segunda-feira, 19 de outubro de 2020

imagens derretidas (CENA 31)

12/10/2020

            Imagens espalhadas e desconexas persistiam na memória, corpos ausentes e marcados no vazio. Era pesadelo sim.

Vinte e duas horas. Vinte e três de setembro. Atendo o telefone e a voz do outro lado:

― Aconteceu acidente grave com seus pais e irmão. ― Não quiseram dar outras informações, apenas estavam no pronto socorro da capital e necessitavam de parente próximo.

Osvaldo pegou chave do carro, se dirigiu ao local e nos corredores frios do hospital buscou incansavelmente por notícias, mas vinham picadas, poucas palavras, poucas respostas. A equipe trabalhava sob pressão nos casos mais graves que chegavam a todo instante e demandavam decisão emergencial. Osvaldo foi levado à uma maca metálica, dura e gelada onde Eustáquio, em estado de choque, estava em observação. Nunca tinha entrado ali, quanto sangue, gemidos próximos, cortinas brancas e finas onde se entrevia vultos e o corre corre de aventais brancos. Tocou a mão do irmão cerrada em punho e com dificuldade abriu. Uma chave. A chave da nossa casa, daquele tipo antigo e comprida, que ele segurava firme e protetor.

Lembrou o momento em que se despediu da mãe na calçada com um abraço, beijo no pescoço, ela sorrindo, contorcendo em cócegas e Osvaldo disse, te amo mamãe. Mas por que me despedi de minha mãe se estava junto a eles na igreja?

 

Era domingo de início de primavera. Enquanto assistiam a missa, longe dali no local de embarque de ônibus na periferia, o motorista antes de início de nova viagem ao centro da cidade, olhou o relógio e verificou, tenho dez minutos. Avisou que iria comprar água no boteco.

― Duas doses caprichadas de cachaça. ― pediu o motorista ao balconista. Jogou goela abaixo um copo americano cheio da bebida enquanto era observado por duas passageiras pela janela do veículo. Ele era conhecido no local e comentava, ― Sou roda federal! ― Gabando-se da habilidade ao volante. Voltou em cima da hora, ligou a chave do veículo e rumou pela nova via exclusiva de ônibus.

 

A igreja era próxima à casa da família de Osvaldo, nem bem dez minutos de tráfego. O padre encerrou a missa e ao sair, viram o céu estrelado na noite. Entraram no carro. Na via transversa o carro ficara preso ao veículo da frente e quase metade exposta na via exclusiva de ônibus. A família apreensiva de dentro do carro observava o ônibus se aproximando cada vez mais e Osvaldo não conseguia mover sequer um milímetro, mas disse, tem espaço suficiente para ele passar. O que tranquilizou os pais.

 

O motorista a certa distância percebeu a rabeira do automóvel na pista exclusiva e comentou com o auxiliar, ouvido por passageiros:

― Vou tirar um fininho naquele carro, quer ver? ― zombou em voz alta.

 

O estrondo e o mundo veio abaixo.

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