30/11/2020
Osvaldo nem
acreditava no que via, Luiza perguntava se poderia ir para o banho, como ele
havia proposto da última vez, talvez pelo interesse de bom papo. O homem sorriu
e prosseguiu dizendo, sem dúvida, vai logo, já que ida a supermercado é fogo
riscado pra contaminação.
― Hoje vou sair da rotina, ―
Osvaldo disse erguendo a garrafa assim que Luiza se aproximava. ― Vinho tinto! Pizza
rápida! de liquidificador! Tenho tino? Sou merecedor como chef de araque?
― Hera, certamente, já. Deu água na kahiki, deu água na boca. Vou sair por aí com você.
― Gosto do “quando”, quando você
traz palavras indígenas, quando nessas lavras me banho como em rio idílico.
― Saí do Amazonas há tempos e na
cidade a gente passa idade envolvida com o destino, não tem mais tempo e corre
em desatino. É triste que algumas mães Ianomâmis ensinem apenas o português, pois
sofridas, violentadas pelos viventes da cidade, sofrem preconceito pelo
linguajar e calejadas não querem tal para seus filhos. Já outras, mais
conscientes da ancestralidade, incentivam e ensinam os dois, o guarani e o
português.
Osvaldo, cortês, indicou lugar,
um distante do outro.
― Valdo, nadei em rios profundos.
Aprendizado natural, da vivência livre na mata. Bichos. Florestas intocadas.
Tanta beleza se esvaindo.
― Tribos indígenas resistem há
mais de trezentos anos e são as que respeitam e protegem a mãe Terra, as águas, e agradecem ao deus sol, elementos que germinam vida, alimento. Como você, com sua alma xamã, e das meninas, vêm
me salvando, indo às compras, os números da pandemia voltam assustar. Os velhos
estão literalmente embaixo dos cobertores. Quanto à vacina, as notícias continuam,
as manias do governo enrolar, as fake
news andam de amargar, nem salvação teremos no prazo. A chance de melhorar
anda longe, pois nas eleições municipais nosso povo confirmou, é conservador,
escolheu partidos do centrão, aquele que negocia qualquer tipo de voto na
contramão de nossos interesses e aprova de olho em grana, a que vicia e que nem
grama, só alastra. O fisiologismo continuará.
― Nada mudará, o desconcerto continua.
Sistema viciado. O rei está nu mas fingem não ver, e se aproveitam disso para
obter dividendos. É isso, existem políticos com fome de dinheiro, e ao que parece os altos
valores não saciam, querem sempre mais.
Ficaram às risadas por causa da
analogia. Em seguida apreciaram a massa.
― Valdo, quero te contar o que
aconteceu comigo. O vinho está me liberando. ― E rindo ― diz Bechior que
viver é melhor que sonhar, mas tive dúvida há três dias, foi como se fosse um pesadelo, mas foi real, assim, do
nada, sem motivo, senti dificuldade na respiração, batia acelerado meu coração, o
corpo suando, uma tontura, enjoo. Sentei na cama com receio de andar. Surgiu um
medo inexplicável, parecia que eu ia morrer. Medi pressão arterial e, normal. Meditei,
sabe, respirar fundo, segurar ar, depois expirar lentamente pela boca, e segurar
antes de nova respirada. A concentração difícil, achei que iria enfartar. Ou
talvez fosse o corona. Apenas sei, Valdo, que nada sei do que me aconteceu. Nas
investidas para eu me controlar, consegui limpar meus pensamentos e atentei a
cada inspiração, a cada expiração, até que o pulmão se expandiu. Que alívio!
― Há perigo na esquina, à
espreita. Nestes tempos de pandemia a gente anda estressada e ansiosa e reage em forma de pânico. Puxa vida, você agiu com sabedoria ao controlar
respiração e os medos que vêm junto. Foi a algum doutor psi? É bom escutar
ponto de vista de especialista.
― O tal medo de morrer é fogo.
― Medo que passou logo, como você
se certificou ao usar seu potencial para resolução do problema. Foi situação
singular, aguda. Todos sabemos, o medo faz parte de nós, o carregamos todos
dias. Mas quando crises nos inquietam, temos acesso meio que sem pensar,
inconsciente, ao que achamos que nos ameaça, ou ameaçou, ou ameaçará e isso vai
nos tomando corpo inteiro. É o corpo falando. Estresse é a escrita. Qualquer cantar é menor que a vida da gente,
mas não custa relaxar e voar um tico, que tal escutar MPB? Vamos pra varanda?
Caminharam leves. Sentaram-se. À frente, a leveza esverdeada. Osvaldo acendeu cigarro. Luiza acenou e
disse:
― Essa paisagem torna a
respiração vigorosa. A gente ganha asa.
Osvaldo observava aquela criatura
alada enquanto o céu abria nesgas entre nuvens lançando claridade na noite.
Ao fundo, a canção na voz de Alcione:
“...você me vira a cabeça
me tira do sério
destrói os planos que um dia eu fiz pra mim
me faz pensar por que a vida é assim...
por que você não vai embora de vez?
por que não me liberta dessa paixão?...
por que não deixa livre o meu coração?
Mas tem que me prender ...”
― Valdo, as pessoas me dizem pra
falar de amor. Às vezes é difícil em dias de dor. Afinal, 2020 não tem sido
fácil. E em seguida, aqui e agora, o vento lança aroma em nós e balançando os galhos,
as folhas murmurantes, dizendo, um instante, olha, tem cantoria, outras
histórias, e vacilante, insegura, acolho, mudo rumo e aprecio esse momento
único.
― Um braço e uma voz. Um amparando o outro num abraço à distância. A vida é assim, exige coragem da gente.
Brindaram. E riram das novas estratégias que eram obrigados adotar com a onda pandêmica.
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