domingo, 20 de dezembro de 2020

minuto amigo e inimigo (CENA 39)

 

15/12/2020

A canção entoava. Na voz de Agepê:

... gira mundo vai girando

Roda gira gira roda

...

Tem gente que não entende

Que a vida é feita

De açúcar e sal

De chuva e sol

Quem sabe arrancar o veneno

Do peito ...

― Saudade do Agepê, saiu de cena, mas não morre nunca. A vida é feita de açúcar e sal. Tão óbvio e às vezes, tão obtuso em nosso pensamento. Não queremos crer que exista tanta ruindade, será mesmo necessário, me diz, Valdo? Gostaria de ouvir de você, “Luiza, um dia ficaremos livres da amargura, verá!” Me diz, por que insisto em ilusão tamanha? Engraçado, a gente aqui aprofundando o papo, né, Valdo. Pois é, sou assim, ainda tenho ilusões. Será por que sou mulher? Ou sensibilidade à flor da pele?

Osvaldo ouviu em silêncio. Levantou para pegar mais água e trouxe nova garrafa de vinho.

― Assim vai me embebedar. Você falou dos perigos na esquina. Perigos nos espreitam... além dos que rondam nossa pátria, nossa casa ... temos o passado. E o passado está sempre rondando a gente e quando menos se espera, ei-lo.

― “Eu amo cada minuto, cada minuto amigo ou inimigo, de voo e perdão: cada minuto da vida. Mas o passado tem um jeito de levar a gente ao lugar certo em hora errada, e traz junto tempestade”. ― Falou Osvaldo.

― Você se lembra de alguma paixão juvenil, Valdo?

― Poucas e raras. Sempre fui mais reservado e alguns complexos minaram meu entusiasmo inicial. Mas me lembro de uma amiga especial que tornou aquela época um momento de paz e atrevimento, de busca e curiosidade, ampliou minha ambição por questões sobre o universo pessoal, existencial. Uma mulher à frente do seu tempo.

― Quando saí de minha terra, encontrei um rapaz na cidade. Fábio e eu fomos nos envolvendo, a cada dia novos encontros...

Luiza chegou à cidade de Manaus aos treze, sem o traquejo e astúcia necessários para viver outra realidade. Na aldeia todos são irmãos, parentes, o coletivo valorizado, solidariedade é natural, existiam exceções de indígenas tomados pelo vício do alcoolismo e degradavam a própria vida, como vasos fracos, quebrantáveis, existentes em qualquer lugar. A menina moça, cabelos negros e longos, olhos indagadores, ágil e com força muscular, iria estudar, trabalhar, conhecer hábitos, e a cada dia tomava consciência de que ali não era bem uma grande aldeia. Observava pessoas isoladas, fechadas naquele concreto formatado com costumes diferenciados. Adaptação dolorosa e demorada devido ao idioma e cultura. Quando conheceu Fábio na fábrica em que trabalhavam, de latifundiários donos de quase toda a cidade, Luiza era uma outra mulher após cinco anos. Decidida, atrevida, curiosa nos detalhes, adquiriu habilidades importantes para sobreviver no pavimentado espaço da polis.

Os dois quando podiam desapareciam. Luiza montava na garupa da motocicleta enquanto Fábio buscava estrada de vegetação ainda nativa. E na loucura adolescente costumavam enfrentar trechos da viagem levantando o corpo e abrindo braços ao vento em completa veneração à natureza a que pertenciam. Amantes daquela rusticidade, os dois jovens se deixavam embaixo de imensas árvores enquanto comiam frutos que encontravam e comida que traziam. Depois acampavam.

― Adorávamos acampar na mata fechada que a cada vez descobríamos. Por ali nos aconchegávamos, o amor e a paixão nos alimentando, não existia o tempo, nem compromissos a nos preocupar. Apenas o tempo em que o sol ia ditando e a lua se opondo imensa e iluminada. Em mim germinava a semente. Ainda que escolhesse não contar, ele pressentia o milagre, pois dizia, Lulu, minh’alma anda altiva e alvissareira. Que trará pra nós? Fábio com jeito único, sensível, amava a liberdade que a possante moto possibilitava. Eu me misturava ao seu centro e compartilhava desejos. Desejos que iam tomando forma em meu corpo.

Durante o ano de convivência com Fábio, ele revelou segredos que evitara até àquele descanso na grande árvore amiga, que energizava ambos. Luiza preparava para dar a notícia, mas preferiu aguardar um pouco mais.

― Fábio adorava velocidade muito atrevidamente. Obrigado a resolver assuntos da empresa foi em viagem de carro, acostumado à liberdade de parar ou continuar quando bem entendesse. Disse-me, desta vez será diferente, quero retornar rápido pra gente continuar a busca. O lugar que começávamos embrenhar juntos nos deixava animadíssimos. E eu ansiava por notícias.

Fábio pegou o carro da empresa e seguiu para o compromisso. Tinha prazo para estar lá e na cronometragem do tempo percebeu que poderia dar esticada rápida num sítio arqueológico que descobrira. Quando pegou estrada novamente enfiou pé no acelerador por muitas horas. Era fim de tarde e as curvas se tornavam incômodas.

― Quando ouvi notícias do acidente fatal de Fábio, meu mundo caiu. Ele dormira ao volante e o carro caíra numa ribanceira, até para ser resgatado levou tempo. Valdo, eu ali grávida do homem que amava, sem poder comentar com medo de me tirarem o bebê. Fábio era um dos filhos do ricaço da cidade e somente me contara dia antes da viagem. Ninguém sabia de nosso namoro, ele me disse que devagar falaria aos pais, gente preconceituosa e arrogante, que se desaprovassem, ele assumiria.

Luiza se mudou para Santarém quando começava se acostumar com a cotidianidade local. Era livre e assim queria permanecer. Não foi difícil achar trabalho e não poderia se dar ao luxo da escolha.

― Nasceu minha filha e nunca contei a ninguém o que me acontecera. Você é a pessoa que tenho coragem, Valdo. Tantos anos se passaram. Tantas histórias.

 

Já eram umas dez da noite, a paisagem mesclada de luminosidade e umidade.

― Luiza, bebemos demais, convém dormir aqui. Deixei arrumado o outro quarto pra você. ― Osvaldo disse e Luiza parecia longe balançando a cabeça em afirmativo, entornando vinho à garganta, como se ansiasse por muleta que amparasse a travessia.

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