sábado, 26 de dezembro de 2020

segundo tempo (CENA 40)

 

Foto  jaimerchagas

21/12/2020

            A essência vermelha em interação com atmosfera permitira Luiza enveredar caminhos sem censura e amealhando resquícios aqui e ali, engavetados na memória do tempo, vinham livres, em perguntas que demandavam ou não respostas. O espírito dionisíaco lhe dizia para soltar-se, voar, poderia ser ela mesma sem máscara, sem subterfúgios. Voltou olhar para Osvaldo.

― Precisa experimentar o Mani-Oara, vinho da mandioca feito por mulheres indígenas. Protagonismo feminino. Produto da sustentabilidade. Além de valorizar cultura, o bem viver, preserva saberes e usos. No próximo encontro vou trazer pra você.

― Interessante nome! Ora, com certeza é indígena, qual significado?

― Mani-oara é uma formiga. Como as formigas são mais fortes juntas, mulheres também. Os produtos são cem por cento amazônicos. As mulheres são resilientes, como a minha terra.

― Vou adorar o presente. Quando quiser dormir, diz, está bem?

― Enviei mensagem para uma colega me render amanhã. Então, estou sem pressa. Podemos ficar um pouco mais? A noite está tão fresca que impressiona.

― E sua filha, Luiza?

― Minha doce e sensível criança... ― Enquanto contava, levantou-se.

Luiza saía para o trabalho pela manhã. O marido trabalhara noite toda e apenas a esposa se despedido, foi atrás de cigarro. Ao ver o maço vazio e perceber a menina dormindo tranquila, saiu. O boteco perto de casa fechado, caminhou algumas quadras até encontrar.

― Minha filha tinha asma crônica e os cuidados começaram cedo. Quando ela tinha três, casei. Meu marido não era o que se pode chamar homem caseiro. Gozava noite em bares após trabalho. Durante o dia, cuidava da pequena já com sete. Não explicou porque a deixara sozinha, sei lá, cigarro, algo assim, e a deixou por minutos, quando retornou ela dormia o sono dos anjos para sempre. Os dois amores de minha vida, e eu não estava lá quando precisavam.

― Luiza, coloque a máscara. ― Osvaldo já mascarado ordenou, e Luiza obedeceu sem resistência.

As lágrimas lhe escorriam e molhavam o tecido quando o homem desobedeceu as regras, e apertou a mulher nos braços, procurou manter o rosto afastado do rosto de Luiza e ao ouvido dela sussurrou palavras consoladoras. Em seguida, Luiza lentamente escorou a face no peito de Osvaldo, ouvindo as batidas fortes e os tremores que vinham de ambos corpos. Ele a enlaçava, protegia aquela criança.

― Oh, meu bom amigo, quem diria que à altura da vida eu encontraria bom ouvido. Meu casamento vinha desgastado e percebi aquele homem ausente e egoísta, que enxergava apenas si próprio. Coloquei fim no relacionamento, mesmo assim ele me perseguia. Um tormento. Fugi. Ele me descobria, ameaçava ainda assim. Naquela época não tinha a Lei Maria da Penha, se hoje é difícil para nós mulheres mesmo tendo esta lei, imagina anos noventa.  Somente me deu sossego após encontrar outra. Enfim, mudei-me para cá, mas o passado me faz companhia. A pandemia soltou meus demônios. Desculpe-me!

― Nenhuma dor se compara a perda de entes queridos. Te entendo, minha amiga, te escuto, vem, senta um pouco. ― Osvaldo apoiou os braços dela até assentar e deram-se a mão. Com a outra entregou-lhe o cálice.

Passada a meia noite aquela varanda era Pasárgada.

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