segunda-feira, 12 de outubro de 2020

lembranças (CENA 30)

 

04/10/2020

            Osvaldo a caminho da cozinha sentiu leve tonteira. Devo ter me levantado rápido, em seguida escorou a mão à parede. Acima, o quadro antigo em nanquim que ele pintara. A rua em pedras na cidade de Mariana ou Diamantina, já nem me recordo bem de onde, e olhava as fachadas dos casarões antigos, num deles um galo ostentando garboso a cumeeira do telhado indicando a direção do vento. Os passeios com escadaria conforme exigido para cidade construída entre montanhas. A solidão monótona da paisagem em preto e branco. O homem relembrou, eu gostava de desenhar. Apenas dois quadros com paisagem barroca da cidade de Minas Gerais enfeitavam a parede, resquícios de prazer antigo. Por que não continuei a arte do nanquim? Sem responder, entrou na cozinha.

Requentou café, bebeu num gole e voltou ao cantinho para continuar fumegando. Acendeu novo cigarro e Leila ainda em seus pensamentos longínquos. Saberei como ela está quando nos vermos, temos mesma idade, como andará a saúde nestes tempos de coronavírus? Setentões tomam cuidado dobrado, as mudanças fisiológicas nos devoram e exigem acompanhamento cotidiano. Como dizem, mulheres mostram-se sexo forte até neste momento. Suportam baques bem mais que nós, os garotos. Osvaldo numa sorridela lembrou música do Leoni, e cantou sonoramente “meninas são tão mulheres, seus truques e confusões ... garotos não resistem aos seus mistérios, garotos nunca dizem não... perto de uma mulher, são só garotos... ”.

É verdade, Leila para mim era isso, a mulher que me apresentou o lado forte desse sexo. Custei descobrir, aquela faísca era mais do que amor de amante, era amorosidade do amigo leal, com a qual contei durante época turbulenta de minha vida. Leila não conheceu a versão inicial, a paixão que senti. Apenas Maria e Aluísio tinham ideia. Maria percebeu olhares, meu encantamento quando Leila balbuciava palavra que fosse e num dos encontros sem a presença dos outros me dissera, por que não conta pra Leila, Valdo, pra quê continuar com essa dor sufocante? Ouço ainda agora ela me dizendo isso e eu respeitando e não tecendo comentários. Também Aluísio descobriu, mas como eu, ele tinha lá suas dificuldades em relação à Maria.

 

Maria, diferente de nós, era bem nascida, com familiares rígidos e conservadores. O coração bateu por Aluísio, rapaz habilidoso, mas cuja inteligência demandava dele esforço pessoal para qual não encontrava tempo e disposição. A vida não tinha sido fácil. A mãe falecera de câncer quando ele, ainda menino, já contribuía financeiramente, pois o pai mal e mal conseguia dar suporte familiar. Com a morte da mãe, o pai exigiu mais, cobrando decisões adultas. Quando rapaz, Aluísio passou a responsável pelo lar, pois o pai apareceu também com câncer, e em fase avançada recebia do rapaz comida na boca. Era o mais adulto dentre nós, via as coisas de forma objetiva e racional, sem contornos romanescos ou fantasiosos, mas sensível ao olhar, gostava de fotografar e escrever poemas. Queria ser escritor, o pai exigia que se formasse em Administração, para agradar não se opunha. O tom de pele parda, cabelos negros em cachos. Maria o achava bonito em sua altura média e magra. Ela, longo cabelo amendoado, pele clara e porte mignon, faziam dela pequenina. Maria cogitou auxiliar Aluísio, mas ele resistia orgulhoso. Osvaldo percebeu o sentimento desabrochando no casal quando escutou, quem aquela filhinha de papai pensa que é, disse Aluísio. Osvaldo falou, não custa aceitar ajuda de Maria, qual o problema? Você corre risco de perder o último ano do colégio. Juntos estudavam na biblioteca e entre os dois jovens surgia carinho e afeto, mas também sentimentos contraditórios, elo que ambos captaram interferindo na respiração e batidas do coração, até que num momento de raiva, não tem jeito, os incômodos são falados.

Maria se tornou ousada com a convivência entre nós, já não concordava em tudo com a mãe. Aos poucos abria asas como quem experimenta o respirar genuíno. Sei que ela contribuiu para surgimento do homem bom existente nele, apoio importante quando o pai se foi. Estavam juntos na formatura. A turma em sintonia um com o outro fez despertar na gente a solidariedade e importância grupal.

 

Osvaldo, de repente viu projetar nuvens negras. Aconteceu em setembro ou outubro? Como gravura surrealista de quadro de Salvador Dalí o acontecimento saltara frente aos olhos. Não, não foi em outubro. Fora no primeiro dia de primavera de setembro. As imagens difusas e derretidas em sua mente. O pesadelo arrebentou em furor. Precisou respirar e agonizou através da fumaça, o rosto dolorido e lágrimas no semblante. Não enxergava bem devido embaçamento, como se a vida, num baque, colocasse em dúvida a existência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário