domingo, 13 de dezembro de 2020

personagens humanos e reais (CENA 38)

 

 30/11/2020

            Osvaldo nem acreditava no que via, Luiza perguntava se poderia ir para o banho, como ele havia proposto da última vez, talvez pelo interesse de bom papo. O homem sorriu e prosseguiu dizendo, sem dúvida, vai logo, já que ida a supermercado é fogo riscado pra contaminação.

 

― Hoje vou sair da rotina, ― Osvaldo disse erguendo a garrafa assim que Luiza se aproximava. ― Vinho tinto! Pizza rápida! de liquidificador! Tenho tino? Sou merecedor como chef de araque?

Hera, certamente, já. Deu água na kahiki, deu água na boca. Vou sair por aí com você.

― Gosto do “quando”, quando você traz palavras indígenas, quando nessas lavras me banho como em rio idílico.

― Saí do Amazonas há tempos e na cidade a gente passa idade envolvida com o destino, não tem mais tempo e corre em desatino. É triste que algumas mães Ianomâmis ensinem apenas o português, pois sofridas, violentadas pelos viventes da cidade, sofrem preconceito pelo linguajar e calejadas não querem tal para seus filhos. Já outras, mais conscientes da ancestralidade, incentivam e ensinam os dois, o guarani e o português.

Osvaldo, cortês, indicou lugar, um distante do outro.

― Valdo, nadei em rios profundos. Aprendizado natural, da vivência livre na mata. Bichos. Florestas intocadas. Tanta beleza se esvaindo.

― Tribos indígenas resistem há mais de trezentos anos e são as que respeitam e protegem a mãe Terra, as águas, e agradecem ao deus sol, elementos que germinam vida, alimento. Como você, com sua alma xamã, e das meninas, vêm me salvando, indo às compras, os números da pandemia voltam assustar. Os velhos estão literalmente embaixo dos cobertores. Quanto à vacina, as notícias continuam, as manias do governo enrolar, as fake news andam de amargar, nem salvação teremos no prazo. A chance de melhorar anda longe, pois nas eleições municipais nosso povo confirmou, é conservador, escolheu partidos do centrão, aquele que negocia qualquer tipo de voto na contramão de nossos interesses e aprova de olho em grana, a que vicia e que nem grama, só alastra. O fisiologismo continuará.

― Nada mudará, o desconcerto continua. Sistema viciado. O rei está nu mas fingem não ver, e se aproveitam disso para obter dividendos. É isso, existem políticos com fome de dinheiro, e ao que parece os altos valores não saciam, querem sempre mais. As aparências não enganam mais não. E falando em pizza, vou tirar fatia, porque o fisiologismo agora bateu em mim, estou faminta. Hum! Pesto com queijo! Você leva jeito!

Ficaram às risadas por causa da analogia. Em seguida apreciaram a massa.

― Valdo, quero te contar o que aconteceu comigo. O vinho está me liberando. ― E rindo ― diz Bechior que viver é melhor que sonhar, mas tive dúvida há três dias, foi como se fosse um pesadelo, mas foi real, assim, do nada, sem motivo, senti dificuldade na respiração, batia acelerado meu coração, o corpo suando, uma tontura, enjoo. Sentei na cama com receio de andar. Surgiu um medo inexplicável, parecia que eu ia morrer. Medi pressão arterial e, normal. Meditei, sabe, respirar fundo, segurar ar, depois expirar lentamente pela boca, e segurar antes de nova respirada. A concentração difícil, achei que iria enfartar. Ou talvez fosse o corona. Apenas sei, Valdo, que nada sei do que me aconteceu. Nas investidas para eu me controlar, consegui limpar meus pensamentos e atentei a cada inspiração, a cada expiração, até que o pulmão se expandiu. Que alívio!

― Há perigo na esquina, à espreita. Nestes tempos de pandemia a gente anda estressada e ansiosa e reage em forma de pânico. Puxa vida, você agiu com sabedoria ao controlar respiração e os medos que vêm junto. Foi a algum doutor psi? É bom escutar ponto de vista de especialista.

― O tal medo de morrer é fogo.

― Medo que passou logo, como você se certificou ao usar seu potencial para resolução do problema. Foi situação singular, aguda. Todos sabemos, o medo faz parte de nós, o carregamos todos dias. Mas quando crises nos inquietam, temos acesso meio que sem pensar, inconsciente, ao que achamos que nos ameaça, ou ameaçou, ou ameaçará e isso vai nos tomando corpo inteiro. É o corpo falando. Estresse é a escrita.  Qualquer cantar é menor que a vida da gente, mas não custa relaxar e voar um tico, que tal escutar MPB? Vamos pra varanda?

Caminharam leves. Sentaram-se. À frente, a leveza esverdeada. Osvaldo acendeu cigarro. Luiza acenou e disse:

― Essa paisagem torna a respiração vigorosa. A gente ganha asa.

Osvaldo observava aquela criatura alada enquanto o céu abria nesgas entre nuvens lançando claridade na noite.

 

Ao fundo, a canção na voz de Alcione:

“...você me vira a cabeça

 me tira do sério

destrói os planos que um dia eu fiz pra mim

me faz pensar por que a vida é assim...

por que você não vai embora de vez?

por que não me liberta dessa paixão?...

por que não deixa livre o meu coração?

Mas tem que me prender ...”

 

― Valdo, as pessoas me dizem pra falar de amor. Às vezes é difícil em dias de dor. Afinal, 2020 não tem sido fácil. E em seguida, aqui e agora, o vento lança aroma em nós e balançando os galhos, as folhas murmurantes, dizendo, um instante, olha, tem cantoria, outras histórias, e vacilante, insegura, acolho, mudo rumo e aprecio esse momento único.

― Um braço e uma voz. Um amparando o outro num abraço à distância. A vida é assim, exige coragem da gente.

Brindaram. E riram das novas estratégias que eram obrigados adotar com a onda pandêmica.

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