15/12/2020
A canção entoava. Na voz de Agepê:
“... gira mundo vai girando
Roda
gira gira roda
...
Tem
gente que não entende
Que
a vida é feita
De
açúcar e sal
De
chuva e sol
Quem
sabe arrancar o veneno
Do
peito ...”
― Saudade do Agepê, saiu de cena, mas não morre
nunca. A vida é feita de açúcar e sal. Tão óbvio e às vezes, tão obtuso em
nosso pensamento. Não queremos crer que exista tanta ruindade, será mesmo
necessário, me diz, Valdo? Gostaria de ouvir de você, “Luiza, um dia ficaremos
livres da amargura, verá!” Me diz, por que insisto em ilusão tamanha? Engraçado,
a gente aqui aprofundando o papo, né, Valdo. Pois é, sou assim, ainda tenho
ilusões. Será por que sou mulher? Ou sensibilidade à flor da pele?
Osvaldo ouviu em silêncio. Levantou para pegar
mais água e trouxe nova garrafa de vinho.
― Assim vai me embebedar. Você falou dos perigos
na esquina. Perigos nos espreitam... além dos que rondam nossa pátria, nossa
casa ... temos o passado. E o passado está sempre rondando a gente e quando
menos se espera, ei-lo.
― “Eu amo cada minuto, cada minuto amigo ou
inimigo, de voo e perdão: cada minuto da vida. Mas o passado tem um jeito de
levar a gente ao lugar certo em hora errada, e traz junto tempestade”. ― Falou
Osvaldo.
― Você se lembra de alguma paixão juvenil,
Valdo?
― Poucas e raras. Sempre fui mais reservado e
alguns complexos minaram meu entusiasmo inicial. Mas me lembro de uma amiga
especial que tornou aquela época um momento de paz e atrevimento, de busca e
curiosidade, ampliou minha ambição por questões sobre o universo pessoal,
existencial. Uma mulher à frente do seu tempo.
― Quando saí de minha terra, encontrei um rapaz
na cidade. Fábio e eu fomos nos envolvendo, a cada dia novos encontros...
Luiza chegou à cidade de Manaus aos treze, sem o
traquejo e astúcia necessários para viver outra realidade. Na aldeia todos são
irmãos, parentes, o coletivo valorizado, solidariedade é natural, existiam
exceções de indígenas tomados pelo vício do alcoolismo e degradavam a própria
vida, como vasos fracos, quebrantáveis, existentes em qualquer lugar. A menina
moça, cabelos negros e longos, olhos indagadores, ágil e com força muscular, iria
estudar, trabalhar, conhecer hábitos, e a cada dia tomava consciência de que
ali não era bem uma grande aldeia. Observava pessoas isoladas, fechadas naquele
concreto formatado com costumes diferenciados. Adaptação dolorosa e demorada
devido ao idioma e cultura. Quando conheceu Fábio na fábrica em que
trabalhavam, de latifundiários donos de quase toda a cidade, Luiza era uma
outra mulher após cinco anos. Decidida, atrevida, curiosa nos detalhes,
adquiriu habilidades importantes para sobreviver no pavimentado espaço da
polis.
Os dois quando podiam desapareciam. Luiza
montava na garupa da motocicleta enquanto Fábio buscava estrada de vegetação
ainda nativa. E na loucura adolescente costumavam enfrentar trechos da viagem
levantando o corpo e abrindo braços ao vento em completa veneração à natureza a
que pertenciam. Amantes daquela rusticidade, os dois jovens se deixavam embaixo
de imensas árvores enquanto comiam frutos que encontravam e comida que traziam.
Depois acampavam.
― Adorávamos acampar na mata fechada que a cada
vez descobríamos. Por ali nos aconchegávamos, o amor e a paixão nos alimentando,
não existia o tempo, nem compromissos a nos preocupar. Apenas o tempo em que o
sol ia ditando e a lua se opondo imensa e iluminada. Em mim germinava a
semente. Ainda que escolhesse não contar, ele pressentia o milagre, pois dizia,
Lulu, minh’alma anda altiva e alvissareira. Que trará pra nós? Fábio com jeito único,
sensível, amava a liberdade que a possante moto possibilitava. Eu me misturava
ao seu centro e compartilhava desejos. Desejos que iam tomando forma em meu
corpo.
Durante o ano de convivência com Fábio, ele revelou
segredos que evitara até àquele descanso na grande árvore amiga, que energizava
ambos. Luiza preparava para dar a notícia, mas preferiu aguardar um pouco mais.
― Fábio adorava velocidade muito atrevidamente.
Obrigado a resolver assuntos da empresa foi em viagem de carro, acostumado à
liberdade de parar ou continuar quando bem entendesse. Disse-me, desta vez será
diferente, quero retornar rápido pra gente continuar a busca. O lugar que começávamos
embrenhar juntos nos deixava animadíssimos. E eu ansiava por notícias.
Fábio pegou o carro da empresa e seguiu para o
compromisso. Tinha prazo para estar lá e na cronometragem do tempo percebeu que
poderia dar esticada rápida num sítio arqueológico que descobrira. Quando pegou
estrada novamente enfiou pé no acelerador por muitas horas. Era fim de tarde e
as curvas se tornavam incômodas.
― Quando ouvi notícias do acidente fatal de
Fábio, meu mundo caiu. Ele dormira ao volante e o carro caíra numa ribanceira,
até para ser resgatado levou tempo. Valdo, eu ali grávida do homem que amava,
sem poder comentar com medo de me tirarem o bebê. Fábio era um dos filhos do
ricaço da cidade e somente me contara dia antes da viagem. Ninguém sabia de
nosso namoro, ele me disse que devagar falaria aos pais, gente preconceituosa e
arrogante, que se desaprovassem, ele assumiria.
Luiza se mudou para Santarém quando começava se
acostumar com a cotidianidade local. Era livre e assim queria permanecer. Não
foi difícil achar trabalho e não poderia se dar ao luxo da escolha.
― Nasceu minha filha e nunca contei a ninguém o
que me acontecera. Você é a pessoa que tenho coragem, Valdo. Tantos anos se
passaram. Tantas histórias.
Já eram umas dez da noite, a paisagem mesclada de luminosidade e umidade.
― Luiza, bebemos demais, convém dormir aqui. Deixei arrumado o outro quarto pra você. ― Osvaldo disse e Luiza parecia longe balançando a cabeça em afirmativo, entornando vinho à garganta, como se ansiasse por muleta que amparasse a travessia.
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