quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

silêncio da noite (CENA 41)

 

22/12/2020

            Os grilos cricrilavam, os gatos pisavam macio, o farfalhar das folhas alertou os dois madrugadores.

Luiza em seu silêncio interior. Osvaldo ao olhar em sua direção viu que sorrira levemente e ela continuou com as perguntas:

― Quantos familiares têm passado por perdas e nem podem estar presentes. Tudo acontecendo tão violentamente. Você está aqui comigo, mas e eles? Cruel realidade. A cada momento famílias sacrificadas. Onde está a dignidade necessária a esse momento tão doloroso?

― E saber que acontece todo ano, todo ano mortes e mais mortes de pretos, pobres e periféricos, tal qual as tantas durante a pandemia. É terrificante. Somos país escravagista. O estado não os protege. Como continua fazendo durante a covid.

Luiza fez uma pausa. E disse:

― Acha possível um homem e uma mulher serem amigos, amigos de verdade?

E depois já mudando assunto sem esperar resposta, perguntou inesperadamente:

― Ah, Valdo, que devo fazer? Ando com tanta dificuldade de conviver com amigos após eleição de 2018 pela escolha feita. Eles devem estar incomodados com minha reação.

― Nenhum amigo meu fez tal escolha, pelo menos os mais chegados, de convivência. É difícil aceitar e até entender como pessoas inteligentes votaram nesse candidato com histórico terrível de trinta anos, e de conhecimento de todos. Seja por qual motivo for. É incompreensível. ― Osvaldo respondeu.

No silêncio compreensível, Luiza após um tempo:

― Também penso assim, o que se torna ainda mais difícil.

― Siga adiante. Encontre amigos com os quais tenha afinidade. É tempo de mudança. Tempo de transformação. ― Osvaldo disse.

― Como as eleições de 2018 destruíram relacionamentos, hein? Ouço falar de mães, pais, filhos, maridos, esposas, que se separaram ao descobrir que, no fundo, seus parentes são retrato atual.

― Você está com dúvidas, queixas, é normal. Por que não escreve, põe tudo no papel? Nem precisa ser literata, deixe emoção e sentimento agirem e explore os temas. Conte incômodos, ideias, sem censura inicialmente, clareie zonas cinzentas, quem sabe encontre respostas que somente você é capaz de responder.

― Li o livro do Javier Cercas, O Rei das Sombras, contando a história da Espanha na época de Franco, e de como o fascismo tomou a todos feito cegueira coletiva. Grande parte da população apoiou o fascismo. Tempo em que milhões de espanhóis foram dizimados por discordar do pensamento único. Até os que votaram a favor do franquismo já não tinham segurança e se questionassem, também eram eliminados. Depois de muitos anos a sociedade tinha vergonha admitir tal escolha. Segredo levado ao túmulo. O escritor uniu ficção e realidade a partir da história de um tio que aos dezessete anos quis servir a Espanha de Franco, sem noção de estar escolhendo o lado errado. Você leu?

― Li sim, ― respondeu Osvaldo. E completou ― Aqui no Brasil foi diferente. Na verdade, dos cento e quarenta e sete milhões de eleitores aptos ao voto, apenas cinquenta e oito milhões de pessoas, isto é, trinta e nove por cento votaram no atual presidente. Então, mais de oitenta e nove milhões de pessoas aptas, isto é, mais de sessenta e um por cento não aderiram ao candidato. A culpa deve ser atribuída também aos que votaram em branco, nulo e não compareceram, pois contribuíram para a mazela, totalizando quase mesma quantidade dos que o elegeram. Aliás, já temos muitos arrependidos. Por mais se diga que foi para não eleger candidato do partido progressista, a gente sabe que isso não é verdade. A verdade é que se viram no espelho.

E continuou:

― É tema para discussão, porque no fundo a gente sabe das mãos invisíveis do mercado, da elite, juntamente com a mídia, que construíram a narrativa de seus interesses e esses tantos brasileiros que não enxergam todos os lados de forma dialética, aceitaram a história contada e fizeram a escolha. Não sei como agiria se algum amigo tivesse feito tal escolha, dado o histórico do candidato. Talvez estaria como você. Quando a raiva bate, é fogo combater. Avalie com tranquilidade, pense neles como colegas. Colegas que se respeitam.

Luiza considerou com a cabeça. Em seguida perguntou a Osvaldo:

― Natal quase chegando. Lembra a confraternização do ano passado, a gente ingênua quanto ao corona, e os sentimentos, a emoção, a esperança, as expectativas, a ... quem diria que 2020 caminharia para esse astral?

― 'É preciso tecer o amanhã, deixe que o rio que corre seu corpo chegue ao mar. Só faça o que o coração mandar’, como diz meu amigo, Fessor.


* Frase do escritor ronaldclaver

Nenhum comentário:

Postar um comentário