prensou o veículo da
família empurrando-o, rangendo feroz lataria contra lataria, lançando-o ao
canteiro lateral e rodopiou por três vezes ao ser jogado na pista que acabara
de ser liberada. Do banco traseiro do carro à frente ao de
Osvaldo, ao ouvir o grande estrondo os passageiros estarrecidos viam os
rodopios acontecerem enquanto o carro se distanciava. Em questão de instante, o caos. Carros
e ônibus diminuíam marcha para observar, pessoas saíam de restaurantes próximos,
o ajuntamento de pessoas infernal. Coincidentemente jantava em um restaurante
um radialista popular da região que correu para ver o estrago e mais tarde
requisitado como testemunha, sem ter presenciado o desenrolar. Apenas
viu veículo destruído, ônibus um pouco menos, mas com passageiros vitimados. A
chegada de socorro, sirenes barulhentas. Pouco mais tarde, nada mais havia além
do canteiro lateral quebrado, poste meio tombado, onde se via destroços da armação em
ferro e marcas no asfalto feitas pela perícia.
Osvaldo sentiu-se disforme. Mente
e corpo. Dominado por aparente abismo em que realidade e sombra se dissociavam
em meio ao esfumar até que a imagem surgia através de luz fria. Movimentou os olhos
pela sala imensa vendo duas macas distantes e cada uma com um médico sentado,
retirando pedacinhos de objetos da cabeça delicadamente com objeto cirúrgico e
colocando em pequena bacia, enquanto conversavam, mas nada compreendia. Movimentou
o corpo e viu a maca perto de si, reconheceu o irmão. Mexeu mãos, abrindo e
fechando-as, esticou braço e tocou Eustáquio que parecia dormir, mas olhos bem
abertos. Notou a mão cerrada e forçou cada dedo até segurar um objeto.
Suspendeu e viu a chave de casa e aos poucos memória clareando em flashes que
iam e vinham. Olhos marejaram. Sentiu esvair-se em imagens distorcidas. As
vistas escureceram.
Na periférica Vila Americana
moravam trabalhadores de casas simples, alguns lotes vagos, ruas sem asfalto e sem
serviço de ônibus. As pessoas precisavam andar alguns quarteirões até via
principal para acesso ao transporte público. Um lugar em que portas e janelas
escancaradas dizia ser tranquilo. Crianças e jovens brincavam na rua, jogavam
queimada, futebol, dançavam quadrilha em festas juninas ou festejavam na adolescência o vinho barato em garrafão entre a turma no período de
festas de fim de ano.
Espaço para brincar não faltava.
Duas casas após a da família, Osvaldo observava como ali parecia a casa da avó
na roça. Um vilarejo com trilhos e barulho de trem de minutos em minutos
trafegando por muitos bairros. Corria pra ver quando o trem interrompia viagem
e chegava à estação da vila, apenas um retângulo em morro cimentado. Chegou a
ver uma moça em desespero se jogando à frente do vagão. Ouvia casos de suicídio
e de algumas pessoas alcoolizadas perderem braço ou perna por não ouvirem o
sinal do trem que avizinhava. Após alguns quarteirões, muito matagal, uma área
enorme com árvores de todo tamanho e espécie na fazenda do Seu Paulino, com o
pasto gramado em forma de campinho onde nas folgas a trinca de meninas e
meninos se encontrava para jogar futebol, rouba bandeira, queimada, pular
corda, dependurar em árvore, gangorrar, gritar, conversar e algumas vezes
brigar.
Quando ia para a escola seguia em
cima dos trilhos ou saltando dormentes de madeira por quase vinte minutos e depois
cortava caminho por várias barrocas de terra, lugar usado pela construção civil
no desprezo de material. Terra rosada, bonita e interessante para crianças que brincavam
livres e descalças. Nesse perímetro observava casinhas simples em meio à
confusão de morros de terra, matos, árvores. O progresso ameaçava a calma.
Tratores começaram eliminar tudo aquilo, expulsando moradores ao modificar o
espaço urbano em foco no mercado imobiliário e na construção de grande avenida,
com pista exclusiva para ônibus. Ali o preço dos impostos se elevou a tal ponto
que empurrou famílias para área longínqua numa visível substituição da
população pobre para o que seria transformado em bairro de classe média.
Na vila também ocorria mudança.
Mudou o nome. Vila Marília. E mais tarde, com mercado imobiliário e
desenvolvimento econômico também foi ocorrendo apropriação do espaço por
outros mais aquinhoados, transformando-se em bairro. Poucos vizinhos permaneceram.
Aos trinta e três, Osvaldo não conhecia novos moradores, casas com outro
padrão, rua asfaltada e serviço de transporte público. Faltavam poucos dias
para entrega da avenida e do grande shopping construído no loteamento do Seu
Paulino.
Agora Osvaldo atravessava com a
família a via transversa, ainda sem sinalização, para ida à igreja. E ao término da cerimônia, quando já
no veículo, disse:
― Coloquem cinto de segurança. ― O pai rebelde comentou que eram apenas
poucos minutos até em casa, não seria necessário. O que todos concordaram.
Osvaldo começava acordar e a voz
ao seu lado, o homem vestido de branco:
― Você e sua família sofreram
acidente de trânsito e vamos te levar para fazer radiografia e ver se está tudo
bem. ― Osvaldo quis saber dos familiares. O médico ponderou que faziam todos
esforços, mas no momento o importante era ver como ele se encontrava. A
enfermeira atravessou longo corredor com a maca, enquanto Osvaldo enxergava teto
e extrema luz, ainda sonolento e sem energia pensou, como o céu é imprevisível.
― Ai, que que isso? ― O cigarro
queimava os dedos. Osvaldo deu salto da cadeira, limpando a roupa com
resquícios de cinza incandescente. ― Parece que tudo aconteceu neste
momento. Todo meu corpo angustiado nessa rememorização, tal como aquele dia.
Esse resgate machuca demais. Como é difícil lembrar.
Osvaldo entrou em casa, pegou água para chá se perguntando por que veio à tona?
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